Conversas na Sicília,
de Elio Vittorini


Angela Nugara em Gente da Sicília
de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet

Conversas na Sicília, do escritor italiano Elio Vittorini, é considerado uma das maiores obras do século em língua italiana. O livro foi publicado em 1938. O filme de Straub/Huillet segue em muitos aspectos o percurso e o estilo do livro de Vittorini, omitindo apenas algumas partes e alguns temas (sobretudo a fixação do personagem principal na figura do Grão-Lombardo e a caminhada que o personagem principal faz com a mãe à noite, quando ela visita os doentes da aldeia). Mas Straub e Huillet guardam com muito carinho o aspecto lapidar da palavra falada, da conversa, que é o mais fundamental do título. No final do livro, podemos ler "o protagonista destas Conversas não é autobiográfico, também a Sicília em que se enquadra e que o acompanha só porventura é Sicília; só porque o nome Sicília me soa melhor que o nome Pérsia ou Venezuela". Se num livro chamado Conversas na Sicília a Sicília não é importante, é porque todo o livro é construído em torno da idéia de conversa. Na idéia de conversa como o vínculo que reúne os homens, os liga e lhes mostra o mundo. Mais que uma arte marxista, um marxismo artístico. Publicamos aqui alguns dos 49 capítulos que compõem o livro, lançado em 1986 pela Editora Guanabara (Ruy Gardnier)

* * *

4

Chovia no cais da estação marítima onde o trenzinho que eu pegaria em seguida aguardava; da multidão de sicilianos desembarcados, boa parte foi embora, a gola do paletó erguida, as mãos no bolso, atravessando o largo debaixo da chuva; outra parte, com mulheres, trouxas e cestas, permaneceu imóvel, como antes a bordo, de pé, debaixo do abrigo.

O trem aguardava para se acoplar aos vagões que tinham cruzado o mar na balsa; era manobra demorada; e voltei a me encontrar com o pequeno siciliano e sua esposa-menina que, de novo, sentava na trouxa a seus pés.

Desta vez, ao ver-me, ele sorriu, mas estava desesperado, com as mãos no bolso, ao sabor do frio, do vento; sorriu, porém, com os lábios, por baixo da viseira de pano que lhe cobria metade do rosto.

– Tenho primos na América – disse. – Um tio e primos...

– Tem mesmo? – eu disse. – Em que lugar? Nova Iorque ou Argentina?

– Não sei – respondeu. – Talvez Nova Iorque. Talvez Argentina. Na América.

Assim ele falou e acrescentou: – De que lugar é o senhor?

– Eu? – disse eu. – Nasci em Siracusa... E ele disse: – Não... De que lugar da América?

– De... De Nova Iorque – eu disse.

Ficamos um instante calados, eu, nessa mentira, olhando para ele e ele olhando para mim, com os olhos escondidos pela viseira do boné.

Depois, quase enternecido, perguntou:

– Como vão as coisas em Nova Iorque? Vão bem?

– Sem grandes riquezas – respondi.

– E que importância tem isso? – disse ele. – Pode-se viver bem sem grandes riquezas... melhor até.

– Talvez! – eu disse. – Lá também há desemprego.

– E que importa o desemprego? – ele disse. – O mal nem sempre é o desemprego... Não se trata disso... Eu não estou desempregado.

Apontou para os demais pequenos sicilianos à volta.

– Nenhum de nós está. Trabalhamos... Nos laranjais... Trabalhamos.

E parou, mudou o tom de voz e continuou: – Foi por causa do desemprego que o senhor voltou?

– Não – eu disse. – Voltei por uns dias.

– Pois é – ele disse. – E come pela manhã... Um siciliano jamais come pela manhã.

E perguntou: – Na América todo mundo come pela manhã?

Eu poderia dizer que não e que, de regra, eu mesmo não comia pela manhã, e que conhecia tanta gente comendo talvez não mais que uma vez por dia, e que no mundo inteiro era assim etc., mas não podia falar mal da América que ele não conhecia e que, afinal, nem América era, nada de atual, de real, mas uma idéia toda dele de reino dos céus na terra. Eu não podia, não seria justo.

– Creio que sim – respondi. – De um jeito ou de outro...

– E na hora do almoço? – perguntou então. – Todo mundo come na hora do almoço na América?

– Creio que sim – disse eu. – De um jeito ou de outro.

– E à noite? – perguntou. – Todo mundo come à noite na América?

– Creio que sim– disse eu. – Bem ou mal... – Pão? – disse ele. – Pão e queijo? Pão e verdura? Pão e carne?

Havia esperança em seu modo de falar, e eu não poderia mais lhe dizer que não.

– Sim – eu disse. – Pão e qualquer coisa. E ele, o pequeno siciliano, demorou-se algum tempo calado na esperança, e depois olhou a seus pés para a esposa-menina sentada imóvel, soturna, ensimesmada, em cima da trouxa, e foi levado pelo desespero e, em desespero, como antes a bordo, curvou-se e desfez o barbante da cesta, extraiu uma laranja e, desesperado, ofereceu-a, ainda dobrado

sobre as pernas, à sua mulher e, após a recusa sem palavras, ficou segurando a laranja em desesperada desolação e começou a descascá-la para si, a comê-la, a engoli-la, como se engolisse pragas.

– Fazem salada disso em nossa terra – eu disse.

– Na América? – perguntou o siciliano. – Não – eu disse –, em nossa terra, aqui. – Aqui? – perguntou o siciliano. – Temperada com azeite?

– Com azeite – disse eu. – E um dente de alho, e sal...

– E com pão? – disse o siciliano.

– Certamente – respondi. – Com pão. Eu sempre comia, quinze anos atrás, no meu tempo de garoto.

– O senhor comia, é? – disse o siciliano. – Já vivia bem naquela época?

– Mais ou menos – respondi. E acrescentei: – Salada de laranja, o senhor nunca comeu?

– Uma vez ou outra – disse o siciliano. Mas nem sempre há azeite.

– Pois é – eu disse. – Nem sempre a safra é boa... O azeite pode estar caro.

– E nem sempre há pão – disse o siciliano. – Sem vender laranjas não há pão e se acaba comendo laranjas... Assim, está vendo?

E comia desesperado sua laranja, os dedos molhados de suco, no frio, olhando a seus pés a mulher-menina que recusava as laranjas.

– Mas sustentam bem – eu disse. – Pode me vender algumas?

O pequeno siciliano deglutiu, limpou as mãos no paletó.

– Quer mesmo? – exclamou. Curvou-se para a cesta, remexeu lá dentro, por baixo do encerado, entregou-me quatro, cinco, seis laranjas.

– Mas por que é tão difícil vender laranjas? – perguntei.

– Não se vende – ele disse. – Ninguém quer.

Nisso, o trem já estava pronto, com os vagões a mais que tinham cruzado o mar.

– No exterior não querem – prosseguiu o pequeno siciliano. – Como se tivessem veneno, nossas laranjas. E é assim que o patrão paga. Com laranjas. E a gente nem sabe o que fazer com elas. Ninguém quer. A gente vem a pé para Messina e ninguém quer... vai ver se em Reggio e Vila San Giovanni alguém quer, mas não querem. Ninguém quer.

Ressoou o toque do chefe de estação, a locomotiva apitou.

– Ninguém quer. Rodamos para cima e para baixo, pagamos a viagem para nós e para elas, sem comer pão, mas ninguém quer, ninguém mesmo.

O trem começou a andar, pulei para a porta. – Adeus, adeus!

– Ninguém quer... ninguém mesmo. Como se estivessem envenenadas, malditas laranjas.

11

A senhora surgiu, alta, de cabelos claros, e reconheci perfeitamente minha mãe, a mulher alta de cabelos castanhos quase louros, queixo duro, nariz duro, olhos pretos. Nos ombros, um cobertor vermelho a aquecia.

Eu ri. – Então, meus parabéns – eu disse. – Oh, é Silvestro – disse minha mãe, e se aproximou.

Dei-lhe um beijo filial no rosto, ela me beijou no rosto e disse: – Como, diabos, você veio parar aqui?

– Como é que me reconheceu? – eu disse. Minha mãe ria. – Também me pergunto disse.

Sentiu-se um cheiro de arenque assado e minha mãe acrescentou: Vamos para a cozinha... O arenque está no fogo.

Fomos para o cômodo ao lado onde o sol batia na cabeceira de ferro escuro da cama, e de lá para a pequena cozinha onde o sol batia em cada objeto.

No chão, sobre um estrado de madeira, ardiam brasas dentro de um tacho de cobre. Em cima, o arenque assava fumegando e minha mãe se abaixou para virá-lo. – Você vai ver que gostoso disse.

– Sim – eu disse, e respirava o cheiro do arenque e não me era indiferente, gostava, reconhecia nele o cheiro das refeições da minha infância. – Não deve haver coisa melhor – disse. E perguntei: – A gente comia quando eu era garoto?

– E como! – disse minha mãe. – Arenques no inverno e pimentões no verão. Era nossa comida de sempre. Não se lembra?

– E favas com cardos – disse, lembrando-me.

– Sim – disse minha mãe –, favas com cardos. Você era louco por favas com cardos.

– Louco? – disse eu. – Por favas com cardos?

E minha mãe: – É, você seria capaz de comer até dois pratos. E de lentilhas com cebola também, tomates secos, e toucinho...

– Com umas folhinhas de rosmaninho, não é? – disse eu.

E minha mãe: – É, com umas folhinhas de rosmaninho.

E eu: – Desses também eu comeria dois pratos?

E minha mãe: – Se comeria! Você era igual a Esaú... Venderia a primogenitura por mais um prato de lentilhas... Parece que estou vendo você voltar da escola, de trem, às três ou quatro da tarde.

– Pois é – disse eu –, de trem de carga, no bagageiro. Primeiro eu sozinho, depois eu e o Felice, depois eu, o Felice e o Libório.

– Meus três passarinhos – disse minha mãe. – Com suas cabeças cabeludas e os focinhos pretos, as mãos sempre sujas... E logo iam perguntando: mamãe, tem lentilhas hoje?

– Naquelas casas de cantão da linha onde a gente morava – disse eu. – Descíamos do trem na estação de San Cataldo, de Serradifalco, de Acquaviva, todos os lugares por onde estivemos, e tínhamos que andar um ou dois quilômetros a pé para chegar em casa.

E minha mãe: – Às vezes até três. O trem passava e eu sabia que estavam a caminho, pela linha férrea; punha as lentilhas no fogo, assava o arenque, e depois ouvia vocês gritarem: terra, terra.

– Terra? Por que terra? – eu perguntei.

– Isso mesmo, terra! Devia ser uma das brincadeiras de vocês – disse minha mãe. – E uma vez, em Racalmuto, a casa ficava numa ladeira e o trem tinha que reduzir a marcha, e vocês aprenderam a saltar do trem andando, e saltavam na frente de casa, e eu morria de medo de que vocês caíssem debaixo do trem, e os esperava do lado de fora de vara na mão.

– E nos batia? – eu disse.

E minha mãe: – Se batia! Você não lembra?... Marcava as pernas de vocês de tanta pancada. E até deixava sem comer de vez em quando.

Reergueu-se segurando o arenque pelo rabo e examinando-o de um lado e de outro; e vi, no cheiro do arenque, seu rosto sem nada a menos do que havia quando era um rosto de moça, tal como agora a lembrava, e com a idade que fazia dela algo mais. Minha mãe era isso: a lembrança daquela que fora quinze anos antes, vinte anos antes, quando esperava saltarmos do trem, jovem e terrível, de vara na mão, a lembrança, a idade de toda a distância, o algo mais do agora, enfim, duas vezes real. Ela examinava o arenque segurando-o de um lado e do outro sem nenhum sinal de queimado, porém assado por igual, e o arenque também era isso, a lembrança e o algo mais do agora. E cada uma das coisas era isso, a lembrança e o algo mais do agora, o sol, o frio, o braseiro de cobre no meio da cozinha e o que adquirira na minha consciência desse ponto do mundo onde me encontrava; cada coisa era isso, duas vezes real: e talvez por isso não me fosse indiferente sentir que eu estava ali; viajar, por isso, era duas vezes verdadeiro, mesmo a viagem depois de Messina e as laranjas na balsa, e o Grã-Lombardo no trem, e Com Bigode e Sem Bigode, e a verde malária e Siracusa, a própria Sicília, enfim, tudo duas vezes real, e viajando; quarta dimensão.

12

O arenque foi limpo, colocado num prato, regado a azeite, e eu e minha mãe sentamos à mesa. Isso, na cozinha, com o sol pela janela atrás das costas de minha mãe, enrolada na manta vermelha, com os cabelos de um castanho bem claro. A mesa ficava encostada à parede e eu e minha mãe sentamos um diante do outro, o braseiro embaixo e o prato de arenque em cima, quase cheio de azeite. E minha mãe atirou-me um guardanapo, passou-me um prato e um garfo, puxou da gaveta um belo pão já pela metade.

– Você não se importa de comer sem toalha? – perguntou.

– Oh, não – eu disse.

E ela: – Não posso lavar roupa todo dia... Estou velha agora.

Em minha infância, no entanto, a gente sempre comera sem toalha, exceto aos domingos e feriados, e minha mãe costumava dizer, isso eu lembrava, que não podia lavar roupa todo dia.

Comecei a comer arenque com pão e perguntei: – Por que não tem sopa?

Minha mãe olhou-me e disse: – Como é que eu ia saber que você vinha?

Olhei-a e perguntei: – Mas é por você que falo. Você não costuma tomar sopa?

– Fala por mim? – disse minha mãe. – Quase não tomei sopa em toda a minha vida... Fazia para vocês e seu pai, mas a minha comida sempre foi essa: arenques no inverno, pimentões assados no verão, muito azeite, muito pão...

– Isso o tempo todo? – perguntei.

– O tempo todo, por que não? – disse minha mãe. – Com azeitonas, naturalmente, e às vezes carne de porco e lingüiça, quando tínhamos porco.

– E tínhamos porco? – perguntei.

– Tínhamos, você não lembra? – disse minha mãe. – Havia anos em que a gente tinha porco, nas casas de cantão, criava-o com figos-da-índia, depois matava-o...

Então, lembrei-me do campo que cercava uma das casas com a linha férrea e figos-da-índia e guinchos de porco. Era bom viver nas casas de cantão, pensei. Todo aquele campo para se correr, sem cultivo, sem camponeses, apenas algumas ovelhas e os homens do enxofre voltando das minas, à noite, quando a gente já tinha se deitado. Bons tempos aqueles, pensei, e perguntei: – Tínhamos frangos também, não é?

Minha mãe respondeu que sim; tínhamos alguns, é claro, e eu disse: – A gente fazia molho apimentado...

E minha mãe: – A gente fazia de tudo um

pouco... Secava tomates ao sol... Fazia doces de figos-da-índia.

– Bons tempos aqueles – eu disse convicto, pensando nos tomates que secavam debaixo do sol nas tardes de verão, sem vivalma naquele campo todo. Era campo seco, cor de enxofre e lembrei o zumbido do verão e o brotar do silêncio e de novo pensei que eram bons tempos aqueles. Eram bons tempos aqueles – eu disse. – Tínhamos telas contra insetos.

– Quase sempre havia malária por lá – disse minha mãe.

– Malária da brava! – eu disse.

E minha mãe: – Brava de verdade!

E eu:– E havia cigarras! ... – E revi a floresta de cigarras para além das redes protetoras das janelas, da varanda, na solidão do sol, e disse: – Eu pensava que cigarras eram a malária!

– Ah, ah! – minha mãe gargalhou. – Era por isso talvez que você apanhava tantas?

– Apanhava? – eu disse. – Mas eu acreditava que "malária" era seu canto, não elas... Eu as apanhava?

– E como! – disse minha mãe. – Vinte, trinta de cada vez.

E eu: – Devia estar pensando que eram grilos... – E perguntei: – O que fazia com elas? Minha mãe riu novamente. – Acho que você comia – disse.

– Comia? – exclamei.

– Comia – disse minha mãe. – Você e seus irmãos.

Ela ria e eu estava pasmo. – Mas como pode ser? – perguntei.

E minha mãe disse: – Talvez fosse fome. E eu: – Tínhamos fome?

E minha mãe: – Talvez.

– Mas a gente estava bem de vida! – protestei.

Minha mãe me olhou. – Sim – disse. – Seu pai recebia no fim de cada mês, e então por dez dias vivia-se bem. Todos os camponeses e o pessoal das minas nos invejavam... Mas depois de dez dias a gente ficava como eles. Comia caracóis.

– Caracóis? – eu disse.

– Sim, e chicória do mato – disse minha mãe.

E eu perguntei: – E eles, só comiam caracóis? E ela: – Sim, é o que todos os pobres comem normalmente. E nós éramos pobres nos últimos vinte dias do mês.

E eu: – E comíamos caracóis por vinte dias? E minha mãe: – Caracóis e chicória do mato. Refleti um pouco, sorri e depois disse: – Afinal, devia ser gostoso.

E minha mãe: – Ótimo... Podemos cozinhá-los de tantas maneiras.

E eu: – Como, tantas maneiras?

E minha mãe: – Simplesmente fervidos, por exemplo. Ou empanados e fritos.

E eu: – Que idéia! Empanados e fritos? Com casca?

E minha mãe: – Mas é claro! É assim que se comem, sugando a casca... não se lembra?

E eu: – Lembro, lembro... Sugar a casca é que é o melhor, me parece.

E minha mãe: – A gente passa horas sugando.

16

Depois eu disse: – Então?

– Então o quê? – perguntou minha mãe. – Então – disse eu. – O que foi que aconteceu com o papai?

Minha mãe pareceu novamente irritada.

– Para que falar nisso? – resmungou. – Para mim, com ele ou sem ele não faz diferença... E se para ele faz ou não, pouco me importa.

– É verdade, então, que ele se foi com outra? – eu disse.

E minha mãe: – Se foi? Se foi coisa nenhuma. Eu o enxotei. Aqui era minha casa.

E eu: – Ora vamos! Você enjoou e o enxotou? E minha mãe: – Bem. Agüentei muitos anos, mas isso já era demais, não podia vê-lo apaixonado nessa idade.

– Como foi que ele se apaixonou? – eu disse.

E minha mãe: – Sempre foi assim com as mulheres. Sempre precisava ter outras mulheres por perto e bancar o galo no meio delas. Você sabe que ele escrevia poemas. Escrevia para elas.

– Não vejo mal nenhum nisso – disse eu. E minha mãe: – Ah, não vê? E chamá-las de rainhas nos poemas, e elas me olharem de alto a baixo, isso não era mal nenhum?

– De rainhas? – disse eu.

E minha mãe: – Pois é! E até de abelhas-rainhas! Umas safadas, mulheres de cantoneiros,

professoras, mulheres de chefes de estação... Abelhas-rainhas!

E eu: – E como podia saber que se tratava delas?

E minha mãe: – Bem! Era só ver o quanto era cavalheiro, e nas festas brindar à mais bonita olhando para ela, e ler os poemas de braços abertos em direção a ela, que mais era preciso saber?

E eu rindo: – Ah, aquelas festas! Aquelas reuniões!

– Era doido varrido – disse minha mãe. Não podia viver sem agitação. Depois de seis, sete dias, tinha que inventar alguma coisa. Chamar os ferroviários da linha toda, suas mulheres e filhas, e bancar o galo no meio delas. Em certos períodos, toda noite tinha festa aqui ou na casa dos outros. Era baile, ou jogo de cartas, ou teatro... E ele, o centro da festa, com os olhos brilhando...

Pude lembrar meu pai, seus olhos azuis e radiantes, centro da minha infância e da Sicília nas solidões das montanhas, e lembrei também minha mãe, nada infeliz, aliás, no papel de dona-de-casa, levando o vinho aqui e acolá, esfuziante, sorridente, nem um pouco infeliz com aquele marido namorador.

– Nisso era muito bom – prosseguiu minha mãe. – Não se cansava de dançar e não perdia uma só música. O disco acabava e ele ia trocá-lo correndo, e voltava, tirava uma dama e seguia dançando. E sabia como marcar uma quadrilha; cada frase um bom repente... E tocava harmônica e gaita de fole também. Era o melhor tocador das montanhas e tinha um vozeirão que enchia todo um vale. Ah! Que grande homem ele era, feito guerreiro antigo... Podia se ver que se sentia um rei no seu cavalo. E quando surgia a cavalgada na ponte, com lanternas e guizos, ele à testa se sentindo um rei, nós gritávamos viva... Viva o papai, gritávamos!

– De quem está falando? – perguntei.

– Estou falando do papai, de seu avô – disse minha mãe. – De quem você pensou?

E eu: – Do avô? Era meu avô que ligava o gramofone?

E minha mãe: – Não, ele não... Aquele era seu pai. Ligava o gramofone e trocava os discos. Vivia correndo e trocando discos. E dançava o tempo todo. Era grande bailarino, grande galanteador. E quando me escolhia como seu par e me fazia rodar, eu me sentia de novo uma criança.

– Você se sentia criança com o papai? eu disse.

E minha mãe: – Não! Quero dizer com o papai, seu avô... Era tão alto e forte e tão soberbo com sua barba loura e branca!

E eu: – Então era o vovô que dançava?

E minha mãe: – Seu pai também dançava. Com gramofone e o mulherio todo que trazia para casa... Dançava até demais. Teria dançado todas as noites! E quando eu não queria ir a uma daquelas

reuniões, tão distantes, nas casas de cantão, olhava-me como se lhe tirasse um ano de vida. Mas a gente sempre queria ir às festas aonde ele ia...

– Ele quem? – eu disse: – O papai ou o vovô?

– E minha mãe: – Seu avô, seu avô...

19

Minha mãe estava agora de vassoura na mão, varrendo aqui e ali, e era com grande riqueza mãe e mulher, e eu, quase rindo por dentro, pensei que também poderia ter sido uma das que ela chamava de cadelas imundas, rainhas, apesar das suas mãos toscas, para outros homens oculta abelha-rainha, mãe de arrebatamentos.

Por que não? pensei.

Riqueza de mãe tinha de sobra dentro de si para ter sido esposa apenas e ter se consumido, mesquinha, pobre coitada, atrás dos arrebatamentos de seu homem por outras mulheres. Velho mel ela tinha de sobra dentro de si, indo e vindo agora pela pequena cozinha, tão alta, os cabelos quase louros, nos ombros o cobertor vermelho.

Tinha dentro de si velho mel de sobra. Não podia ter sido uma pobre coitada. E, quase rindo por dentro, eu disse:

– Você é uma mulher engraçada! Queria que se sentissem umas cadelas?

– Queria, sim – disse minha mãe. – Gostaria de não ter levado a sério...

– Você é uma mulher engraçada! E seria capaz disso?

E minha mãe: – Naturalmente. Não me importaria com nada! Seria capaz, sim! Mas ele não as tratava feito cadelas.

E eu: – Por que deveria? Tinham um marido como você e filhos também como você.

E minha mãe: – Bem! Ninguém mandava que fossem umas cadelas.

E eu: – Era tão sujo assim o que faziam? Não faziam o mesmo que você com ele? Ou faziam algo mais?

– Algo mais? – exclamou minha mãe. E por um instante parou de varrer.

– Algo mais, como? – disse. – Faziam o mesmo, é claro. O que mais poderiam fazer?

– E então? – eu disse. – Tinham um marido como você. Tinham filhos como você. E não faziam nada de mais sujo que você com ele... Por que ele iria tratá-las como cadelas imundas?

E minha mãe: – Mas não era o marido delas, era o meu marido...

– E é nisso que está a diferença? – eu disse. E ria por dentro. Via-a perplexa no meio da cozinha, de vassoura na mão, sem varrer, e por dentro eu ria. – Não compreendo seu modo de raciocinar – disse.

E, enquanto por dentro eu ria, decidi arriscar a cartada: – Não compreendo seu modo de raciocinar – eu disse novamente. E falei: – E você, era um cadela imunda quando fazia aquilo com outros homens?

Minha mãe não corou. Seus olhos ficaram acesos, sua boca fechou-se, dura, e dura ela ficou inteira, mais alta, agitada em seu velho mel, mas não E eu, rindo por dentro, disse: – Porque suponho que você também tenha ido para o mato... – Estava gostando de agitá-la em seu velho mel, e por dentro ria, estava loquaz. – Não vai dizer que ficou o tempo todo na cozinha! – eu disse. – E que nunca foi para o mato com alguém!

– Ora! – disse minha mãe. Ficou como pedra em meio à cozinha e, agitada em seu velho mel, mas sem rubor, nem pejo: – Ora! – disse, olhando-me de alto a baixo.

E era mais do que minha mãe, ao dizer isso, mais do que mãe-pássaro, mãe-abelha, mas seu velho mel era velho demais nela e se apaziguou, pousou, malicioso, e eu era, afinal, um filho de vinte e nove anos, quase trinta, metade de mim estranho a ela há quinze anos, metade de mim um homem qualquer, e assim ela falou voltando a varrer: – Bem, acho que ele mereceu se estive com outros homens, uma vez ou duas.

E eu pensei, rindo por dentro: "Ah, sua velha cadela!"

E disse: – Pois é claro que ele mereceu! Depois perguntei:

– Muitas vezes? Com muitos homens?

– Ora! – exclamou minha mãe. – Está pensando que eu puxava carroça por eles?

E eu: – Nada disso! Queria saber se foi com um homem ou com dois...

E minha mãe: – Com um! Com um! Porque outra vez foi um erro e não conta.

– Um erro? – disse eu. – Como um erro? E minha mãe: – Foi um caso com um compadre uma vez em Messina. Depois do terremoto... Foi num momento de confusão, enfim, eu era muito jovem e não se falou mais nisso.

– Vejam só! – eu disse. – E com o outro? E minha mãe: – Bem, com o outro foi por acaso.

– Era nosso compadre também? – disse eu. E minha mãe: – Não. Era um sujeito que eu não conhecia.

– Era um sujeito que você não conhecia? – exclamei.

E minha mãe: – E por que esse espanto? Você nem sabe como as coisas aconteceram.

E eu: – Suponho que ele a violentou. E minha mãe: – Violentou?

Ri por dentro pelo tom com que minha mãe disse isso; depois, observando-a como se fosse de outro ponto da terra, não daquele, na sua própria cozinha e na sua Sicília, perguntei: – Mas onde foi? Já morávamos nas casas de cantão?

34

Depois o amolador entregou-me a lâmina, afiada como dardo e punhal, perguntei o preço, ele me disse quarenta centavos, tirei do bolso quatro moedas de dez cada e depositei-as sobre a tábua de seu cavalete.

Abriu a gaveta e vi que estava dividida em três partes com moedas de vinte e de dez cada uma, num total de cinco ou seis liras talvez. Eu disse:

– O dia foi magro hoje?

Mas ele agora não me ouvia, notei que mexia , os lábios, murmurava. Estava absorto e fazia rolar as moedas entre os dedos, e o murmúrio foi aos poucos crescendo. – Quatro de pão – ouvi.

Quatro de vinho... – E de repente: – E o sujeito ' do bigode? '' Recomeçou mais alto: – Quatro de bigode.

Quatro de pão... – E de repente: – E o vinho? Mais alto ainda recomeçou: – Quatro de vinho. Quatro do bigode... E de repente: – E o pão?

Então eu disse: – Por que não soma tudo e depois divide?

– Muito arriscado – disse o amolador. Um dia desses poderia comer tudo, um dia desses poderia beber tudo.

Coçou a nuca e devolveu-me dez centavos olhando para o céu.

– Pegue – disse. – Queria lhe cobrar dois tostões a mais, mas Deus não quis. Eram esses dois tostões que estavam me atrapalhando.

Guardei, rindo, os dez centavos, e ele baixou novamente os olhos do céu para a terra e, satisfeito, distribuiu as três moedas que lhe restavam pelas três partes da gaveta. – Duas de pão, duas de vinho, duas do bigode – ele disse.

Sacudiu as mãos vazias, agarrou sua geringonça e rumou ladeira acima na luz do sol que já ia sumindo.

Segui-o sem hesitação. – Vai subir? – eu disse. – Eu o acompanho.

Todavia, embora satisfeito por ter dado uma solução ao problema, ele já não se mostrava alegre, mostrava-se triste até e não falava. Caminhava olhando para o ar, sacudindo a cabeça de um lado para o outro debaixo do velho chapéu de espantalho. Todo ele tinha um quê de espantalho, no rosto negro, nos olhos luzidios, na grande boca de homem magro, no paletó remendado, nas calças esfarrapadas, nos sapatos rotos e naquele jeito ossudo de mexer com as pernas e com os cotovelos.

– Peço perdão – disse subitamente. Achei que podia fazê-lo porque o senhor é forasteiro.

– Não foi nada – eu disse. – Duas moedas a mais, duas a menos.

E ele: – o fato é que a gente não sabe lidar com forasteiro. Talvez haja amoladores cobrando oito moedas fora daqui, e cobrando seis corre-se o risco de prejudicá-los, não acha?

Estando ele mais despreocupado e eu, divertido, seguimos andando em silêncio um bom pedaço, e o sol já tinha se posto, e um bimbalhar de sinos descia do alto das casas.

Depois o amolador clareou a garganta. – O mundo é lindo.

E eu também clareei a garganta. – Imagino que sim – disse.

E o amolador: – Luz, sombra, frio, calor, alegria, não-alegria.

E eu: – Esperança, caridade...

E o amolador: – Infância, juventude, velhice...

E eu: – Homens, crianças, mulheres...

E o amolador: – Mulheres bonitas, mulheres feias, graça de Deus, esperteza e honestidade.

E eu: – Memória, fantasia.

– Como é que disse? – exclamou o amolador.

– Oh, nada – disse eu. – Pão e vinho.

E o amolador: – Lingüiça, leite, cabras, porcos e vacas. Ratos...

E eu: – Ursos, lobos.

E o amolador: – Doença, cura. Eu sei, eu sei. Morte, imortalidade e ressurreição. Ah! – gritou.

– O quê? – disse eu.

– É extraordinário – disse o amolador. Ah! Oh! Ih! Uh! Eh!

E eu: – Imagino que sim.

E o amolador: – É muito grave ofender o mundo.

E eu não disse mais nada, voltei para os pensamentos anteriores ao meu encontro com ele, quando ainda o papagaio passava pelo céu, como se agora fosse ele aquele mesmo papagaio. Olhei para ele e parei, e ele também parou e perguntou: Diga-me, se alguém conhece outro alguém e tem imenso prazer em conhecê-lo e lhe cobra duas moedas ou duas liras a mais por um serviço que poderia fazer de graça, já que o prazer de conhecê-lo é tanto, o que é ele: homem do mundo ou alguém que ofende o mundo?

Pus-me a rir. – Oh! – E era natural.

E ele perguntou: – Não é alguém que ofende o mundo? Ou é do mundo? Pertence ao mundo? – Oh! – eu ri ligeiramente, porque era natural.

E ele riu: – Ah!

Tirou o chapéu e saudou: – Obrigado, amigo – disse. E novamente riu: – Ah!

E eu novamente ri. – Oh! – E ele disse: A gente confunde, às vezes, as insignificâncias do mundo com as ofensas ao mundo.

Depois voltou a falar-me ao pé do ouvido: – Se tivesse facas e tesouras...

E falou-me no ouvido um minuto ou dois, mas eu não falei no seu ouvido; agora, para mim, era como se fosse meu papagaio falando.

49

Foram essas as minhas conversas na Sicília, que duraram três dias e suas relativas noites e que terminaram assim como começaram. Mas preciso ressaltar que algo mais aconteceu após o fim.

Tinha voltado à casa de minha mãe para a despedida, e encontrei-a na cozinha lavando os pés de um homem.

O homem estava sentado de costas para a porta, era muito velho: ela, ajoelhada no chão, lavava-lhe os pés numa bacia.

– Vou partir, mamãe – eu disse. – O ônibus chegou.

Minha mãe levantou a cabeça por cima do homem: – Não vai comer conosco, então – respondeu.

O homem não se virou, nem às minhas palavras nem às dela. Tinha os cabelos encanecidos, era muito velho, e baixava a cabeça, parecia profundamente absorto ou, então, estar dormindo.

– Dorme? – perguntei baixinho a minha mãe.

– Não. Chora, o tolo – ela respondeu. – E acrescentou: – Sempre foi assim. Chorava quando eu dava à luz, e chora agora também.

Aproximei-me para ver-lhe o rosto e vi que o escondia atrás da mão. Parecia-me, no entanto, velho demais; e por um instante quase pensei que fosse meu avô. Pensei também que poderia ser o andarilho de minha máe.

– Voltou, então? – perguntei em voz baixa. Minha mãe sacudiu a cabeça em sinal de reprovação.

– Chora – disse. – Não sabe que sou uma mulher afortunada.

Nesse instante, porém, deixou sós na água da bacia os velhos pés do homem, levantou-se e me chamou de lado.

– A propósito, você me enganou a respeito de Cornélia – disse. – Não foi no campo de batalha que morreram seus Gracos.

– Não foi no campo de batalha? – exclamei, ainda baixinho.

– Não – continuou minha mãe. – Vi em seus livros de infância, quando você saiu.

– Muito bem – disse eu. E beijei-a na face. – Adeus.

– Você não quer cumprimentá-lo? – minha mãe perguntou.

Hesitei, ao olhar esse velho, depois disse: – De outra vez. Deixe-o tranqüilo. – E saí de casa, na ponta dos pés.

A fim de evitar equívocos ou mal-entendidos aviso que, assim como o protagonista destas Conversas não é autobiográfico, também a Sicília em que se enquadra e que o acompanha só porventura é Sicília; só porque o nome Sicília me soa melhor que o nome Pérsia ou Venezuela. De resto, suponho que todos os manuscritos sejam encontrados dentro de uma garrafa.

(Tradução de Lucia Guidicini)