Debate sobre a Crítica

QUEM LÊ A CRÍTICA? PARA QUEM A CRÍTICA ESCREVE? / RELAÇÃO DA CRÍTICA COM O UNIVERSO DO CINEMA


Calac Nogueira: Para começar, acho que poderíamos falar um pouco do momento vivido pela crítica hoje. Sinto que parece haver cada vez mais um sentimento de desimportância, quando não um certo desprezo mesmo, com relação à crítica - talvez tenha sido sempre assim, os críticos sendo sempre odiados, é algo a se discutir. Mas, falando de hoje, é relativamente comum ouvir pessoas dizendo que "odeiam os críticos." De onde vem esse ódio? Dentre o público, há tanto os que detestam a crítica de jornal como os que detestam o tipo de crítica que praticamos na Contracampo. Os realizadores, por sua vez, só parecem levar em conta os críticos quando lhes é conveniente. O "mercado", por razões que lhe são naturais e evidentes, tem os críticos como inimigos. Nesse contexto de conflito de interesses e de egolatria entre realizadores, críticos e espectadores, eu me pergunto: para quem escrevemos? Talvez esteja indo rápido demais aqui, mas com alguma frequência tenho a impressão de que os críticos - sobretudo os de internet, como é o nosso caso - escrevem apenas para os próprios críticos. 

Essa a minha sensação hoje. Gostaria de saber se sentem algo parecido e o que pensam disso.


Adolfo Gomes: A essa constatação, acrescento outra que me ocorreu há pouco tempo, quando vi o último trabalho do Julio Bressane, O Batuque dos Astros, uma produção do Canal Brasil selecionada para o Festival de Roma e exibido no Festival Cine Futuro em Salvador. Após a projeção e pensando neste pequeno e assombroso diário de viagem a partir dos lugares e poemas habitados por Fernando Pessoa, ficou claro para mim um sentimento que talvez explique o motivo de até hoje nunca ter conseguido escrever sobre a obra de Bressane, a despeito do meu amor irrestrito por ela: os filmes dele prescindem da crítica, assim como Herzog dizia, no início da carreira, prescindir da história do cinema para filmar. O que quero dizer com isso é que, às vezes, embora seja raro, alguns filmes já trazem implícito na sua construção, na forma e estilo, uma crítica, uma reflexão sobre si, mas, principalmente sobre o cinema em geral, que torna o nosso trabalho quase redundante. Que fique claro: não se trata de um filme acima da crítica, hors concours, pelo contrário, é um filme que faz também da crítica sua matéria. Tenho essa impressão quando estou diante da filmografia de um Syberberg ou do Werner Schroeter e até de algumas fases do Godard, evidentemente. Diria, aliás, que talvez o Godard seja uma espécie de paradigma neste sentido. Então, considero que esse ódio e eventual isolamento da crítica seja provavelmente um traço contemporâneo, uma sintoma de uma certa saturação. Além do mais, hoje em dia é muito mais difícil escrever uma crítica do que no passado. Isso em grande parte devido à incorporação ou sequestro mesmo da crítica pelas pressões comerciais e publicitárias que atingiram inicialmente a imprensa escrita e depois se alastraram através da mídia em geral. Pensava-se então que talvez na internet fosse possível preservar essa liberdade de, por exemplo, não vincular a crítica à atualidade da exibição, ao pragmatismo do consumo cultural, ao mero guia. No entanto, podemos atestar que essa pressão existe também na grande rede. Enfim, se no passado a crítica tinha influência, era uma espécie de bússola ou legitimava uma forma de expressão artística por meio do cinema, desconfio que alcançava tudo isso organicamente, como uma consequência natural. Hoje é diferente, é condição imposta ao crítico ter influência, ser um formador de opinião, daí a necessidade de comentar os filmes no momento em que eles estão acontecendo, como se fôssemos repórteres ou cronistas. Mas considero positiva essa pressão. Ela também nos conduz à ruptura e é disso que precisamos atualmente: romper com uma tradição da crítica inviável no mundo de hoje. Como fazê-lo? Os grandes filmes sempre nos apontam os caminhos. Podemos começar por pensar com aqueles filmes que parecem prescindir de nós. É também uma forma de sermos mais humildes.


João Gabriel Paixão: Olha, confesso que não tenho exatamente o mesmo sentimento que você. Com certeza existe desprezo, ou deboche, galhofa, a respeito da crítica, da prosa crítica, da pretensão de erudição do crítico. Essa postura existe, a meu ver, desde sempre – se é para colocar numa escala menor, diria que ela existe, pelo menos, desde o momento em que tive interesse por cinema e por crítica. Esse tipo de preconceito ou ignorância não é exclusividade nossa, da Contracampo, mas se espalha de maneira geral a qualquer crítica, ao Rubens Ewald Filho, aos críticos do Globo, ao José Wilker etc. Não vejo nada de novo nisso. Sei que não é só isso que quis dizer. Acho que você poderia dar exemplos concretos, caso queira defender sua tese: esse fenômeno seria realmente mais atual? Se não é o caso, então há mesmo quem defenda a crítica dos jornais, mas não a nossa da Contracampo? Falta algo mais concreto para me convencer. No mais, acho o fenômeno tão comum, que já conheço há tanto tempo, que não me decepciona mais, a não ser em momentos francamente estúpidos e absurdamente boçais (Sergio Sá Leitão e os "mal-comidos"). Mas são momentos tão desprezíveis que prefiro não me lembrar. A boçalidade existe, infelizmente; preferível ver e acreditar no que existe de belo.

Sobre o mercado não nos dar atenção, não sei se isso é tão verdadeiro também. Depende do nicho. Eu particularmente me impressiono de existir uma mostra John Carpenter no Festival do Rio – não foi o "mercado", as majors dos filmes do Carpenter, que influenciaram a mostra; foi, com certeza, sua consagração na crítica e na cinefilia, o que permite às suas obras uma vida mais longa e duradoura. Ou então em relação à distribuição comercial de filmes como Holy Motors (quem fez a polêmica em Cannes senão os críticos?) ou, sei lá, Caminho para o Nada. Estou dando só exemplos, existem muitos... O mercado do "cinema de autor" é muito forte, e é o que garante a vinda pra cá de um Kiarostami. Aliás, o "cinema de autor" é uma conquista da própria crítica. Quer dizer, eu acho que a crítica dialoga sim com o mercado. Não quer dizer que esse diálogo seja ótimo – ao contrário, mercantilizando-se, o que fica mais é o burburinho, a modinha. De qualquer forma, para o bem ou para o mal, essa relação existe.

De forma que isso já é responder que eu não considero que sejamos lidos só por outros críticos. Somos lidos por quem se interessa por crítica, o que inclui cinéfilos, realizadores, distribuidores, alunos de cinema e de outras áreas, sei lá... Eu comecei lendo a Contracampo, como vários de nós aqui, antes mesmo de entrar na faculdade de cinema. Eu já vi o texto do Jr. "A Publicidade Venceu" ser transcrito em uma página de internet nada-a-ver com cinema. Eu certamente não escrevo um texto pensando que ele só será lido por críticos.

Aliás, pegando já carona no Adolfo (embora esteja aqui só respondendo ao Calac), algo que me decepciona é a crítica de internet. Afinal, essa ferramenta poderia permitir tirar exatamente os vícios que estão incorporados aos jornais. Mas não: é crítica do dia-a-dia, crítica que quer ocupar espaço, que quer "cobrir". Por que ela é assim? Já basta o jornal para esta função, que é profundamente mercadológica. Muita coisa existe para além do circuito comercial e dos festivais. A começar, existe nossa relação com os filmes, e há filmes que importam mais, que precisam importar mais que os outros. Não gosto do compromisso de ter que responder a qualquer filme, mesmo que não se tenha nada a dizer. Nesse sentido, se fosse lido só por críticos, isso seria péssimo, pois me passaria a impressão de ser lido somente para "checar" o que respondi aos filmes, numa atitude de ver o que o "colega" da profissão está fazendo, ou então se antenar nas tendências da revista. Deve ser por isso também que tenho a sensação que sequer sou parte integrante deste meio – da mesma forma, com a mesma distância, que outros devem ter com a crítica de jornal. Pode ser só a minha sensação, mas ela é sincera. Seja como for, felizmente acho que o diálogo entre o leitor, o crítico e o filme permanece possível, e existe. Não sou lido só por críticos: não é só uma constatação, mas também uma pontinha de esperança.


Nikola Matevski: Ódio aos críticos ou à crítica? Bem, na internet sempre tem as hordas de linchadores. A julgar pela natureza das manifestações – penso, por exemplo, no blog Inácio Araújo quando estreia algum Batman dirigido por Nolan – a questão é muitas vezes pessoal, nem passa pelo filme ou pela crítica. É um tipo de adesão ou rejeição que atropela o pensamento. A atividade continuada da crítica – do argumento, do juízo de valor, da manifestação do gosto – não sei se realmente suscita ódio. Diria, antes, que é medo e incompreensão. O que esses sentimentos provocam hoje é dificilmente uma aversão fulminante à crítica, mas um isolamento na liberdade do gosto individual, um conforto relativista que nos permite ignorar impunemente. É uma liberdade da ignorância, pois hoje tudo pode e todos estão certos. Para que se esforçar?  Talvez aí resida esse vírus da irrelevância. Se os leigos odeiam a crítica, é porque, mal ou bem, ela importa. Não é o que eu percebo quando digo para alguém que tento escrever sobre cinema: o que vejo em resposta é geralmente uma cara de interrogação ou indiferença. Talvez por isso a crítica hoje não possa ser muito mais que uma garrafa lançada no mar – que é, na verdade, um oceano imenso em que muitas coisas coexistem sem se anular e se revolvem num patamar mais ou menos igual. As mensagens serão eventualmente lidas por alguém e o que me preocupa é a natureza dessa relação. Isso também não exime a crítica de responsabilidade, evidentemente, e não implica no fechamento da crítica em si mesma. E aí me pergunto se, pegando carona no que disse o João nos últimos parágrafos, ao não permitir à crítica confundir-se com o jornalismo diário ou impedir ela de sucumbir aos automatismos dos hábitos, flutuações das modas e animação mútua entre colegas, não existe o risco de se subir na torre de marfim e simplesmente não responder àquilo que se passa com os filmes? Isso não seria uma forma de conforto? Aí também sinto a pressão, que não é a pressão que o circuito impõe por meio de sua agenda de lançamentos, mas a necessidade de ver melhor e responder ao cinema que está sendo feito. É o que ando me perguntando.


Wellington Sari: A crítica importa, atualmente, tanto quanto os filmes. Ou seja, muito pouco. Quem se importa com o cinema, além dos iniciados, ou aficionados, ou seja lá que nome se queira dar para esse gueto que tem o cinema como paixão? Quem gosta de filmes (ou FILMES) é visto como anacrônico, como antipático, como pretensioso. Em meio a séries de TV, com seus desfiles de cabeças declamantes de textos impecáveis, vídeos engraçadinhos de internet, videologs e outros "audiovisuais" (palavra que denomina tudo aquilo que não é cinema), gostar de algo que dura mais de 45 minutos parece ser um ultraje à agilidade com que se vive atualmente. É evidente que estou generalizando. No entanto, venho constatando um gradativo desinteresse por toda atividade intelectual. Não existe o famoso "meme" do "pedante"? Ora, a julgar pelo sucesso da brincadeira, podemos entender que pensar é coisa de otário.

As séries, a televisão como um todo, a escola, a internet, boa parte da crítica, e, evidentemente, também os próprios filmes, não estimulam alguém a realmente ver. Ouve-se, acompanha-se a historinha, checa-se o Facebook entre uma cena e outra. Mas, não se vê nada. Não surpreende, então, que durante uma sessão de Halloween, de John Carpenter, o público caia na gargalhada a cada aparição surpresa de Michael Myers. Pois, só me parece haver uma explicação para que se tenha vontade de rir durante a sequência final deste longa, especificamente no momento em Myers desaparece depois de ter sido baleado: a cegueira. Ver o rosto apavorado de Jamie Lee Curtis seguido da rápida sequência de planos mostrando espaços vazios e achar que há algo de engraçado nisso seria completamente desumano. Logo, se uma pessoa gargalha nesse momento, é porque não o viu. E, se não viu o filme, certamente não vai querer ler uma crítica que prolongue a experiência do filme debruçando-se para a forma. Eu não quero saber sobre o movimento dos corpos no plano, quero saber se vale a pena ou não ver o filme que estreou na sexta! Para ler frases como essas, basta acessar a sessão de comentários de populares sites de cultura pop espalhados pela internet. As pessoas não querem continuar pensando sobre os filmes, querem uma prescrição. Que mané homeopatia o quê, quero logo a receita pra ficar felizão! (mais uma vez, generalizo).

A crítica tem culpa nesse estado nefasto das coisas? Não. Ou, não tanto. A crítica de cinema está sempre um degrau abaixo do próprio cinema, então, enquanto esse estiver moribundo, aquela também estará. Ambos morrerão em breve e o funeral será um vídeo muito engraçado de quatro minutos com um trilhão de visualizações no Youtube.


CN: Ainda sobre "ser lido apenas por críticos", talvez a minha impressão venha menos de algo empírico do que dos próprios textos que leio: ao lê-los, tenho a impressão de que os críticos não estão muito interessados em dialogar (seja com o leitor, seja com o filme). É uma questão de língua, como se os críticos falassem uma língua só deles, que não interessa a mais ninguém. É algo que está nos jargões que usam, naquilo que observam ou deixam de observar nos filmes, no modo como se colocam (a retórica, os aforismos). Parecem estar perdidos nas suas próprias questões, preocupados em questões de fundo como a "contemporaneidade", em fazer comparações aleatórias entre filmes ou em se refugiarem em sistemas como o autorismo, que no fundo só interessam a eles próprios – o autorismo nunca interessou a ninguém a não ser à própria crítica. Não parecem muito interessados em saber como os filmes são feitos, tecnicamente mesmo. Já dissemos isso em outra ocasião: é preciso que se entreveja na crítica um cinema possível, aquele defendido pelo crítico. Fazer uma crítica não deveria gerar menos problemas, não deveria mais "fácil", em suma, do que fazer um filme. Uma crítica é uma intervenção, não uma descrição da história e do estilo filme. Gostaria de deixar claro também que não me excluo totalmente desses problemas que identifico. Não estou acima disso, e é algo que me preocupa.

Respondendo ao Wellington: se o cenário está tão ruim assim (não acho que esteja neste ponto), talvez caiba justamente à crítica chamar atenção para os filmes, mostrar que existe alguma coisa única ali. Esse seria, porém, um mundo ideal, o que é impossível pelo próprio "elitismo" da crítica: fala-se apenas para quem já tem interesse. 


WS: Concordo com praticamente tudo dito aí (e já discordo de muitos pontos do que escrevi anteriormente). O que não concordo é que o autorismo interessa apenas à crítica. Burton, Almodóvar, Lynch e Kubrick, para ficar nos nomes mais óbvios, são grifes exploradas de várias maneiras (camisetas, box de dvds, livros de fotos etc.). Então, no mínimo, o autorismo interessa muito ao mercado. Ao público também, em certa medida: naquele momento da adolescência em que se adere à dita cultura "alternativa" - cujos patronos podem ser Jim Morisson e Bukowski e os uniformes compostos por camisetas de Clockwork Orange, em inglês, claro - invariavelmente o autorismo aparece, mesmo que consumido de forma acrítica.

Talvez o que eu esteja dizendo seja: se os filmes não conseguem se mostrar valiosos por si mesmos, não é a crítica que o fará. O problema dessa afirmação é desvalorizar excessivamente a crítica e lhe empregar um papel pouco importante.


CN: Quando disse que o autorismo não interessava a ninguém, quis apenas dizer que no triângulo entre realizador, espectador e crítico, ele só interessa a este último. Mas é evidente que o autorismo suscita outros interesses: do mercado, dos historiadores etc.


JGP: É bom tomar cuidado com a palavra acrítica. Eu mesmo acho que esbarrei nela quando falei na relação entre crítica e mercado. Digo isso porque devemos nos perguntar: onde começa o gesto crítico? O Ruy Gardnier sempre dizia que o gesto crítico já começa no momento em que sai do cinema e diz se gostou ou não. Ou seja, as pessoas têm alguma relação com o filme, precisam ter alguma relação, não há como não ter. Pode ser que elas não dêem tanta importância para desenvolver suas opiniões e reflexões sobre o filme, mas isso não quer dizer que não tenham tido uma interação. Não é improvável, por exemplo, que tenham filmes favoritos e filmes que detestem. E isso existe em graus diferentes: quanto maior a relação com os filmes, a vontade de compreendê-los, ou de defendê-los (e a união de uma coisa com a outra), mais próximo se está de efetivamente escrever textos críticos.

Vejo mais uma escala gradual do que uma extrema polaridade entre o crítico e o leigo. Do contrário, estaria numa posição muito confortável.

Além disso, há uma frase do crítico Louis Skorecki excelente e enigmática em sua simplicidade: "os filmes não são bons se os espectadores não são bons". Leve essa frase como preferir. Não pretendo entrar agora em uma questão de "decadência do cinema". É possível que ela pudesse explicar o estado da crítica... Mas eu preferiria nos focarmos na crítica, no seu trabalho.

A crítica é uma educação do olhar. O que há nela de mais importante é esse lado pedagógico. Portanto, a crítica pode ensinar os espectadores e aos filmes – ensinar não aos filmes, ou diretores, "certos"; mas ensinar como se olha, ensinar que é preciso olhar. Talvez isso possa mexer com o cinema, mudá-lo. Falo isso porque não quero ser decadentista; prefiro assumir responsabilidades, tentar fazer bons textos. De qualquer maneira, Lourcelles também me vem à cabeça: "não se deve ter qualquer ilusão a respeito dos efeitos da crítica".


WS: Deixando de lado as hipérboles apocalípticas do meu primeiro texto, mesmo que momentaneamente, consigo compreender a posição do crítico como um educador do olhar. E que é preciso ter algum senso de responsabilidade quando se escreve algo. Não quero indicar, erroneamente, estar defendendo um niilismo de araque na atividade crítica. Tampouco minimizar o papel da crítica, como maneira de exaurir-se de qualquer responsabilidade. Todas as minhas afirmações estão embebidas em um pequeno desânimo em relação à posição em que o cinema está atualmente – a crítica, na configuração atual do mundo, não tem o poder de mexer com o cinema em uma larga escala, imagino; em menores proporções, como no cenário brasileiro de filmes de festivais, sim. Mas esse poder tem se mostrado muito pouco benéfico. A aflição e o anseio pelo fim do mundo está ligado ao fato de, por enquanto, eu não conseguir ver de que maneira a crítica pode "ensinar" a ver novamente. "Ensinar" aqueles que, como escreveu o Calac, não são já iniciados (estudantes de cinema e cinéfilos em geral).

O João falou em bons textos. O que é um bom texto crítico? Assim como o Calac, tendo a achar que há um sério problema de escrita na crítica de internet, por exemplo. Escreve-se mal e de maneira entediante. "Não por acaso, há um certo fluxo de matéria de caráter etéreo, a prenunciar o devir, imantada à montagem, que é menos um processo de separação de ideias do que um dispositivo de apropriação do entorno". Essa frase não é de ninguém, mas, poderia ser de todos nós.


Marlon Krüger: Queria trazer um dado - um pouco antigo, infelizmente - para o debate. Segundo uma pesquisa encomendada pelo Sindicato dos Distribuidores, em 2008, o número de frequentadores de cinema no Brasil é de 16,8 milhões. Eles ainda apontam cerca de 3 milhões de "espectadores potenciais". Isso quer dizer, em linhas gerais, que mais ou menos 10% da população brasileira tem uma relação duradoura com o cinema.

Sobre quem lê: é uma coisa nebulosa. Eu não penso muito nisso - quando escrevo -, mantenho minha ponta de esperança, como o João, mas não sei se o Calac está tão enganado. Um pouco pela linguagem, sim, sem dúvidas. Relaciono isso com o lado universitário da crítica brasileira surgida no final dos anos 90. Sem muito espaço em outros lugares, a maioria dos críticos se refugiou na universidade. Mesmo o que não estão na universidade, parecem dialogar mais com ela do que com o "espectador normal". Enquanto entendo e compartilho o sentimento que o Calac descreve, tento enfrentá-lo como o João: tentando fazer bons textos, assumindo responsabilidades, buscando minha ideia sobre cinema (meu cinema possível), formando uma posição, dando corpo a minha voz.

Nikola, compartilho sua questão, vivo pensando nisto. A crítica não deve (não pode) se refugiar na torre de marfim, mas não pode, também, fazer do funcionamento seu credo. Se a crítica não funciona, não é ocultando o dever do crítico que se estará mais próximo de compreender o que se passa com os filmes. Por vezes, é até o contrário. Por outro lado, é incrível a ideia da garrafa lançada ao mar. Hoje, parece ser um pouco assim mesmo. Mas e a garrafa com uma grande mensagem, o que faz ela ser lida, o que faz ela importar mais do que as outras? Coisas imbecis e autoritárias como alcance da publicação, o fato de ser ou não um formador de opinião, prestígio, etc. A natureza da relação é imprevisível, e dado os tempos vividos, essa relação é cada vez mais de rejeição. Mas eu ainda acredito muito que algumas garrafas podem ser achadas pelas pessoas que mais precisam delas, como já aconteceu comigo e imagino que com vocês uma porção de vezes. Volto ao primeiro parágrafo: ~ 10%.

“A grandeza do cinema reside no fato de que um indivíduo (um diretor, um escritor, um ator) possa de alguma forma tocar um outro indivíduo na anonimidade coletiva do auditório. O que é elitista, claro, mas é um elitismo popular. Pode funcionar para qualquer um.” – Serge Daney.


CN: O João tem razão quando fala de uma escala gradual entre o crítico e o leigo. Do contrário, caímos em simplificações apocalípticas que não levam a lugar nenhum ("todos odeiam os críticos"; "ninguém lê" etc.). 

Sobre "subir na torre de marfim", penso que a crítica tem um aspecto mundano que é fundamental – é o que a diferencia, por exemplo, da academia. Socialmente falando, papel da crítica é ir às coisas vivas, intervir sobre elas, selecionar, apontar altos e baixos, corrigir injustiças (o que não quer dizer que ela própria não incorra em suas próprias injustiças). Claro, há esse papel pedagógico que o João falou, que independe do objeto tratado: pode-se transmitir determinado um olhar para leitor tanto escrevendo-se sobre um clássico dos anos 50, quanto sobre um filme contemporâneo. Mas o que é exatamente a "torre de marfim"? É o conforto. O crítico não trabalha em um terreno estável, penso que é alguém que deve estar sempre em crise, sempre em dificuldade. Quando o olhar se acomoda e as coisas ficam muito estáveis, há um grande risco de se mediocrizar. 


WS: Há aquela frase do Barthes que o Inácio de quando em quando repete: "criticar é por em crise". O crítico que não vive em crise com o mundo, com os filmes, com a escrita, com si mesmo, não é crítico, é redator.


Parte 2: Crítica positiva e negativa / Considerações gerais sobre o ato em si da crítica


 Abril de 2013