As
verdadeiras verdades (2/3):
o gueto e os homens
Falando em representação
da realidade, Cidade dos Homens nos vêm à cabeça.
Numa onda de recriações naturalistas na Tv – também
representada no aparentemente estapafúrdio Turma do Gueto,
da Record. Uma certa tendência a se redimencionalizar a dramaturgia
brasileira em direção ao espaço das periferias, expressando
um misto de ebulição social com interesses de marketing
(como a do aumento do acesso à TV nas camadas mais pobres).
Apesar desse aparente
boom, o espaço das periferias urbanas já vinha sendo trabalhado
de forma constante pelos inúmeros movimentos de democratização
de imagens estabelecidos no Brasil na última década. Núcleos
pioneiros como o da Tv Maxambomba, de Nova Iguaçu-RJ, foram os
responsáveis pela primeira grande leva de imagens periféricas
a chegar na televisão brasileira de forma sistemática. Reclusos
às televisões comunitárias e a cabo, esses produtos
audiovisuais criados por agentes das periferias traziam um novo ar, uma
nova espacialidade para a dramaturgia televisiva brasileira. O aumento
dos interesse dos produtores de imagens profissionais por esse universo,
começou a se expressar na aproximação com alguns
desses projetos (como o Nós do Morro e as pequenas oficinas de
vídeo espalhadas pelos centros urbanos brasileiros). Um exemplo
interessante é o das oficinas realizadas pela Kinoforum, na periferia
paulistana; e pelo canal educativo Futura, no Rio. Partindo dessa aproximação
de cunho educacional, assistencialista, uma nova chave de interação
audiovisual-produtiva começou a agitar as fronteiras do universo
imagético brasileiro.
Impulsionados pela
crescente midiatização da violência, principalmente
das periferias, novos clichês e personagens ícones começaram
a se esboçar, ganhando expressões em filmes tão díspares
quanto o expressionismo de O Invasor e o naturalismo frenético
de Cidade de Deus (ver críticas). Um desvelamento dramatúrgico
daquele novo território de imagens se fazia indispensável,
e a televisão aberta brasileira começa agora a responder
diretamente à essa demanda.
Cidade dos Homens
e Turma do Gueto são ambos tentativas de se levar para a TV a dramatização
cotidiana do universo de suposta "realidade social" vivida pelas
periferias: violência + carência + dignidade; curiosamente,
ambos são co-produções com produtoras independentes
paulistanas, a O2 e a Casablanca. Se Cidade dos Homens aposta nos
não-atores anônimos para construir sua verossimilhança
semi-documental, Turma do Gueto cria ganchos dramáticos
sobre ícones pop oriundos dessas periferias. Netinho e o rappeiro
X, assim como Simony, aparecem na tela como que representando suas próprias
origens, num duplo movimento de identificação com o público.
Um outro jogo de identificação é conseguido em
Cidade dos Homens, onde os meninos intérpretes são alanvacados
por sua origem "autenticamente" pobre. Se no premissa superficial
de denúncia social os dois seriados se assemelham, seus andamentos
narrativos se diferenciam em gênero.
Os 4 episódios
de Cidade dos Homens funcionam como fragmentos, episódios
livres, retratos pontuais que repetem um certo mapeamento didático
praticado pelo longa Cidade de Deus: Cada episódio exprime
uma situação chave dos clichês telejornalísticos
sobre a guerra do tráfico: o Primeiro Episódio trata do
precário cotidiano escolar dos dois meninos e da forma como a cultura
da favela seria calcada, na verdade, na atuação de guerrilha
do tráfico; o Segundo, traz à tona a idéia do líder
traficante carismático, capaz de conquistar as mentalidades dos
jovens através de favores e agrados; o Terceiro esboça o
papel de "agentes sociais" dos traficantes, quando os mesmos
interferem na organicidade de um serviço público (Correio)
da favela-cenário.
Todos os episódios
perambulam pelo didatismo dramatúrgico, costurado com um naturalismo
de interpretações e uma câmera estereotipadamente
documental. Livres do tom melodramático das novelas Globais, os
4 episódios de Cidade dos Homens funcionam como reproduções
estéticas do que o senso comum imagético construiu sobre
as reportagens de denúncia social – câmera tremida e fotografia
estourada (a diferença, é claro, é a precisão
metódica com que esses efeitos de realidade são executados).
E o que se tira dessa precisão?
O que seria uma tentativa
de retratar o modo como o cotidiano do tráfico de drogas e as banalidades
da vida comum se misturam no dia-a-dia da favela, terminam por se transformar
numa banalização estética do dilema urbano brasileiro.
Calcados no velho vício da imparcialidade, o filtro dramático
de Cidade dos Homens encaminha cada frame de imagem ao entrecruzamento
forçado entre a vida particular e o espetáculo frenético
dos tiros e dos hábitos glamourizados dos traficantes. Mesmo no
Episódio 4, quando a temática foge do espaço simbólico
do tráfico, foge-se imediatamente também ao espaço
físico da favela – fazendo de um a continuidade direta do outro:
a favela É a presença do tráfico.
A incapacidade de
construir conflito entre a vida banal de seus personagens e os eventos
de violência ligados ao tráfico – ou a covardia de não
assumir de uma vez a personagem do traficante como o protagonista, o que
resolveria essa timidez que tenta sempre criar um parâmetro distanciado
no olhar dos meninos (ferramenta sugada do Buscapé de CDD) – levam
a um discurso enevoado onde o Tráfico como conceito sempre se torna
protagonista, sobrepondo-se aos personagens.
Talvez investindo
diretamente nas personagens dos traficantes, os ganchos narrativos para
a atração visual e dramática da violência estrutural
se conectariam de forma direta. A forma enviesada e opressora como o elemento
narrativo do tráfico toma de assalto, reiteradamente, a história
centrada na vida de dois meninos sufoca suas personalidades, fazendo deles
marionetes para discursos sociais entrelinhas. A muleta dramatúrgica
da série toma o tráfico como única forma de uma vida
favelada ser interessante o suficiente para ser exibida no horário
nobre Global, funciona como uma repetição presentificada
dos mesmos clichês, e dos fardos que pesam nas costas de toda a
população brasileira residente naquilo que os famigerados
arrotadores de conceitos chamam de "estado paralelo".
Se todo o esforço
das comunidades e dos produtores de imagens da periferia (TV Maxambomba,
Nós do Morro, etc...) foi o de construir positivamente uma expressão
cultural que representasse a diversidade poética/estética
daqueles espaços – Cidade dos Homens reduz esse universo
e o prepara para um olhar senso-comum televisivo que resume o espaço
da favela às expressões diretas da violência e da
precariedade. O desvelamento desse universo marginalizado cai pesadamente
sobre as pessoas-personagens – castra as possibilidades de seus desejos,
e resume-os a representantes de uma classe. As espertezas de Acerola e
Laranjinha funcionam como pequenas anedotas, fazendo de seu cotidiano
um painel de jogos de armar, em tramas de entretenimento inusitado, pontuadas
por uma musicalidade frenética que lhes empresta o ar impessoal
de fogos de artifício, autômatos da naturalidade. As singularidades
se esmaecem, num funcionalismo em que as personagens são os servos
do discurso da moral (seja ela qual for...) pré-estabelecida pelo
realizador/roteirista.
Em Turma do Gueto
alguns desses ruídos se repetem – mas com algumas curiosidades
inusitadas que levam seus resultados para muito além.
A precariedade não
apenas do que seria retratado mas da própria textura técnica
com que aquele espaço é dramatizado, acumulam sentidos novos
àquelas representações. A mescla de famosos (Netinho)
com anônimos oriundos de oficinas de interpretação
comunitárias assimila um certo ar de teatro escolar muito comum
nos exercícios criativos de oficinas como as da Kinoforum. A textura
da imagem, prejudicada pela transmissão da TV Record (de baixa
qualidade) impregnam a imagem de uma aparência de VHS, ou S-VHS,
que remetem diretamente à linguagem de episódios da Tv Maxambomba,
tematizando a violência nas escolas, por exemplo.
É interessante
observar que todos os principais "defeitos" de expressão
artística de Turma do Gueto, e também todos os seus
êxitos, são versões superproduzidas de uma certa dramaturgia
do auto-retrato comum aos produtos dessas oficinas de imagem. O exagero,
o erro de mão, como o nome da escola municipal (batizada de Quilombo),
ou a morte violenta do menino que parecia se anunciar como um dos protagonistas
da série, geram um misto de obviedade com surpresa narrativa.
Diferentemente do
exercício da O2, aqui, em Turma do Gueto, a violência
aparece realmente como um elemento narrativo em choque, capaz de interromper
o protagonismo de uma personagem, ou fazer com que o heróico prof.
Ricardo (Netinho) termine o 1o episódio derrotado, chorando
sobre um viaduto no centro de São Paulo. As falas didáticas
e politicamente incorretas são colocadas na boca dos personagens
numa tensão entre o discurso da mudança de Ricardo e o desânimo
dos outros professores. Versão abrasileirada do Morgan Freeman
de Uma Lição de Vida, Netinho representa quase que
a si mesmo num retorno fictício a suas origens na periferia paulistana.
Um mistério, um inusitado dramático, apinhado de falas politicamente
incorretas – como uma recorrente utilização do termo "marginal"
para se falar dos meninos que fumam maconha no banheiro, ou a proposta
de contratação de justiceiros de aluguel para expulsar os
traficantes da escola – retratam de forma mais ampla os imaginários
e os dilemas em torno desse cotidiano, do que a "realidade direta"
de Cidade dos Homens.
No segundo episódio,
uma mudança do eixo central para os dramas afetivos das personagens
se realiza sem que a temática da violência se perca. O mais
importante é que efetivamente Turma do Gueto se constitui
como espaço dramatúrgico em si mesmo. Os eventos se costuram
através dos sentimentos e afecções das pessoas-personagens,
fazendo deles muito mais do que representantes de classe, ou de uma suposta
"realidade". O desvelamento audiovisual da realidade das periferias,
premissa primeira do seriado, consegue ser transformado em um conjunto
de vidas entrelaçadas, discursos dissonantes, idéias controvertidas.
Não há a voz narradora e consciente dos meninos de Cidade
dos Homens, mas as vozes entrecortadas de discursos incertos.
Enquanto em Cidade
dos Homens os personagens são privados de sua capacidade de
formar juízos de valores (numa tentativa banal se representar a
objetividade), em Turma do Gueto os personagens não só
carregam suas verdades como estas são colocadas em contraposição,
em diálogo ativo. A imparcialidade dos realizadores de Cidade
dos Homens é imposta ao imaginário dos personagens;
em Turma do Gueto essa imparcialidade se efetiva justamente na
manutenção da multiplicidade de idéias (mais ou menos
coerentes) que povoam o cotidiano e os dilemas banais da vida daqueles
personagens. Num mesmo episódio, o prof. Ricardo promove um show
comunitário em nome da paz, enquanto outro professor integra um
grupo de justiceiros – o mais instigante é que não há
um moralismo subliminar que indique qual postura estaria correta – apenas
circunstâncias que encaminham a narrativa internamente. O longuíssimo
musical em que se transformam os últimos 15 minutos do Episódio
2, nos remete às apresentações seriadas dos musicais
populares da Atlântida: rappeiros e pagodeiros se sucedem cantando
temas que se entremeiam à narrativa, expressando positivamente
aspectos do imaginário vivo da periferia paulistana.
Precário e
misterioso, Turma do Gueto lança no ar um híbrido
melodrama televisivo, lembrando por vezes o planfletarismo de um Spike
Lee ou a emotividade de uma novela de Glória Perez. De alguma forma,
Turma do Gueto carrega um gênero raro, não de realidade,
mas de verdade interna em sua fragilidade, num discurso do incerto, em
que não se chega ao estereótipo do retrato, mas numa história,
num teatrinho juvenil sobre a volta de um homem (Netinho) ao lugar de
sua infância – e as alegrias e decepções que a passagem
do tempo pode trazer. Os dois primeiros episódios foram muito além
das primeiras expectativas, que desenhavam a série como um pastiche
do que já tinha sido realizado pela O2/Rede Globo.
Turma do Gueto
merece atenção por realmente estabelecer um espaço
dramatúrgico na periferia que vai além da "missão
social" de desvelar injustiças, mazelas, dilemas...
Resta-nos observar
nas próximas semanas (segundas-feiras às 22:30) se será
possível que essa história não desista de si mesma,
e sobreviva aos vícios fáceis e sensacionalistas de apenas
reiterar a violência como objeto único do cotidiano das periferias.
Aparentemente, tem tudo para dar certo. A ver...
Felipe Bragança
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