As verdadeiras verdades (3/3):
Luís Inácio



Entre a goma do cabelo de Fernando Collor (e sua retórica hiperbólica), e a voz incontestavelmente técnica e irresoluta dos anos FH, alguns sentidos expressivos da política brasileira se redesenharam no que se refere a figura televisiva do homem-político. Depois do trauma pseudo-messiânico da voz verborrágica de Fernando Collor (e sua identidade baseada em chamativas camisetas com mensagem yuppies), passando pela indefectível sobriedade aristocrática do esclarecido FH, com seus gestos sempre contidos e uma prática oratória de tons professorais; sinais de uma nova estética política brasileira se anunciam. No debate do dia 25/10 de 2002, certos aspectos dessas transformações tornaram-se de facílima percepção, superexplorados pela máquina de imagens da TV Globo. A superexploração imagética do ringue Global, redefiniu num reality show eleitoral, o aspecto renovado desse fazer político. No ringue montado pela Rede Globo para a batalha final entre Lula e Serra, o debate de palavras e o debate de gestos se entrecruzaram numa retomada chave do carisma político, e de sua reinvenção como eixo central da prática discursiva. Uma prática renovada de forma surpreendente, onde a persuasão racional e a emotiva se suspenderam num amálgama expressivo de movimentação sócio-econômica (chamada também de "esperança"). Mas seria uma esperança de cunho emocional-individual apenas? Um fenômeno psicológico de massa? Ou existiria uma prática político-estética co-responsável por essa retomada do entusiasmo? Como explicar que mesmo nos momentos das maiores vitórias concretas da era FH não se tenha tido tanta disposição política por parte da população quanto na semana pós-vitória de Lula?

Durante toda a campanha, José Serra insistiu num bordão: "Não adianta fazer discurso correto, tem que saber fazer na prática". Sem dúvida? Serra parece ter se esquecido de levar em conta o que um Discurso (em si mesmo) é capaz de Fazer. Porque nos últimos 3 meses (numa retomada histórica) o discurso, a oratória política se livrou de seu recluso papel de descrição objetiva de uma verdade tecnicamente arquitetada, para ser reconstituído nele mesmo, como principal espaço de prática política.

Hoje, as palavras e os gestos, mais do que apenas servirem de porta voz às idéias pré-concebidas, retomam seu lugar de expressividade estética vivente. O discurso do gesto, a textura da voz, a face, o caminhar. Todos contribuindo às performances políticas dos candidatos. A verdade do discurso descola-se em parte da comprovabilidade técnica, e estende seus tentáculos em direção ao nicho da verossimilhança discursiva livre. Numa ficcionalização revigorada dos clichês típicos do homem-público, onde entram em voga com força descomunal os parâmetros subjetivos da vontade política, da confiança, do desejo. E em última instância, do "Pacto Social" – espécie de éden retórico norteando as vontades comuns. "Retrocesso" – poderiam resmungar alguns. É importante notar que, na figura de Luis Inácio, esses velhos clichês se reconfiguram, se atualizam num duplo movimento que conjuga diferentes aspectos e momentos políticos brasileiros: do mais arcaico populismo ao pragmatismo PSDBista (vigente nos últimos 8 anos), Lula atravessa o imaginário político numa inédita transversal.

Pela primeira vez no Brasil, um poder político carismático se propaga sobre o tripé da humildade discursiva, do diálogo livre e da fragilidade presidencial. No lugar dos olhos raivosos do discurso fatalista, ou da opacidade morta-viva do olhar técnico, uma nova estética dos olhos doces se propaga. Se o mono-tom auto-suficiente e épico de Fernando Collor ganhou eco no acadêmico inquestionável e metódico da era FH; pela primeira vez no Brasil uma figura pública chega ao poder sob a égide da fragilidade, da possibilidade do "erro e tentativa" como eixo central de seu desejo público de mudanças. Uma política do improviso meticuloso, não pré-moldado, mas artesanalmente projetado – em suma: uma política Performática.

Improvisos, gestos, pequenos sinais, dividem aquilo que, nos últimos anos, era território livre e único do argumento científico estático. Pintura pregada na parede, o discurso tecnicamente embasado da campanha de José Serra não pôde sobreviver diante da proposição performática de Lula e sua presentificação de uma política de vivência contínua. Se em 1989, Luis Inácio se desarmou radicalmente (e, insisto, falo aqui de seu aspecto imagético televisivo) por insistir na repetição sistemática e auto-suficiente das idéias de seu socialismo legalista; e não foi páreo, entre outras coisas, à retórica do capitalismo justo e épico de Fernando Collor. Hoje, reinventado, Lula trabalha em golpes diagonais entre a dionisíaca festa das ruas e o apolíneo olhar da estratégia política.

Atravessa o falar retórico e o retrato sistemático – desfaz o antagonismo entre as figuras públicas da política como "arte" e da política como "ciência". Estética e técnica se entrecruzam no presentificar político do personagem Lula, refundando através do verdadeiramente novo, um resultado artístico em êxtase, comumente chamado de "entusiasmo". A principal chave da vida política brasileira volta a ser a própria a voz das ruas, dos jornais, dos políticos. Um burburinho de incertezas, que enterra o reinado despótico do pragmatismo apolíneo-administrativo e a estética asséptica das formulações diretivas. A ditadura do roteiro perde espaço para a vontade de invenção. Num futuro vislumbrado como nova obra de arte da vida pública, o caminho se enevoa e perde-se como verdade a ser desvelada; e o foco se volta, imprevisível, para o andar criativo do caminhante.

Felipe Bragança