Adolfo Gomes
Revista Contracampo

Quantos filmes você vê por ano ou por mês? O que pensa desta quantidade? Qual a sua relação com o circuito comercial?

Penso que o trabalho do crítico é ver cada vez menos filmes, como o Fritz Lang quando dizia, no final da carreira diante da perda da visão, que via as coisas mais claras. Para a geração da Nouvelle Vague que consolidou o termo cinefilia como uma maneira de viver, havia apenas 50 anos de cinema para explorar, era preciso ver tudo. Hoje em dia, ver muitos filmes é ver de maneira difusa, dispersa. Nossa visão é limitada pela vertigem das imagens, então é preciso ver menos. Um trabalho importante do crítico é saber escolher o que ver. Não ver um filme para ter uma opinião, para dar sua opinião, mas ver um filme que o estimule a dar uma opinião, a escrever sobre ele. Isso não quer dizer necessariamente que o filme tem que ser bom ou ruim. Mas um filme que gere ideias. O Proust costumava dizer que para interpretar os sentimentos era necessário, antes de tudo, transformá-los em ideias, "convertendo-os em seu equivalente intelectual". Gosto de pensar que é isso o que um crítico faz, daí que parafraseando o Bernanos, não há o reino do cinema de arte e o reino do cinema comercial ("Não há o reino dos mortos e o reino dos vivos, só há o reino de Deus e todos estamos dentro dele") para quem procura o cinema. Essa distinção é uma imposição de mercado, um álibi artístico, um engano, é para quem não tem fé no cinema, na capacidade do "vento soprar onde quer". Acredito que a cinefilia atualmente corresponde a pensar muito sobre um filme e não ver muitos filmes.

Que qualidades você valoriza em um crítico?

Tudo que o distancia do cinema. Por isso não sou um bom crítico. Só tenho o cinema e o "cinema é para quem não tem nada", dizia o crítico Rodolfo Brandão. O mais importante em um crítico é ter uma formação que ultrapasse o cinema. Trata-se de uma arte dos exteriores, teoricamente está tudo lá, não tem o que explicar, resolver, é visto. Então, é preciso estimular um pensamento em torno do filme, já que é uma atividade, a crítica, dos destituídos. Mas não quero retomar o velho clichê do "cineasta frustrado" ou apregoar a hoje messiânica interdisciplinariedade. Vejo a coisa de maneira mais prática: se você não tem só o cinema, é menos solitário, isso é claro, como crítico e pessoa. A solidão, em geral, não é uma opção, mas podemos aprender a conviver com ela, assim como podemos também, através do cinema, aprendermos a nos afastar dela em direção a outras coisas e artes. A crítica pode ser uma travessia, mas o grande crítico se sente mais à vontade com o seu destino, ele tem outros caminhos a seu dispor e não falo da criação, escrever um romance, fazer um filme... Deleuze dizia que Godard é solitário, "mas muito povoado por dentro". O que mais valorizo num crítico é perceber o quanto ele é povoado por dentro.

Enquanto crítico, você pensa no que ficará de um filme daqui a 10 anos?

Os filmes nos acompanham, às vezes é preciso envelhecer para compreender certas coisas. Só compreendi realmente os filmes do Buñuel depois dos 30 anos. É uma coisa minha, pode ser um retardo pessoal, mas o Cocteau dizia que os filmes também nos julgam. Assim, rever um filme 10 anos depois nos coloca numa espécie de julgamento do que fomos no correr daqueles anos. Acredito que a ideia de que o "filme ficou datado" ou "envelheceu mal" corresponde mais à nossa dificuldade em nos reconciliar com o passado do que ao filme em si. Mas isso é ótimo, porque a nossa vivência nos permite rever os filmes e a nós mesmos naquele intervalo de nossas vidas uma vez mais. Por outro lado, tão importante quanto saber o que ver, é saber o que rever. Do contrário, é melhor procurar a terapia do que o cinema para lidar com o que você já foi ou se tornou...

Como você avalia a influência da crítica no meio cinematográfico (realização, distribuição, público etc.)?

Pragmática e cínica, como de regra são as relações mediadas pelo interesse do mercado ou pelo egocentrismo. Muita gente busca numa crítica a tradução do que sentiu, como se o seu sentimento precisasse dessa legitimação pelo outro. Existem algumas coisas que só podemos fazer em dois, agora ver um filme, gostar de um filme, ter uma opinião sobre um filme, não estão necessariamente entre elas. Evidente que nos sentimos, em muitos casos, melhor acompanhados do que sozinhos, mas não pode ser uma imposição. Já é um pouco diferente para o realizador e o distribuidor, a depender do tipo de filme a que eles se propõem fazer ou distribuir. Ou seja, basicamente, se não há dinheiro para comprar espaços na mídia, para gerar interesse no público ou se a obra aparantemente não tem um apelo espontâneo, aí sim, a crítica é necessária ou requistada a cumprir uma espécie de papel comercial com status artístico, mas mesmo nesses casos é uma função restrita a quem se interessa por crítica de cinema ou ao próprio realizador. A verdade é que todos gostamos de ouvir coisas boas a respeito do que fazemos ou vendemos, mas a verdadeira influência surge da dissonância, do contraste, do embate... Neste sentido, acho que fica claro como a crítica tem pouco influência nos dias de hoje.

Quem é o público leitor de crítica? Você pensa de que maneira serão recebidos seus textos?

Acho que são os críticos menos arrogantes, aqueles que ainda não se consideram inteiramente autosuficientes... Basicamente são eles os que ainda se interessam em ler crítica. Antigamente, pela dificuldade de circulação dos filmes e na falta da obra, as pessoas recorriam à crítica para se atualizar. Hoje existem os torrents, variadas formas de compartilhamento de filmes que nos permitem ter acesso às obras que não chegam pelas vias tradicionais. Claro que, para a crítica, isso é péssimo. Não pelo componente corporativo, acho que isso nunca existiu, mas em razão do confinamento mesmo do pensamento sobre cinema, quando é sempre bom um arejamento. Assim, não tenho muita ilusão sobre a receptividade dos meus textos. Em 20 anos de crítica o que mais me orgulho ainda são dos filmes que consegui exibir, trazer ao Brasil... No fundo a crítica é cada vez mais uma atividade solitária e anacrônica... E não por opção... Ainda assim a acho necessária, como exibir os filmes em 35mm... É um traço de uma era em vias de desaparecimento. O que virá depois da crítica? Acho que já veio: facebook, twitter.

Você considera que a crítica é influenciada pela visão política e por valores pessoais? Como você avalia isso?

Tem que ser, a crítica não pode ser impessoal, nem o jornalismo nunca foi imparcial, a menos que haja um componente econômico que imponha uma neutralidade. Em um mundo em que quase todos têm meios de expressar a sua opinião, é paradoxal cobrar de alguém que abra mão dos seus valores e convicções políticas ao escrever sobre um filme. O problema é que isso - ter uma visão política ou valores pessoais - foi esvaziado, banalizado, é tão anacrônico quanto a crítica de cinema, mas fundamental. Alguém duvida que uma espécie em extinção é importante? É preciso preservá-la, como a crítica. No momento, estamos todos como numa Arca de Noé, ficaram apenas os nossos vestígios...Porém, isso já é alguma coisa.

O que o leva a ler/escrever uma crítica?

O cinema. É tudo que eu tenho. Não sou religioso, nem me drogo. E é terrível, para não dizer impossível, viver sóbrio, encarar o mundo sem algo além das pessoas, que a gente pode perder a qualquer momento. Consola pensar que o cinema vai sempre existir e me devoto a ele escrevendo sobre o efeito dos filmes na esperança de que isso o façar perdurar, nem que seja só para mim, como lembrança. Não é que escrevo para mim mesmo, escrevo para o cinema, como quem faz cartas para quem ama - e se permite às vezes ser tolo e sentimental. Fico com escrúpulos de usar a palavra amor, mas se por um momento pensarmos no que dizia Santo Agostinho: "a medida do amor é amar sem medidas". É isso, entregar-se a algo sem medidas, o que evidentemente não me faz um bom crítico, como nem sempre amar faz da pessoa alguém melhor. Pode ser o contrário. Também para o crítico. Para mim, é uma maneira de estar perto, de pensar sobre o cinema, de ter uma sobrevida após a projeção. Não deve ser um parâmetro para um crítico, aliás diria que é o que o crítico deve evitar. Mas é o que faço. Talvez outros façam também... Talvez merecêssemos desaparecer, não ter influência nenhuma, não sermos lidos...

Considera que, no seu trabalho crítico, há uma diferença de abordagem para os filmes brasileiros?

Com certeza, entendemos com mais acuidade componentes linguísticos e culturais, e como estamos inseridos no mesmo ambiente, há uma sensação de fazermos parte de uma mesma realidade, portanto, estamos mais sensíveis na adesão ou na irritação. Ao mesmo tempo, há menos curiosidade e surpresa, o que também pode nos afastar dos filmes brasileiros contemporâneos. É algo complexo, pois não se trata apenas de uma questão de procedência e identificação, pois quanto mais acumulamos experiências e conhecimentos sobre determinado assunto, país ou estilo cinematográfico, nossa visão sobre a obra é impactada e, portanto, a abordagem muda.

Diga honestamente o que você pensa do panorama da crítica de cinema no Brasil hoje. É positivo ou negativo?

O Sternberg costumava dizer: "Não se pergunta para a galinha qual o sabor da canja". Como leitor e crítico, leio menos, escrevo menos, mas também vejo menos filmes, parece que estou num filme do John Huston, como gostava de dizer o Truffaut a respeito do declínio irreversível na obra do cineasta norte-americano. Se pensar numa panorâmica, diria que vejo um céu fechado, o prenúncio de um naufrágio, mas sobretudo sinto o desejo de encontrar alguma margem para atracar. A imagem que Langlois reteve de quando era criança e viu sua vila se desfazer em chamas e as pessoas tentando salvar o que tinham colocando seus pertences em barcos. No barco dos críticos estão os filmes. São eles que desejamos salvar. Os críticos não são como Langlois, não têm esse trauma profundo a nos impulsionar à preservação. Mas deveriam. Os críticos dependem dos filmes. E que filmes e críticos temos no Brasil nos dias de hoje?


 Abril de 2013