a propósito de
TAKESHI KITANO

sonatine.jpg (28850 bytes)
'Beat' Takeshi Kitano em Sonatine

Nos filmes de Takeshi Kitano alguma coisa angustia. A tão alardeada violência de seus filmes desempenha esse papel: transformar o corpo em joguete frágil contra o tempo, inimigo sempre impiedoso e voraz. A cena mais clássica, nesse sentido, está em Hana-Bi, até hoje sua obra-prima: quando a esposa de Kitano caminha na neve, ouvimos um barulho esquisito; quando a câmara mostra o que acnoteceu, vemos que ela está presa até o pescoço na neve. É essa a dimensão do corpo nos filmes de Kitano: agente individuador, mas que está sempre regido por outras leis que não as suas. Daí as doenças terminais, o mundo das lesões físicas, do perigo iminente da morte. O subtítulo de Hana-Bi é Fogos de Artifício, e não há imagem melhor para definir existência no dicionário Kitano. Algo cuja beleza é imensa, mas que só pode durar por poucos instantes. Daí os finais que sempre têm a ver com morte, se não com suicídio.

Mas existe uma outra dimensão nos filmes de  Takeshi Kitano, que é o que mais emociona: o lado criança, a infância sendo o adversário principal da morte. Para não morrer, os personagens de Sonatine fazem uma brincadeira na areia, em Hana-Bi a mulher de Nishi faz um quebra-cabeças. É a infância que redime a morte e o mundo dos adultos, que no cinema de Kitano é sempre o lugar da sordidez e do desespero da ausência de sentido. Daí a grandeza de um fime tão menosprezado quanto De Volta às Aulas. Os personagens desempenhados por Kitano, mesmo que sejam adultos e violentos, mantêm esse lado da infância, mesmo que em Hana-Bi a infância seja pretexto para lembrar da filha morta (lembramos limpidamente até hoje da cena em que Nishi afasta um velocípede – pertencente a sua filhinha que morreu – que está na frente da entrada da casa). Horibe, personagem amigo de Nishi, está paraplégico. Para continuar a viver, abandonado pela família, ele deve voltar à infância, através do desenho. E mesmo que seus desenhos mostrem uma desesperança tão grande (do mesmo modo que os gestos de Nishi), não conseguimos deixar de ver uma beleza quase infantil em continuar vivendo.

Kitano tem um estilo ímpar no cinema contemporâneo, diríamos até na história do cinema. Há raros casos em que um plano nunca chama outro, em que todo plano seguinte é imprevisível e a própria duração do plano não pode ser predita. Poucos cineastas esgotam ao máximo seus planos, poucos têm um rigor tão grande da construção do quadro, dos tons das cores, da movimentação dos atores. A depuração estilística. Os signos de ternura – movimentos de câmara, música – estão quase sempre omissos, e sempre nos surpreendem quando aparecem (a observar aqui a maravilhosa música composta para Hana-Bi por Joe Hisaishi), como na cena final, em que a câmara se desloca para que a conclusão do filme não seja vista. A câmara oprime o personagem, ela faz sobre eles o que o tempo faz sobre os corpos: opera a sua destruição lenta, observa a sua degradação. Jamais houve filme tão melancólico e cheio de vida como Hana-Bi. Resta saber se algum dia a infância finalmente poderá ultrapassar a morte.

1989     Sono otoko, kyobo ni tsuki (Violent Cop)
1990    3-4x Jugatsu (Boiling Point)
1992    Ano natsu, ichiban shizukana umi (Cenas de Praia)
1993    Sonatine (Sonatine)
1994    Minna Yatteruka (Getting Any?)
1996    Kids Return (De Volta às Aulas)
1997    Hana-bi (Hana-bi – Fogos de Artifício)
1999    Kikujiro no natsu (O Verão de Kikujiro)