![]() |
![]() |
Entrevista
com Maurice Capovilla (2)
Voltando à nossa linha: você escreveu o roteiro d’O Profeta da Fome declaradamente baseado na Estética da Fome do Glauber. Não é que seja baseado no artigo dele... É que a base teórica estava ali. A base teórica estava ali. E dá para perceber que algumas frases inspiraram diretamente o seu filme. Por exemplo, quando ele escreve: "a nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida": isso daí é o prólogo do filme, quando o faquir e o domador brigam pelo pedaço de carne. Ou quando ele diz que "a nossa cultura nasce da fome", que essa é a nossa originalidade: a frase está em todo o filme, e não é à toa que o artista, o faquir, faz da fome o seu espetáculo. O filme tem algumas idéias que são claramente inspiradas no manifesto, não? Sem dúvida, é a partir dessa proposta. O filme evidentemente não pode ser, vamos dizer, ele não é inspirado... ele é inspirado na base teórica, mas a base teórica não era suficiente para nos dar um ponto de partida. Tanto que nós começamos a pensar o filme como um documentário, o primeiro ponto de partida foi fazer um documentário à La Hora de los Hornos [de Ferrando Solanas]. Tem uma espécie de documentário dentro do filme, um documentário sobre a fome no Terceiro Mundo. Aquilo é o telejornal. Uma das dez partes do filme, não? É isso mesmo, mas ele é mais dentro da forma do telejornal. Porque cada um daqueles tratamentos tem uma ligação com o cinema que estava se fazendo. O telejornal é tão destacado do filme porque você vê que tem aquela narração toda pomposa, tem um estilão mesmo de um cinejornal, tanto que tem notícias ali, entre as quais o Ali Khan. Mas a gente tinha, o objetivo era fazer um filme sobre a fome, esse era o tema; agora, como?, de que jeito?, a partir de quê? O primeiro ponto, com o Fernando, foi: vamos sair para um documentário tradicional sobre a fome no Brasil. Bem, aí aos poucos começou a surgir a idéia de um dramatização do tema, mas a partir de quê? Não sabia-se. Por acaso eu tinha, na época que fui repórter especial da Última Hora, fazia matérias louquíssimas em São Paulo, e uma delas foi seguir um faquir que se apresentou em 63, em meados de 63, antes do golpe, ele se apresentou naquele local mesmo – não, foi no Largo do Paissandu. No seu filme não é na São João? Eu montei lá no final da São João, bem embaixo do banco do estado. Esse faquir se apresentou no Largo do Paissandu, em frente ao Art Palácio, é um larguinho que fica na São João, antes do Anhangabaú, entre o Anhangabaú e a Ipiranga. Bom, eu cobri, fiz uma entrevista, eu tinha duas ou três matérias que eu fiz. Então surgiu daí a idéia do Ali Khan. Mas era uma matéria jornalística sobre esse louco, esse faquir que, sei lá, se propôs a ficar 60, 70 dias sem comer. É exatamente aquilo: a urna do filme, eu imitei a urna dele, que tinha cama de pregos, cobras; ele tinha uma assistente, da mesma maneira que o Mojica tem. Enfim, foi a partir daí que o surgiu o filme, o desenvolvimento do tema. Aonde começa a carreira desse faquir? Lá no circo. Você vê que há uma lógica no Profeta em montar esse drama. Nessa época, 69, o projeto de nacional-popular que tinha sido criado no começo da década já estava meio que falido, e aí o cinema brasileiro vive um dilema que vai levar ao cinema marginal, que é a escatologia, o reconhecimento da impossibilidade dessa ida tradicional ao povo. Dentro dessa linha, como é que você vê o imaginário d’O Profeta em relação ao cinema brasileiro da época, em relação ao cinema novo e, mais especificamente, ao cinema marginal? No caso, há uma visão estética. Eu, por exemplo, não é que eu diga que não pertenço a esse ou aquele movimento. A análise da História é que coloca ordem na desordem: é o pesquisador, é o crítico, é o analista que começa a trabalhar o passado para ajeitar da melhor maneira possível o mundo, para que ele seja compreensível. É assim mesmo, você coloca ordem naquilo que, no momento mesmo, não tem ordem, não tem ligações. Por exemplo, eu vivia dentro da Boca, eu tinha escritório ali, trabalhava ali dentro, tinha amizades. Mas eu não me identificava com, por exemplo, o Person – quer dizer, eu era amigo do Person, mas não me identificava com o trabalho do Person, quando ele montou com o Batista, o Francisco Ramalho, uma produtora para fazer aquela série dos três filmes, você lembra como se chamavam? Que é o primeiro momento, basicamente, que identifica o cinema marginal... o Trevisan... Tem o Gamal, Delírio do Sexo do João Batista de Andrade. O Gamal, do Batista. Do Trevisan tem o Orgia ou O Homem que Deu Cria. Tem o [João] Callegaro que faz... ...O Pornógrafo. É. E dentro desse mundo tem o Rogério, o Rogério Sganzerla, que é uma experiência genial. Agora, todas as experiências elas não são, vamos dizer, ligadas entre si com uma concepção, com uma idéia que a preside. Não. São filmes feitos a partir de necessidades individuais, de pequenos grupos, e que são independentes entre si. O que dá sentido a esse grupo de profissões – a esse conjunto de profissões que são periféricas à produção da Cinedistri, por exemplo, que era a produção oficial, no sentido formal e mercadológico – é o fato de que esses eram filmes que eram os filmes possíveis de serem feitos naquele momento, não havia uma intencionalidade de pertencer ou fazer daqueles filmes um movimento, entendeu? Esta que é a minha impressão, tanto que eu faço O Profeta, circulo no meio das pessoas que estão fazendo filmes naquele momento, mas quem me dá condições de terminar esse filme é o [Osvaldo] Massaini... ...que era o maios produtor do cinema brasileiro na época. O maior produtor na época. Ele me dá a garantia de pagamento do laboratório, que eu tinha assumido um compromisso que ficou uma dívida. Uma dívida que eu tinha feito com o filme e ele, basicamente, me adiantou o dinheiro para eu fechar as minhas dívidas, zerar o filme, e então eu entreguei a distribuição para a Cinedistri, o filme foi distribuído pela Cinedistri – os cartazes, divulgação, tudo isso foi feito pela Cinedistri. É, o material de divulgação que eu vi era da Cinedistri. É, tudo da Cinedistri. Então, na verdade, não é que eu não me identifique. Agora, dentro desse grupo, existe um filme que é o ponto de partida, que é, para mim, o filme que simbolizaria todo esse movimento do cinema marginal, que é A Margem do Ozualdo Candeias. A Margem tem um lado seminal do cinema marginal, é um filme que possibilitou um olhar diferente, um olhar declaradamente à margem das coisas, mas em termos de linguagem, e até de proposta, o filme do Candeias é bem diferente de, por exemplo, O Bandido da Luz Vermelha, que seria uma outra grande fita deflagradora da época, do cinema marginal que tem uma estética da bandalha, da antropofagia... Você fez uma avaliação desses filmes em conjunto, eles não têm uma... O Rogério, inclusive, é um salto mortal esse filme do Rogério, porque ele vem de um material totalmente complicado e ele é montado pelo Silvio Renoldi da maneira mais louca e inimaginável possível. As histórias sobre a montagem d’O Bandido que o Jairo Ferreira conta no livro dele, O Cinema de Invenção, são maravilhosas. Eu estava por lá... Na verdade, eu levei o Rogério ao Silvio, o Silvio que de certa maneira dá ordem no filme. O Silvio também montou O Profeta e o Bebel, não? Foi o Silvio... e ele era também o montador do Roberto, ele estava terminando o... foi logo depois de terminar o filme do Roberto... O Homem Nu? Não, foi o do Guimarães... A Hora e a Vez de Augusto Matraga. O Matraga, foi logo após o Matraga que o Rogério começou a filmar. Então, a questão da linguagem é também um processo irracional, nem muito racional. É a falta de material, é a carência, a precariedade que faz que esses filmes, vistos hoje, tenham essa conotação de filme intencionalmente feito assim. Não acredito. É de todos esses filmes feitos que começou a surgir então, vamos chamar assim, uma "justificativa de", entendeu?, você sempre justifica a obra após sua feitura, nunca antes. Eu não vou fazer um filme e... a não ser, sei lá, determinados autores que são... Nem o Aruanda, do Linduarte Noronha, que é um exemplo clássico dessa precariedade dos meios exposta na tela para quem quiser ver. Nem o Aruanda, ele é o resultado de um processo feito na hora. Mas eu vejo O Profeta, pela própria idéia de você pegar um circo completamente precário, um circo que não tinha a menor condição, eu vejo isso como uma excelente argumentação de que a partir desse precário é que você vai tirar a nossa originalidade – o precário, que é a imagem possível e real, você não consegue fazer uma imagem embelezada de um mundo que já é em si degradado, problemático, como é o nosso país. Como também no Bebel, em que, não só ela, mas todos os personagens, queriam fazer uma imagem bonita dela e do mundo. Exatamente, disso não há dúvida. Agora, há uma preocupação, não do sujo, mas do limpo dentro do sujo. Se você vê, por exemplo, o tratamento que tem O Profeta, não é de limpeza, mas é de enquadramentos capazes de passar a verdade desse filme, essa grande contradição. Parte do quê? O que é o profeta? Ter que passar fome para comer, ter que passar fome para viver. A fome é toda motivação. O precário, o pobre, é o ponto de partida para que esse filme seja um filme capaz de ser visto. Você vê aquele enterro, não é um enterro real, entendeu?, tosco, sujo. É um enterro armado, tem toda uma precisão de espaço, de cruzes, eu vou buscar um cemitério que é uma loucura, num local absolutamente louco, que é um cemitério imenso onde só tem cruzinhas mesmo, não tem quase nenhum túmulo. Então tem tudo isso. Eu vou buscar um cenógrafo que é um homem que fazia ópera, entendeu?, ele era cenógrafo do Teatro Oficina, do Arena... Eu tenho o nome dele aqui... É o Flávio Império? É, o Flávio. Então há uma preocupação, vamos dizer assim, de forma, ele tem um formalismo, tem que ter, senão eu não ficaria trabalhando com tratamento de idéias para cada situação: o circo é de uma maneira, a viagem deles por aqueles montes é outra, muda-se as lentes... Muda-se várias vezes, e de maneira bem marcante, a linguagem, o tipo de enquadramento... Claro, a cidade é um documentário "bruto", as pessoas são reais, não tem ninguém que foi pago para fazer aquele negócio: ficamos lá esperando que surgissem os romeiros, aqueles caminhões são os romeiros que chegaram neles para a festa... Essa que é a parte improvisada do filme, pois no resto você já disse que se seguiu rigorosamente o roteiro, mas que nessas partes você teve que improvisar. Claro, nós queríamos ele pregado numa cruz, mas não sabíamos onde nem com quê. A cidade era uma cidade de um parente, o prefeito era parente do Flávio Império, primo ou não sei o quê, então fomos para lá. Fomos visitar, é uma cidadezinha que tem uma topografia fantástica, um cruzeiro em cima do morro – e que tem uma tradição cultural de uma festa, que é uma festa do santíssimo, não sei o quê... E como é que foi a produção do filme? A gente vê que é um filme bastante barato – eu li que custou muito menos que o Bebel – mas também é muito bem feito, com uma linguagem muito boa: é uma produção barata mas que a gente percebe que tudo que você queria fazer está no filme. Eu tinha um carro, um Fusca: eu vendi esse carro. Com a venda do carro, que eu não sei mais quanto custaria, uns 2, 3 mil reais hoje, sei lá... É o filme mais barato que você possa imaginar. Depois eu emprestei o equivalente ao carro num banco, eu emprestei pessoalmente, e aí com esse dinheiro compramos, basicamente, a parte de cenografia. O equipamento era da ECA, foi o primeiro filme feito com o equipamento – eu que tive o contato, eu era professor da ECA. Trouxemos esse equipamento, tiramos da caixa, fizemos um teste com um documentário e depois, em seguida, filmamos O Profeta. Então, o equipamento era da escola, os alunos tinham seus carros, cada um fazia produção; o Claudio Portioli e o Antônio Meliande, que eram câmera, maquinista, eletricista, essas coisas, como era meus amigos, foram de graça, para pagar depois – o Flávio também. Todo mundo era de graça, era de certa maneira uma cooperativa: eu me comprometi, ao terminar a filmagem, fazer o pagamento de todos. Então, tinha o dinheiro para a produção, para comer, nessa cidade ficamos numa casa da Light, na época, um pavilhão imenso – porque a companhia de luz tinha saído do local, então nos deixaram lá um imenso pavilhão e nós fomos para lá, com colchonetes, essas coisas, não tinha hotel nem nada. Praticamente, a produção foi muito pouca. O negativo foi cedido a mim pelo Osvaldo Kemeny, dono da Rex Filme, que era um negativo Fuji – foi a primeira vez que se filmou com Fuji em branco-e-preto, e ele queria fazer um filme demonstrativo, e ele mesmo revelou o negativo porque tinha interesse que o filme tivesse um bom padrão, tanto que ganhou um prêmio, o Coruja de Ouro de fotografia, e ele usou esse prêmio como propaganda do material Fuji. Eu não tive um tostão a mais do que aqueles dois, da venda do carro e do empréstimo no banco. Fora isso, dinheiro para a gasolina, comida... O filme foi feito em quatro, cinco semanas. E Você decidiu dublar o Mojica com outra voz também... Foi por que o personagem do Ali Khan tem muito a ver com o Zé do Caixão, até mesmo pela própria temática? É, eu dublei com o Paulo César Pereio. A voz, essa idéia de dublar, veio primeiro porque o Pereio ficou devendo a mim, ele ia fazer o delegado do filme. Acontece que ele vinha do Rio, nós tínhamos marcado numa estação próxima de onde nós estávamos, quer dizer, uns 80, 60 quilômetros mais ou menos, e o trem pára em 3 ou 4 cidades entre o Rio e São Paulo. E o Pereio pegou um trem noturno, que saía lá pelas 11 horas, para ele parar, eu não lembro em qual cidadezinha, era uma cidade pequena. E o produtor foi esperar, parou o trem e ele percorreu os carros, mas não se conseguiu achar o Pereio. O Pereio dormiu, não sei o que aconteceu, e foi parar em São Paulo. Quando nós soubemos que ele tinha ido parar em São Paulo, eu disse: olha só, você tinha que filmar no dia seguinte. Então eu filmei com outro, esse era o meu assistente de produção, o que faz o delegado. Foi o Heládio Brito? Heládio Brito. Era meu amigo, e foi através dele que eu emprestei o dinheiro num banco, numa cidadezinha perto de São Paulo. Enfim, ele ficou com essa dívida, o Pereio. E porque eu queria diferenciar. Senão ficaria muito parecido... Ficaria, então eu chamei o Pereio, ele topou e veio fazer a dublagem E nessa época o Mojica já era super famoso, era talvez o cara mais conhecido pelo público. Tem até um dos filmes dele, que é o Exorcismo Negro, em que ele faz o papel de si mesmo, de Zé Mojica cineasta – e rola no final uma briga genial entre criador e criatura, entre o Mojica e o Zé do Caixão. Não é qualquer um que pode fazer isso. É isso mesmo. O Mojica, eu já tinha certa amizade com ele, ele gostava muito de mim porque em 65 eu fazia uma página de crítica cinematográfica no Jornal da Tarde – e eu era editor da página e uma vez ou duas por semana fazia uma boa matéria sobre cinema. Logo três ou quatro meses depois que o jornal estava nas bancas, eu soube então que o Mojica estava filmando Esta Noite Encarnarei no seu Cadáver – e fui lá, na sinagoga onde ele filmou, e fiz uma matéria, foi a primeira matéria, vamos dizer, num jornal que não era um dos jornais de sangue, a primeira matéria "séria" sobre o Mojica, fiz uma entrevista com ele, tiramos uma foto. E desde essa época ele ficou gostando muito de mim. Então eu fui falar com ele: eu quero que você faça um filme comigo, não é o Zé do Caixão, é um outro papel, você topa? E ele topou. Eu me lembro também que saiu a crítica do filme, mas não lembro quem foi que escreveu. Porque eram três críticos: eu, o Antônio Lima, o Rogério Sganzerla, que é uma cabeça privilegiada Pena que é difícil o pessoal dessa geração não consegue mais filmar – ele, o Candeias, o Mojica... Ninguém consegue. E você não filmou mais por que? São as circunstâncias. Eu fui para a televisão em 71, aí fiz O Jogo da Vida, depois fui para Bandeirantes e lá eu fiz três longas – que são filmes que ninguém conhece, ninguém viu, só naqueles anos, eram telefilmes. Em 81 eu fiz O Boi Misterioso e o Vaqueiro Menino [rodado em 16 milímetros] e depois eu fui trabalhar na Manchete, em 83... enfim. E também sem condições, porque ficou difícil produzir, eu também não tive muita felicidade nas produtoras, nas empresas que eu montei junto com sócios – eu acho muito complicado, eu não tenho uma competência administrativa e empresarial, não sou empresário. Se eu tivesse como pai um Barreto da vida... Mas você tem vontade de filmar ainda? Eu tenho, estou com um projeto aí e vamos ver se sai. Mas também tem a sobrevivência, eu tenho que trabalhar para viver. Eu não posso ficar esperando que alguém venha me produzir. Não é possível, você não vive de cinema. Por que o Candeias não filma mais? Porque ele tem que trabalhar. Parece que ele tem vários roteiros prontos mas não consegue rodar de jeito nenhum. O último filme dele, O Vigilante, que é um dos melhores dos anos 90, só foi feito porque além de ser ridiculamente barato ele conseguiu um prêmio da secretaria de cultura de São Paulo. E você vê: ele é fotógrafo, é montador, ele faz tudo. Voltando ao Profeta: o filme foi lançado no meio da Copa do Mundo de 70, em junho. Quer dizer, enquanto a seleção ganhava o campeonato de futebol, no seu filme o Ali Khan era campeão mundial da fome – o que não deixa de te sua ironia, ainda que involuntária. Eu acho que foi... (risos). E como é que O Profeta foi recebido e como foi o lançamento do filme? O filme foi bem... quer dizer, bem para um filme daquele tipo. Ele passou no Cine Ouro, que era um bom cinema da cidade, passou também Largo Paissandu. Agora, é o tipo de filme que não... Eu até fico surpreendido com essas críticas que você me mostrou, porque eu não me lembrava mais. Agora, porque ele não entrou dentro de um processo de análise, isso eu não posso te dizer. Eu não entendo; porque eu acho que ele vem fechar um ciclo. Talvez porque, naquele momento, 69-70, já se está saindo para uma outra coisa, quem sabe ele ficou meio defasado – ele devia ser um filme de 66-67, por aí. Ou até antes do golpe, talvez, 63. Eu não sei, eu acho que naquela época ninguém poderia ter feito, 63-64 ainda não se estava preparado. Eu acho que ele está dentro de uma linha, de uma evolução do cinema brasileiro. Em 63, por exemplo, eu acho que o Reichenbach não poderia ter dito: "É preciso partir do péssimo para chegar ao ótimo", mesmo que essa seja uma idéia que já existisse em germe. É, isso sem dúvida. Essa idéia não estava muito bem formulada ainda. Eu acho que isso começou quando as pessoas perceberam que aquele projeto de nacional-popular mais tradicional não estava dando tão certo assim, que o projeto entrou me crise. É a linha de Terra em Transe, O Bandido da Luz Vermelha... e na qual O Profeta da Fome é muito significativo. É claro, isso tem uma razão de ser. Sem dúvida, o filme é resultado de idéias que estavam no ar – nesse sentido ele é intuitivo, uma intuição natural que ocorre. E tem também todo um processo de você buscar compreender uma realidade, tentar compreender é que é o processo do filme. É toda uma tentativa de compreender como é possível, e a partir de um personagem, a idéia se transmite através da vida, de um cara, e que isso que é o cinema, a gente não trabalhar com a teoria, mas sim resultar na teoria – quer dizer, você que tira depois a sua interpretação, não é? Ontem, por exemplo, eu vi um filme da Ana Carolina, Amélia, que é um negócio fantástico como ela consegue montar através dos personagens toda uma visão do Brasil de hoje. É um negócio impressionante – e porque? Porque ela utiliza gente, atores de carne e osso, não meros símbolos, gente que grita, esperneia, é um negócio fantástico, é um filme que você vai ver que vai dar uma renovada absolutamente fantástica no cinema brasileiro, pode estar certo disso. Sobre o final d’O Profeta, naquela oposição do Ali Khan com a imagem do homem chegando à Lua, eu já li você falando que essa era uma visão meio pessimista das coisas, que era uma pura oposição de duas realidades completamente diferentes. Você não acha que essa é uma visão racional, lógica demais? Eu acho que essa é uma leitura muito fechada – porque o filme termina de fora aberta. Mas levando por um processo absurdo, é toda uma lógica do absurdo, isso para criar no público um impacto, uma perplexidade. De que maneira o público sai desse filme? Isso é uma coisa que eu nunca tive a oportunidade de saber. Eu vi agora, lá em Icaraí as pessoas ficaram perplexas: "Porra, mas o que é isso?" (risos). Há um impacto: no final esse cara termina no lixo, vivo, claro, afinal ele é o campeão mundial, tem uma experiência e uma técnica de permanecer vivo indefinidamente – quer dizer, esse é um raciocínio que leva ao absurdo da tese. Agora, a Lua, eu não tive idéia de fazer o contraponto com o homem na Lua, o que já estava dentro do documentário; é como se fosse aberto uma espaço para que ele visse que o universo é muito maior. Eu não tive uma idéia muito precisa do porquê daquele final. É um personagem que está ali vivo, ele pode continuar, a história pode continuar – a fome permanece. Se você for ver, hoje ainda é possível se fazer uma parábola como essa. Está tudo na mesma, os pelés existem, aquelas peregrinações a Fátima, sei lá, continuam, o povo continua com um comportamento passivo diante do mundo – não há muita mudança não. Entrevista realizada por Juliano Tosi leia a parte
1 dessa entrevista |
|