Uma da manhã de terça-feira, 2/4/2002, site do BBB. No alto da página, onde costumava estar uma foto com um still do que estava acontecendo na casa naquele momento, uma imagem bastante reveladora: do alto, víamos a sala da casa, vazia, no ângulo que deixava o telão da TV ao fundo. Há pelo menos dois modos de ver esta imagem como das mais significativas: primeiro, porque ela revelava a verdadeira estrela do programa. Não os 12 concorrentes e sim a TV, ela mesma. Mas, talvez o mais interessante modo de olhar para a foto beire a filosofia, algo provavelmente jamais imaginado pelos programadores do site do programa: havia naquela imagem da sala vazia, mesmo local onde assistimos tantos momentos nos últimos dois meses, uma qualidade que a tornava semelhante aos planos de uma cidade-fantasma num faroeste antigo. Ela estava morta, ninguém mais circulava, ninguém mais falava. Era, de fato, um still, uma natureza-morta. A casa do Big Brother Brasil não mais existia. Vêm a cabeça os travellings de David Lynch pela casa vazia em Estrada Perdida, ou os planos estáticos de cômodos desertos em Santo Forte. Os três exemplos parecem nos perguntar o que é um "acontecimento", afinal? O que estes três exemplos de casas vazias têm em comum é que algo aconteceu ali, ainda que não mais vejamos. O quê, é onde a coisa complica. Mas é importante levarmos esta imagem adiante, uma vez que a casa do Big Brother é como uma cidade-fantasma de faroeste em mais de um sentido. Afinal, como esta nos filmes, trata-se de uma construção cenográfica. Torná-la vazia, portanto, é simples, pois ela começou vazia. Nada existia ali antes. O mais surpreendente não é que agora ela esteja vazia, sem existência, mas a forma como foi trazida à vida. E aí precisamos pensar naquele outro sentido da foto do site: a TV como estrela. O que aquela casa vazia de sentido, de função, em suma, de existência nos dizia era que hoje a TV adquiriu um poder que permite inverter tudo o que se pensou sobre ela na sua criação, assim como talvez na da imprensa. Ou seja, hoje não se precisa mais "ser algo" para estar na TV: a partir do momento em que se está na TV sim, se é algo. Basta que pensemos um pouquinho: o Big Brother Brasil baseia-se na premissa de um grupo de desconhecidos, de anônimos. Portanto, numa linguagem televisiva, de "zé ninguéns". Previamente se imaginaria que para a TV passar a tornar estas pessoas seus assuntos, elas precisariam fazer algo de excepcional que as elevassem a este patamar, certo? Pois o que elas fizeram foi, justamente, aparecer na TV. Portanto, estarem na TV é o que justifica estarmos assistindo-os na TV. Trata-se de uma frase interessante, pois embora óbvia é de fato a encarnação de um paradoxo que a vida moderna nos apresentou, e que nunca esteve mais clara. A casa do Big Brother não é um "lugar" de interesse a priori para a TV, como se pode dizer que são as ruas onde acontecem um protesto ou um engarrafamento, um estádio de futebol ou uma praia lotada. Nada está, afinal, "acontecendo" lá, como na foto, como neste momento. Porém, se câmeras de TV são espalhadas por ela, voilá, ela passa a ser um "local" (claro que podemos e devemos ampliar o raciocínio, por exemplo, para o telejornalismo onde, afinal, decide-se quem e onde são "notícia" a cada dia). Se pessoas são colocadas em frente às câmeras, embora não fossem "televisivas" até antes disso, agora são imperdíveis. E, de repente, uma casa que não "existe", e pessoas que não "existem" são a principal atração. Claro que se pode comparar isso com a situação da ficção, remontar ao cinema, onde também algo inexistente anteriormente é tornado foco de nossa atenção e comoção. Porém, não se está falando aqui da fantasia. Está se falando, acima de tudo, do que escapa ao simples ato de ver TV, do que se torna "viver TV". Em dois sentidos: primeiro para os objetos desta atenção, cujo estatuto perante a sociedade muda completamente a partir da decisão das câmeras de enfocá-los. Eles agora são "celebridades", embora não tenham feito nada de especial, além de aparecerem na TV. Mas, mais importante, temos que pensar nos que recebem estas imagens todo dia. Porque a relação com a TV (especialmente no Brasil de hoje) é muito diferente da que acontece com o cinema. Ela está no centro da casa, ela é o amigo de todo dia de tantos, ela é parte da família como tantos já disseram. E, quando ela passa a tratar de pessoas "reais" (ao contrário do cinema, onde o documentário e todas as suas formas tornaram-se o formato "marginal"), ela parece ser ainda mais fascinante, mágica. Ela é a caixa dos sonhos, e das aspirações, como é dos ressentimentos e das vinganças. Mas, acima de tudo, ela é o centro dos olhares. Big Brother nos mostrou isso como poucos programas brasileiros nos últimos tempos (claro que temos que mencionar o Casa dos Artistas, mas se este foi o grande "deflagrador", o BBB foi uma explosão de megatons ainda maiores, até pela penetração assustadora da Rede Globo ultrapassando barreiras de classe e geografia). Nas ruas, os assuntos se repetiam em torno do programa, e o maior índice de sua "permanência" era ouvir de inúmeras pessoas que não gostavam dele que ainda assim o assistiam e tinham opiniões sobre o que lá acontecia. De repente, não estar assistindo é não estar vivendo o que o Brasil vive no momento, é estar "fora da realidade". Paradoxalmente (e quantos são os paradoxos nesta questão), a realidade passou a ser o que está na tela e o que está fora é só uma abstração. Entende-se o país emitido em raios catódicos, mais e mais e mais. O concreto parece fugaz, e o mundo emana da tela. Neste sentido, BBB é a criação-máxima da TV até o momento, porque é um fenômeno completamente seu. A ficção audiovisual vem do cinema, os programas de auditório ou musicais vêm do teatro e espetáculos, o futebol vem dos estádios. Todos já "estavam aí" quando a TV chegou, e ela simplesmente os deglutiu e usou. Agora, atingimos o ápice com um programa que só existe porque existe a TV. A TV é o próprio assunto da TV. E ao ser o seu objeto, parece tornar-se mais e mais sedutora, mágica, indispensável. Quando Orwell pensou no seu Big Brother ele imaginava um olho que via tudo, uma entidade que observava a todos. Pois a TV subverteu as previsões totalitárias: são todos os olhos que olham para uma entidade. Enquanto vigiam, eles sim são vigiados. A ficção de Orwell não conseguiu dar conta da complexidade das teias da realidade, mais uma vez. O "nosso" Big Brother é muito mais sutil, muito mais "democrático", afinal a opção de olhar ou não é sempre das pessoas. Mas, que opção? Uma casa vazia, uma TV na parede. Quanta coisa numa imagem tão simples... Eduardo Valente |
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