Entrevista com Maurice Capovilla (1)

 

Não deixa de ser uma bela evidência: poucas vezes como acontece na filmografia de Maurice Capovilla é tão marcante dentro de uma obra a evolução interior, a necessidade constante de se refazer, de se reinventar a cada momento para apurar o foco. O cinema como aventura em marcha, como ocasião de descobertas: é como se cada filme fosse um ensinamento que se tira da vida, como se encerrasse uma lição, para autor e para espectadores (a questão do conhecimento sempre presente: não é por acaso que Capovilla também é veterano professor de cinema). O cinema – como o próprio Capô gosta de falar, vocês vão notar na entrevista que segue – como aquilo que resulta, como resultado das experiências de vida. A experiência do cinema como "o jogo da vida": não é essa a metáfora escrita em todos os lugares da filmografia de Capovilla?

Nesse sentido, a progressão é clara: um cinema que cresce na medida que aprende a ficcionalizar o seu mundo, em que os limites entre a vida e a arte (todas as artes, sem a carapuça elitista: tudo é representação simbólica), parecem querer se confundir, convergir para o mesmo ponto. O espetáculo alienante mas maravilhoso do futebol (Subterrâneos do Futebol – lembrem-se: estamos nos anos 60...), as contradições de uma cultura de massa falsamente popular/democrática (Bebel, Garota Propaganda), o circo mais precário possível como parábola da miséria (O Profeta da Fome), a jogatina meio agressiva na sinuca dos botequins (O Jogo da Vida): todos como produtos do meio, como fantasias individuais que só parecem completar seu sentido dentro de um imaginário coletivo maior. O cinema e o mundo infiltrando-se por analogias, um se delineando a partir do outro: não é esse o ponto em comum, o princípio que move todas as "criaturas" de Capovilla? Eis o ponto a que queria chegar: Maurice Capovilla também como personagem que possui o ambiente em seus atos – e a força que anima, o meio em que Capô circula, não é o outro senão o cinema brasileiro. É esse o Capovilla que é preciso conhecer: como um personagem que tenta romper as barreiras, que luta contra a corrente das contingências de um meio em crise permanente (tanto quanto o circo d’O Profeta) atrás busca de si mesmo – isto é, do desejo de auto-realização.

É somente a partir desse dado que podemos compreender melhor sua carreira como um todo. Porque dificilmente poderíamos falar em um estilo Capovilla de filmar – mas com certeza não por demérito a Capô, pois não foi esse o terreno que ele escolheu para expressar sua coerência. Por mais partida que seja sua filmografia – ou seja, enquanto ela pode se processar com alguma regularidade – a evolução é bastante coerente dentro do quadro maior do cinema brasileiro (e, na verdade, essa dificuldade em se processar, em se fazer existir, só ajuda mais ainda a se construir esse paralelo com um cinema todo ele feito de tropeços e retomadas). Não é por acaso então que os filmes são bastante diferentes entre si, que cada um deles traz um estilo, uma maneira de filmar que é quase própria, e que não vai ser repetida na fita seguinte – mas não há nada de contraditório nesse movimento: como já foi dito, cada fita revela um momento, uma lição. Nos primeiros filmes, que são documentários (Meninos do Tietê, Subterrâneos do Futebol), o veio em que Capô se inscreve é o do chamado realismo crítico, um olhar que era mais comum dentro do cinema novo – que, cronologicamente, seria sua turma. No Bebel, Garota Propaganda, primeiro dos longas, não tem nada disso: Capovilla pega o universo da cultura de massa e cria um olhar menos externo ao objeto, de dentro do problema mesmo – foi inclusive um dos primeiros ensaios nesse caminho de questionamento irônico dos valores da indústria cultural, feito a partir do próprio instrumental dela. Em O Profeta da Fome, além da alegoria evidente e que foge completamente ao realismo, ou ao menos a certo tipo de realismo, tem muito da escatologia, do horror, há uma certa agressividade com o espectador mais comum ao cinema marginal. E sobre O Jogo da Vida, a gente pode dizer que ele tem uma linguagem ligada à Boca do Lixo, ao filmar o próprio ambiente dos salões de jogos, das ruas – o que tem uma importância fundamental dentro da construção do discurso do filme.

Entrevista com Maurice Capovilla

Os seus filmes são bastante diferentes: o Subterrâneos do Futebol não se parece nada com o Bebel, a Garota Propaganda, que também não é parecido com O Profeta da Fome, que tem um estilo bastante diferente do Jogo da Vida, e por aí vai. Como é que você vê hoje a sua obra nesse contexto maior?

Você tem razão, mas deixa eu explicar: cada filme, ou melhor, cada projeto, surge em função de circunstâncias. Na verdade, eu nunca me preocupei em buscar um estilo, buscar uma forma antes da situação, antes do problema, antes, vamos dizer, da inquietação, entendeu? O Profeta, por exemplo, surgiu em determinado momento e isto é que explica a busca daquela forma para aquele filme: a situação que eu vivia, a situação política, econômica, social, a minha vida pessoal, as experiências por que eu passei. Isto é que explica um pouco, vamos dizer, o que resulta; a minha expressão é o resultado das vivências pessoais e das situações que eu estava vivendo no momento. Começa com Meninos do Tietê: é o resultado, de certa maneira, da experiência que eu passei...

... na Escola de Cinema de Santa Fé, na Argentina?

É, na Argentina. Quer dizer, eu estava vendo, e participei inclusive na realização de documentários que tinham essa perspectiva de análise da realidade, de, basicamente, busca de um realismo crítico e popular, através de uma experiência do Fernando Birri. Então está muito clara essa influência, essa participação minha. A única diferença é que o filme, vamos dizer assim, é frustrado. O Meninos do Tietê é um filme de que eu não gosto, que eu acho um erro – eu cometi um erro fatal na realização, que se vê, claramente, qual é o conflito. A partir da experiência do Meninos do Tietê, onde achei que tudo estava errado, quer dizer, eu tinha errado tanto na proposta quanto na maneira de tentar fazer o filme e etc., eu fui fazer o Subterrâneos, que é, vamos dizer assim, a correção do caminho, a correção dos erros cometidos. Aí já foi com uma certa segurança, eu já sabia o que queria fazer...

E também o que não queria fazer.

E também o que não queria fazer.

É comum isso, não?

É comum. Às vezes sim, às vezes não, outras pessoas continuam no erro, permanentemente, achando que está tudo ótimo, não tem a autocrítica suficiente. Mas eu me sentia mal vendo o filme, inclusive agora, no Festival [de Cinema Universitário], eu sugeri que exibissem o filme inclusive para que o público, os alunos da universidade vissem por onde a gente deve começar: começa mesmo errando.

Sobre o Subterrâneos do Futebol, além de ser um dos primeiros filmes feitos com som direto no Brasil, você já disse foi um dos primeiros filmes a levar o cinema novo para São Paulo, junto com os outros três que o Thomaz Farkas produziu na época.

Isso é verdade. Porque até esses quatro filmes – que são o Viramundo do Geraldo Sarno, o Memória do Cangaço do Paulo Gil, o Nossa Escola de Samba do Manuel Horácio Gimenez e o Subterrâneos – basicamente o que tinha havido aqui era um curso de som com o Arne Sucksdorff, em que todos os alunos eram do Rio, menos um, que era o Vladimir Herzog, que veio de São Paulo.

O curso do MAM?

É, o curso do MAM. Mas mesmo com esse curso, não havia sido feito ainda um filme especificamente com som direto, com esse sistema de Nagra e etc. Na época tinha havido o Garrincha, que não era um filme de som direto com Nagra. Tinha uma entrevista com o Garrincha, mas foi feita dentro de uma rádio, com equipamento fixo, parado, dentro do estúdio – então não foi um filme de som direto na rua. Quando começamos o filme, em meados de 64, logo depois do golpe, rodamos esses quatro filmes com som direto mas ainda sem o equipamento que plugava o Nagra com a câmera – então a câmera girava numa velocidade e o Nagra noutra, não havia ainda o cristal, que é o elemento que faz a sincronização de imagem e som. Então nós chegamos ao final da mixagem com o filme que corria numa velocidade e o som na outra, e tivemos que fazer ajustes na mixagem. E foi, no conjunto, a primeira demonstração de uso direto do som da maneira, vamos dizer, sistemática: era um filme de som direto. Se você pegar o Viramundo, era um filme de som direto, baseado no som – o som é que era a linha dos filmes. O meu tem narração, mas no caso do Viramundo nem isso, então era a voz do homem que valia. Esse é o início do cinema documentário paulista, o movimento paulista nasce a partir dessa experiência do Farkas, desse grupo que se formou. O Subterrâneos era uma idéia antiga que eu tinha, então quando surgiu a oportunidade de nos reunirmos eu disse: vou fazer um filme de futebol – porque eu gosto, fui ex-jogador, no juvenil do Guarani, então vamos entrar por aí. Eu fiz uma proposta de roteiro, vim aqui ao Rio pedir autorização para usar o título, porque o título era do João Saldanha – "Subterrâneos do Futebol" era um livro dele, mas que não tem nada a ver com o filme, é um livro sobre a experiência dele com treinador do Botafogo. Ele me deu a autorização e nós rodamos durante quatro meses, acompanhando o time do Santos em todo o campeonato de 64 – e fora as entrevistas em torno que eu fiz, etc. Os filmes foram exibidos pela primeira vez juntos na Filmoteca do Museu, pré-Cinemateca Brasileira, e aí houve um impacto, porque até aquele momento não se tinha uma idéia de um documentário nesse estilo. Depois os filmes foram ampliados e reunidos no Brasil Verdade, mas muitos anos depois.

Em 68.

Enquanto isso eles passaram em vários festivais. E esses filmes criaram um movimento de produzir, o documentário ganhou aí uma certa existência. A partir do Subterrâneos surge a tentativa de fazer um longa. Eu tinha trabalhado na Última Hora e o Ignácio de Loyola ficou muito meu amigo, nós trabalhamos juntos no jornal – isso foi em 65. O Ignácio que é o autor do livro, que ainda não tinha sido editado, "Bebel que a Cidade Comeu" – o livro só foi lançado depois do filme. Ele me deu os originais, eu trabalhei em cima do material e mudei muita coisa do livro, com a autorização dele. No livro, ela não é uma garota propaganda, é uma menina que vai... tem uma outra conotação, enfim, ela vai fazer publicidade, mas não no sentido em que nós colocamos. Então, eu inventei um pouco a história inicial dela, dei uma mexida geral. Mas por que eu estava afim de fazer o Bebel? Porque já estava se discutindo naquele momento a mudança total em busca do mercado. No mesmo período, e associado a nós, a mim e ao Roberto Santos, o Leon Hirszman estava fazendo o Garota de Ipanema, que era um filme totalmente voltado para o público. Tanto que nós alugamos equipamentos em conjunto, a empresa do Leon e a nossa.

Nessa época essa era uma preocupação de todo mundo, não?, deixar de falar só para o mesmo grupo, que na verdade era muito pequeno.

QUASE todo mundo, nem todos. Se você pegar 68, 69, 70, havia o início de uma discussão geral em busca do mercado – e é bom que as pessoas dêem uma verificada nisso. Aliás, 65, 66, 67, por aí; em 68 houve o AI-5 e se deu uma volta para trás, quer dizer, esqueceu-se um pouco do problema do mercado. Mas isso não de uma maneira geral, foram alguns diretores. Você tem nessa época O Homem Nu, do Roberto Santos, tem os filmes do Roberto Farias, que têm uma linha mercadológica tradicional.

O Glauber e o Cacá Diegues declaradamente fizeram filmes que visavam um contato maior com o público; o Domingos Oliveira também começou a filmar nessa época Todas as Mulheres do Mundo, que foi um dos maiores sucessos do cinema novo.

O Domingos, exatamente. Mas é difícil você rotular, padronizar: as tendências do cinema novo eram muito amplas. A não ser que você se guie simplesmente pela linha do Glauber: se você olhar o Glauber como se ele fosse um mirante, como se fosse um humo, tudo bem. Tudo gira um pouco do Glauber mesmo, mas cada um dentro da sua lei, dentro da sua linha, da sua tendência. Então, eu me associei com o Roberto Santos nesse período, 1966...

Você também trabalhou no A Hora e a Vez de Augusto Matraga, não?

Eu fui assistente do Roberto quando ele voltou da filmagem, eu fui assistente de dublagem, é uma coisa mínima, era ver se os atores acertavam a sincronização. Eu ficava lá enchendo o saco do Leonardo Vilar, do Maurício do Valle, enfim... Mas eu estava próximo do Roberto desde muito antes, a gente tinha uma ligação muito grande, eu tinha uma admiração pelo Roberto. E acabamos montando uma produtora juntos, cujo primeiro filme foi o Bebel. Então, esse convívio com o Roberto e a discussão daquele momento é que gerou um filme como o Bebel, que, sem a pretensão de fazer uma crítica social, ou analisar o problema social, tem uma forma de cinema urbano quase tradicional. Evidente que não é um Khoury, não é um Walter Hugo Khoury, mas é um filme muito mais próximo, vamos dizer, do São Paulo S. A. do Person. O Person tem uma certa semelhança, a gente trabalhou junto também, tivemos muita amizade. Enfim, o que se discutia em São Paulo, e isso é que é preciso analisar com mais profundidade, o nível de preocupação e de propostas do cinema paulista nesse período é diferente do cinema do Rio. Com certeza. Nós tivemos ligações, eu tinha uma ligação muito grande com o Leon, trabalhamos de certa maneira sempre em conjunto. Mas o cinema carioca tem uma outra preocupação, além de ser muito mais, vamos dizer assim, muito mais rico, em termos de personalidades.

Mas isso já estava mudando naquela época, não? O cinema marginal, a Boca do Lixo...

Estava começando, mas ainda de forma muito incipiente. O cinema novo estava no Rio, isso como classe profissional e etc. Nós éramos ramificações de um movimento.

E como eram as relações de vocês de São Paulo com o Glauber, o Nelson Pereira...?

Eram muito boas.

Era uma amizade que tinha um contato mais efetivo?

Eu tinha um contato anterior porque a minha relação com o cinema carioca é diferente da do resto dos paulistas. Além do Roberto, eu tinha uma ligação com o Nelson, o Nelson e o Roberto eram amigos desde antes, desde a Maristela...

Desde O Grande Momento (1957-8), o primeiro filme do Roberto, que o Nelson produziu...

... Que o Nelson co-produziu junto com o Roberto mais a Maristela. Enfim, o Roberto tinha uma ligação com o Nelson, mas não com o cinema novo em geral. Eu tinha uma ligação direta com o cinema novo porque trabalhei na Cinemateca Brasileira – em 63 nós tivemos contato direto, eu vinha ao Rio de Janeiro para ver o que estava acontecendo, o que estava se discutindo, qual era a pauta de assuntos. A mando do Paulo Emilio Sales Gomes [na época, entre outras coisas, diretor da Cinemateca], para saber exatamente quais eram as propostas deles.

O Paulo Emilio tinha um pouco esse papel de centralizador, de chamar as pessoas para o debate, não?

É, com certeza, e os temas estavam sendo discutidos. Eu levava para São Paulo coisas escritas pelo Glauber para o Paulo Emilio, artigos do Glauber foram publicados no Estadão, no Suplemento Literário do Estado de São Paulo [em que Paulo Emilio assinava a página de cinema], artigos escritos aqui no Rio.

Normalmente esses artigos não saíam no Jornal do Brasil, na época dos bons tempos do Caderno B, quando havia crítica de cinema de verdade por lá?

Sim, saíam no JB, mas ele fez alguns artigos para o Estadão. Enfim, o David Neves, eu tinha uma ligação muito boa com o David, já conhecia um pouco o Joaquim Pedro de Andrade. Com o Glauber minha amizade não era muito profunda, eu tinha contatos com ele, mas... O Paulo César Saraceni, o Mário Carneiro... enfim, com esse pessoal eu tinha uma amizade direta, tanto que, quando eu me mudo para o Rio, eu estou dentro de um clima de amigos. Mas de uma maneira geral o cinema paulista, até um certo momento, não se convergia para o Rio.

O Person talvez seja o principal exemplo disso, ele não tinha contato nenhum com os cariocas, e até por isso talvez tenha sido meio que deixado de lado.

O Person tinha pouco contato, mas algum tinha, porque ele fez o Centro Sperimentale di Cinematografia [na Itália, por onde também passaram Mário Carneiro, Joaquim Pedro e Gustavo Dahl]. Mas não tinha uma amizade, era uma coisa muito fria. E, de certa maneira, o cinema marginal também surge com uma rebeldia, de certa forma atacando o cinema novo, você tem informações a esse respeito.

Tem a briga que hoje é famosa, após a primeira exibição de o Bandido da Luz Vermelha.

Isso, com o Julio Bressane... Enfim, houve um certo estremecimento. Também como resultado de uma competição entre São Paulo e Rio de Janeiro, sempre houve isso, tanto culturalmente quanto economicamente. Isso refletiu também no cinema. Houve uma crítica muito violenta também contra a Vera Cruz, contra o cinema paulista, essa crítica nós apoiávamos, nós fizemos movimentos contra a Vera Cruz, nós mesmos do grupo paulista, mas de qualquer maneira isso marcou. E o resultado é que todo o cinema da Boca do Lixo é um fenômeno, ao menos no início, estritamente localizado, regional.

Não é nem na cidade, é numa parte de São Paulo.

É, além de tudo... Depois, com a Difilm é que a coisa mudou: quando a Difilm se instala em São Paulo, coloca um escritório dentro da Boca do Lixo, aí a convivência do cinema carioca com o cinema paulista se intensificou, porque os cineastas cariocas iam lançar seus filmes em São Paulo – era um grande mercado, eles tinham que lançar os filmes lá, então passavam uma ou duas semanas rondando ali pela Boca, pela rua do Triunfo. Bom, a sua pergunta se abriu...

Essa era um pouco a minha intenção... No Bebel, tem o personagem do universitário...

O Marcelo.

Isso, o personagem do Geraldo del Rey, que namora a Bebel. Você faz ao longo do filme uma crítica muito grande sobre o posicionamento dele: tem uma cena que o repórter que corre atrás do passado da Bebel leva o Marcelo a uma favela à beira de um rio e diz: "O que você vai fazer aqui, então? Por que você não vai falar com eles?", e ele não consegue fazer absolutamente nada, ele vê que diante daquilo tudo não sabe como agir. E depois a Bebel, conversando com ele, pergunta o que ele quer da vida, como é que ele, que falava tanto, achava que ia mudar o mundo... Essa daí também pode ser vista como uma crítica pessoal, uma autocrítica ao Capovilla de Meninos do Tietê?

Não, não era... Quer dizer, eu não sei, esse personagem, eu tenho a impressão, ele está dentro do livro do Ignácio. É uma crítica, no caso desse personagem, a um certo elitismo da esquerda estudantil. Você vê que isso era antes de 68, era um momento em que a UNE estava fazendo aquele CPC etc. e tal, mas o estudante, de uma maneira geral, estava meio distanciado do processo, entende?, do processo político. Nós pertencíamos a uma visão que era a do Partido, até 65 eu estava mais ou menos ligado ao Partido, só fui sair depois da crise do CPC. Mas, enfim, a gente tinha uma visão de que – era uma besteira ideológica – de que a luta operária é que era mais importante, e que a luta universitária não existia, que os estudantes eram alienados. Agora, não se pode também pegar o personagem como um símbolo, como uma idéia generalizante, não era. É um personagem de um romance que eu... Eu acho que ele não pode ser considerado um elemento, vamos dizer, simbólico. Ele é um personagem real, que por acaso é um sujeito de classe média alta e que está perdido no mundo, que...

Que quer fazer alguma coisa mas não sabe exatamente o quê e nem como.

Exatamente, que está perdido, totalmente.

Nessa época, depois do golpe de 64, tinha muito isso, começaram a ser feitos vários filmes (Terra em Transe, O Desafio, O Bravo Guerreiro, As Amorosas) com personagens que representavam a parcela da sociedade a que os realizadores desses filmes pertenciam, com um olhar criticamente voltado para uma classe média urbana e supostamente intelectualizada – o que já assinalava uma mudança de caminho, de um reconhecimento de o que se fez antes não tinha dado tão certo assim.

Exatamente.

E você não acha que o Marcelo também simboliza esse movimento, ainda que de uma maneira um pouco menos direta?

É, simboliza. Mas esses personagens que estão na periferia da Bebel, eles são elementos para explicar o processo, eles são parte de um problema, eles em si não têm um valor absoluto, entende? Tanto ele como o Renatão, que é o personagem porra-loca, como o jornalista, que é o Paulo José.

O Renatão é o personagem do Maurício do Valle?

É. Enfim, eles são utilizados como elementos que, vamos dizer, iluminam o processo de trituração do personagem central, que é essa mulher que gira em torno desses personagens. É isso, eles não têm um valor em si, não são...

Então para você o Marcelo não simboliza uma parcela da sociedade?

É, eles não representam o conjunto, eles são personagens utilizados mesmo para você tentar explicar como é que ela foi passando por esse processo todo.

E pelo que eu li nos artigos da época, alguém diz que O Profeta era seu primeiro longa-metragem de fato, e você mesmo não me parecia ter em alta conta o Bebel. Você dizia que o Bebel era uma crônica de costumes bem normal, não muito mais que isso.

Talvez naquele momento eu tivesse um motivo para dizer isso. Hoje não, eu acho que tudo é válido. Eu acho que o Bebel, revendo hoje, é um filme que eu... algumas coisas eu não gosto, evidentemente, mas do conjunto eu gosto. É claro que quando falo isso em relação ao Bebel, é depois de ter feito O Profeta. Porque O Profeta, ele se gestou seguindo um processo de trabalho que eu tive, o filme começou a ser feito, a ser imaginado, em 68, quando eu fui para... Bom, primeiro eu fui a Pesaro, ao Festival de Pesaro e fui preso. Lá eu fiquei quatro dias dentro da prisão, porque nós fizemos um grande movimento no Festival – era logo depois do maio de 68 em Paris. Os estudantes estavam na Europa toda mobilizados para fazer eventos capazes de chamar a atenção, e o Festival de Pesaro é um lugar ideal: primeiro porque era produzido, coordenado, por uma cara que era um socialista bem ligado à toda a esquerda, e dentro de uma cidade cujo prefeito era fascista – e esse festival se realizou ali: sempre houve um conflito permanente do Festival com a cidade, com os carabinieri e tal. Bom, você imaginou o clima. Eu fui com o Bebel, e nós chegamos lá em um grupo: foi o Saraceni, Leon, Rudá de Andrade, foi um grupo de brasileiros nesse festival, que era muito interessante. Quando chegamos já havia um clima de conflito, porque havia uma comissão já organizada. E tinha os cubanos, foi o primeiro contato que nós fizemos com os cineastas cubanos: estava lá o Julio García Espinosa, o Alea e mais dois ou três que eu não me lembro hoje. Estava o Fernando Birri também. E se constituiu ali pela primeira vez um encontro latino-americano de cineastas: é a primeira vez que se encontravam todos os cineastas latino-americanos dentro de um festival de esquerda. E os estudantes, franceses, alemães, todos os europeus que vieram ao festival, fizeram uma proposta a essa comissão que se organizou de cineastas latino-americanos para que houvesse o boicote do festival. Nós dissemos: nós viemos aqui para mostrar nossos filmes. Estava lá o La Hora de los Hornos, para passar na noite do dia seguinte. Todos os filmes: era um festival fantástico. Eles queriam paralisar, fazer uma greve do cinema: então não pode exibir os filmes. Chegou-se a conclusão de que tinha que se fazer o festival, mas com uma manifestação pública, na rua. O festival começou na parte na tarde, exibindo o Paralelo 17, que é um filme sobre o Ho Chi-min, um longa-metragem do Joris Ivens que já começou agitando a platéia. Ao terminar essa sessão, os estudantes fizeram uma manifestação diante do cinema e a polícia veio e prendeu três estudantes. À noite, antes da sessão do La Hora de los Hornos, organizou-se uma comissão para ir à polícia tentar soltar os estudantes. O filme é exibido normalmente, e ao final da sessão voltou a comissão dizendo que os estudantes não foram soltos. Então essa massa toda, vendo a cara do Che Guevara na tela, saiu para a rua. Houve uma passeata em torno da cidade com, sei lá, umas mil pessoas – uma passeata que Pesaro nunca tinha visto até aquele momento. A polícia fez uma barreira na praça, houve um confronto com bombas de gás lacrimogêneo e o diabo a quatro. Os participantes do festival se esconderam dentro do cinema, que era numa espécie de subterrâneo – e os policiais começaram a jogar bombas de gás dentro do cinema e nós tínhamos que sair correndo, passando pela praça. Numa dessas saídas, prenderam a mim e a Carlos Alvarez, um colombiano, eu e ele ficamos presos – junto com um bando de estudantes, fomos colocados numa cela comum e ficamos lá três dias. Só aí é que se realizou o desejo dos alunos, porque houve uma greve geral da Cinecittà, parou todo o cinema italiano. Mas, enfim, essas experiências de 68 é que me influenciaram quando eu volto ao Brasil. Eu e o Leon começamos a fazer um projeto de filmar as passeatas, que já começavam a surgir em São Paulo – foi antes do AI-5, quatro, cinco meses – eu organizei uma equipe com o pessoal da UEE, da ABC, aquele pessoal, filmamos algumas das passeatas e chegamos à conclusão de que não tinha muito sentido, porque nós estávamos dedurando os próprios participantes – se por acaso isso caísse na mão da polícia. Da mesma forma que no Rio o Leon não conseguiu. Mas o resultado desse clima de 68 é que eu fui para a UnB, tentar reconstruir lá o Instituto Central de Artes, a Escola de Cinema do instituto, e lá eu peguei o AI-5. Durante esse período de 68 que eu fiquei lá, de julho até novembro, eu terminei de escrever o roteiro – porque eu tinha um esboço feito com o Fernando Peixoto em São Paulo, tinha feito uma estrutura básica, e lá, em contato com a universidade, com aquele mundo novo da UnB, que tinha todo um projeto, um clima de pessoas com que eu tive contato, eu recomecei... O clima da universidade me levou a aprofundar um esquema que de certa forma já estava desenvolvido no primeiro tratamento. Lá eu encontrei o maestro Rinaldo Rossi.

Que faz a música do filme.

Que faz a música, para você ter idéia, ele faz a partitura da música junto comigo, no roteiro – quer dizer, não é uma música posposta, não é colocada depois do filme pronto: ela foi feita junto com o roteiro, para cada seqüência ele imaginou a música e escreveu a partitura. Evidente que ele colocou três ou quatro coisas mais tarde. Mas basicamente aquilo que estava sendo imaginado foi a música do filme. Então, esse clima de Brasília é que resultou n’O Profeta. E então eu voltei a São Paulo, no final de 68, e quando começou 69 eu falei: eu vou fazer esse filme de qualquer maneira. Voltei para a ECA, que era minha profissão na época – eu estava cedido à UnB – e dentro da ECA, com os novos alunos, com o primeiro grupo de alunos da ECA eu comecei a articular para produzir o filme. É um filme feito basicamente com alunos da escola e quatro pessoas que eram profissionais.

Só voltando um pouco: o Bebel teve um problema com a censura por causa da cena que o Renatão espanca um deputado nordestino, não? O Paulo Emilio comenta alguma coisa a respeito disso num artigo, mas pelo que eu vi, no final das contas, a cena não foi cortada.

Não, não foi cortada. Aconteceu o seguinte: no Festival de Brasília, houve um escândalo porque alguns deputados estavam na platéia e, entre eles, tinha um deputado nordestino, evidente, era natural. E o cara voltou no dia seguinte, fez um discurso lá na câmara de deputados, e criou-se um clima muito ruim. O filme ficou parado na censura durante um tempo, mas depois foi liberado. Eu acho que houve um corte, talvez, numa palavra, eu não me lembro exatamente o quê.

É, eu li você falando que teve um corte muito pequeno.

É uma frase que, se eu deixasse, realmente ficava mal.

Você comenta também que O Profeta não teve problema, mas que n’O Jogo da Vida você teve que cortar uns palavrões.

É, teve que cortar uns palavrões, eu não me lembro exatamente o que mas eram uns palavrões.

É um problema parecido com o do Rio, 40 Graus: também tinha um deputado assim no filme. E eles usaram outros pretextos, entre eles a de que o filme era mentiroso, porque no Rio não fazia 40 graus, que não tinha aqueles garotos andando descalços, umas coisas absurdas.

É, isso mesmo. Aquela seqüência em que o deputado chega na cidade, pega um carro e tudo mais. Mas na época, por incrível que pareça, a censura era muito maleável.

Até o AI-5 ainda era, não?

É, depois teve uma certa repressão. Mas O Profeta passou sem problema, porque eles não entenderam, e não chegava, eles também acharam que não o filme chegava a uma grande massa e que não era uma crítica direta: era, sei lá, uma reflexão sobre o assunto.

Já que a gente está falando em censura, tem outros dois filmes de que você participou nessa mesma época e que sofreram grandes problemas, ficaram proibidos durante vários anos. O primeiro deles é O Despertar da Besta, dirigido pelo Mojica. Você faz uma ponta como um jornalista que participa de um debate sobre drogas num prgrama de televisão barato, são quatro jornalistas: você, o Reichenbach, o Callegaro e o Sganzerla. Como é que foi isso?

E o Antônio Lima também, não?

Pode ser, eu acho que ele era o promotor que participa do debate.

Eu era amigo do Mojica, tinha feito umas matérias com ele na época do Jornal da Tarde, então nós ficamos muito amigos. Quando ele filmou, nós estávamos ali na Boca do Lixo, naquela região de cinema, e ele me convidou para participar e eu achei ótimo.

Esse filme ficou interditado mais de dez anos, não? Ele só foi exibido em 80 e pouco.

Exatamente, mudou de título e tudo.

É, ele foi lançado como Ritual dos Sádicos.

Eu nem cheguei a assistir direito ao filme, para você ver. O outro filme qual é?

Ele foi lançado em vídeo faz pouco tempo, vale a pena assistir. O outro filme é o Vozes do Medo, aquele filme em episódios idealizado pelo Roberto Santos.

Ah, sim. Esse filme é o seguinte: o Roberto coordenou junto ao César Memoro Junior, que era dono de uma produtora chamada Links Filme, produtora de comerciais muito grande, era a maior produtora dese período. E o Roberto tinha uma relação com o César muito boa, inclusive fazia alguns comerciais para a empresa. Isso já foi no período da escola, já no terceiro ano, 70, 71, por aí – o período mais duro da repressão. Ele reuniu amigos e colaboradores, alguns ex-alunos, como o Aluisio Raulino, Plácido de Campos Júnior, Roman Stulbach, e fez esse filme em episódios que é um dos filmes mais interessantes, eu acho que é um dos filmes mais inquietantes do cinema paulista desse período. O Roberto coordenou, fez dois ou três episódios e distribui para os amigos fazerem o que quisessem.

Sob o tema do medo, não?

Mas o tema era muito aberto, era tão amplo que cada um fez uma interpretação do tema a partir das suas idéias. Não houve uma estrutura rígida, a temática era geral, era basicamente um filme que colocava em questão a ditadura e a repressão, quer dizer, era um filme contra a censura, e virou realmente um filme que parou durante meses.

E quando foi exibido cortaram dois episódios.

Mas não era o meu.

Como era o seu episódio?

O meu se chama Loucura: era uma jaula que eu construí dentro de um museu, era uma casa antiga, que tem um pátio redondo com pequenas portas em volta: é como se fosse uma prisão redonda. Eu construí dentro desse pátio redondo uma jaula redonda e a história é muito simples: é uma mulher vestida e dentro da jaula uma mulher nua, como se a que estivesse dentro a jaula fosse louca e a de fora fosse uma médica. E elas se tocam, se agarram, até o ponto em que a mulher vestida de fora fica nua e a mulher de dentro da jaula fica vestida. E ele foi filmado todo com lente grande angular, então ele é todo deformado, é uma coisa louquíssima. Era uma proposta simbólica de analisar quem está preso e quem está fora: quem está fora pode ser tão louco – ou nu – quanto quem está dentro. Dentro do contexto do filme, essa era uma das interpretações do que estava se passando. E "vozes do medo" era a representação simbólica do que estava se vivendo, quer dizer, vozes amordaçadas em relação à repressão, que foi o momento mais duro, com o Doi-Codi, com as prisões e as mortes – isso foi pouco antes da morte do Vladimir Herzog. É um filme realmente que foi feito dentro do processo mais violento da política brasileira. E praticamente ninguém viu esse filme, é um filme praticamente sem conhecimento, sem análise, nada. Quando você analisa o momento político, esse filme talvez seja mais interessante, mais importante, do que todos os que foram feitos naquele período. E foi feito numa cooperativa total, ninguém ganhou nada, o equipamento era da produtora...

A ECA também não ajudou a produzir?

A ECA entra porque nós éramos de lá, o Roberto, eu também, alguns alunos. Este filme foi feito e interpretado como uma provocação, ele foi visto pela censura como uma provocação. E nem tanto pelos episódios, porque têm alguns que não tem nada a ver: tem, por exemplo, contos do Mário do Andrade adaptados – não estavam referidos diretamente à luta política e à repressão, simbolicamente era um filme contra a ditadura, mas não tinha luta armada, não tinha nada disso. Agora, tem um outro filme de que eu participei e você não sabe.

Qual!?

O Bandido da Luz Vermelha. Eu estou dentro de um carro conversível que fica parado numa praça, eu apareço e nem falo muito, duas ou três palavras. Eu estava lá com o Rogério, e ele veio e me disse: eu estou precisando de um figurante – e eu entrei no filme. Foi a minha experiência de ator.

Entrevista realizada por Juliano Tosi

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