Em busca do seriado
adolescente perfeito



A família Forman reunida num dos episódios de That 70s Show

A história já sabemos todos: apogeu do cinema adolescente americano nos anos 80 e decadência representativa e artística – ainda que alguns filmes como American Pie consigam números expressivos nas bilheterias – nos anos 90 e 00. Como com diversos outros gêneros moribundos do cinema, foi a televisão que se apropriou da temática e construiu para si uma fórmula narrativa expressiva para dar conta desses universos não mais em 1h30, mas em 22 minutos repartidos em três ou quatro blocos de intervalo comercial. E daí? Daí que todo ano, no mês de novembro, sempre ficamos impressionados com o número de séries destinadas ao público adolescente e figurando como protagonista algum deles. Pois não é só de Popular e Dawson's Creek que se constrói uma programação, mas também de séries como Third Rock From The Sun ou Married With Children, em que adolescentes exercem um papel privilegiado de identificação com o público. Isso para não contar séries em que mesmo os adultos se comportam como adolescentes (os personagens de Friends e Seinfeld vivem uma vida sem grandes compromissos, parecendo sempre estar livin' la vida loca).

Para a temporada 2002-03, o Canal Sony nos oferece dois novos programas diretamente relacionados ao imaginário adolescente: Do Over e 8 Simple Rules. Espertamente, o canal soube colocar esses dois novos programas ali onde seu público alvo gostaria de encontrá-los: na mesma terça-feira, logo após That 70s Show, que esse ano alcança sua quarta temporada. Fórmulas, há muitas: olhar nostálgico para o passado como em Wonder Years, olhar cínico e auto-referencial para o presente como em Popular, conflito de gerações como em Caras e Caretas ou Married With Children, mergulho na psicologia torturada dos jovens como em Dawson's Creek. Há também as locações de predileção (uma série, por motivos econômicos, logísticos e de identificação, deve tar apenas um punhado de locações), como o corredor da escola, uma sala de aula, a cantina do colégio, a casa de um ou dois alunos, o quintal dessa mesma casa. E, para quebrar a rotina, um ou outro cenário novo: a sala do diretor, um supermercado, um show de rock, uma patinação.... a lista segue.

A se julgar pela escolha de locações e de intrigas, poderíamos desde já inserir 8 Simple Rules na estirpe das séries que adorariam pegar seus adolescentes e recolocá-los numa escola de modos corretos. Os comportamentos das duas adolescentes da série (uma loira namoradeira e uma morena estudiosa e solitária, máximo do clichê possível) são observados por uma instância superior, seu pai, que a cada episódio deve aprender uma nova lição sobre o que quer que seja educar seus filhos. 8 Simple Rules tem simplesmente o mérito de inverter o dispositivo: ao contrário das meninas, é o pai que de vez em quando deve, como diz o notório comercial, "rever seus conceitos" sobre aquilo que ele julga ser uma boa educação. O seriado pega as garotas no momento em que elas deixam de ser crianças (brinquedos, proteção familiar) e passam a viver uma vida de adolescentes (novos amigos, namorados, menos proteção). Daí, a narrativa de cada episódio se desenrola a partir de um fato novo que o pai ira perceber (minha filha loira tem um namorado, minha filha morena não tem ninguém), sua primeira reação a isso (magoará as duas filhas por dar a impressão de achá-las uma galinha e a outra encalhada) e, por fim, na reconciliação final ("papai não acha nada disso, ele apenas está se acostumando a ter duas filhas adolescentes").

Naturalmente, trata-se de uma falsa série adolescente, ou ao menos de uma série adolescente que as mães adorariam ver com os filhos. Os três filhos podem realizar quantas peripécias quiserem (além das duas meninas, há um moleque de uns 10 anos que até agora serve como comic relief), porque o ponto-de-vitas da narração será sempre filtrado pelas impressões paternas – mesmo que tendenciosas ou erradas – e tudo que se passa em suas vidas será contemplado pela máxima instância familiar. Assim, 8 Simple Rules não poderia deixar de se passar quase que totalmente na casa da família, lugar privilegiado de discussões e possíveis entreveros entre gerações. A série se transforma assim num huis-clos para o adolescente, um lugar no qual tudo aquilo que ele faz ou é verbalizado pela família ou simplesmente não existe. Se a adolescência é singluarizada por um começo de subjetividade do jovem que nasce independentemente do registro familiar (uma seleção e eleição de gostos próprios, de atividades particulares). 8 Simple Rules nos faz crer que adolescentes podem se comportar como crianças pelo resto de suas vidas. No registro papai-controla-filhas-e-é-por-elas-controlado, According To Jim (com o sempre notável James Belushi) ainda é uma referência muito melhor.

Do Over parece muito mais moderno. É espertinho, tem referências de cultura pop (videogames, Def Leppard, "Smells Like Teen Spirit" como piadinha interna) e se passa nos anos 80 como uma espécie de homenagem e volta ao período áureo da ficção adolescente americana. As locações eleitas (ao menos num dos episódios, tomado arbitrariamente): o corredor do high-school – lugar por excelência dos encontros e das fofocas –, a casa familiar e o show de rock. A intriga principal? Uma irmã maior, tida como responsável pelos pais, vive torturando psicologicamente o irmão menor (mas nem tanto menor assim), que é visto como o irresponsável e a eterna criança da casa. A série elege como narrador esse mesmo moleque, e então podemos ver como a impressão que a família tem dele é completamente falsa: mesmo que apronte, ele cuida da casa, da irmã e zela pela boa convivência dos elementos da família. Mesmo assim, não consegue provar nada disso aos pais (ao fim do episódio, tudo aquilo pelo qual se sacrificou perdeu-se na amnésia alcoólica da irmã pretensamente responsável).

Se as influências em 8 Simple Rules são mais difíceis de definir de uma tacada só, Do Over não poderia ser mais diferente. As brincadeirinhas referenciais e a linguagem moderninha são rapidamente associadas a Popular, enquanto a nostalgia e o bondoso personagem principal nos remetem direto para The Wonder Years. No episódio, uma típica lição de moral. Quando o Def Leppard vai tocar na cidade, nosso herói reúne-se com seu melhor amigo e a amiga nerd endinheirada para tomarem o carro do pai e irem mesmo sem permissão ao show. Chegando lá, afrontando notavelmente o problema da compra de ingressos, ele deve se decidir por entrar no show e conquistar uma linda e popular garota de sua sala ou tirar sua irmã alcoolizada dos braços de um aproveitador. Como que para expiar o "empréstimo" do carro do pai, ele salva a irmã e no dia seguinte recebe mais doses do veneno, da mãe, do pai e da própria maninha.

Registros da adolescência ainda nascente, 8 Simple Rules e Do Over são relatos de maturidade "responsável", e em alguma medida tentam restituir o elo que unia pais e filhos até antes da revolução da juventude da qual Juventude Transviada foi o anunciador. A família ainda é a instância redentora, célula de uma sociedade que dará excelentes cidadãos. Resta saber se nossos jovens (e se os jovens americanos), empenhados nesse "esforço de reconstrução" da moral americana pós-11/9 vão jogar o jogo de cabra-cega ou vão abrir os olhos e perceber que a realidade pintada por essas séries não corresponde àquilo que muitos deles vivem em sua vida cotidiana. Jovens, em geral, são espertos. Ao menos no que tange o seu auto-retrato. Assim, não precisa de nenhuma mãe Dinah para prever que 8 Simple Rules e Do Over tem um futuro bastante reduzido, enquanto That 70s Show tem tudo para continuar encantando os filhos (e preocupando os pais). A vida na casa se restringe ao porão de Eric – lugar eleito para fumar maconha – ou a seu quarto – onde ele descobre as maravilhas do sexo com a namorada Donna. Mas sim, eles também têm família. O pai, Red Forman, não é bondoso ou trata o filho como pai padrão. Luta entre iguais, ocm um pouco de hierarquia, a relação de Eric com Red funciona mais no terreno do sarcasmo e da negociação política do que com a amável relação deixo/não deixo dos manuais de "como ser bom pai". Reflexo de uma mudança nas relações, That 70s Show é o único seriado em que pais e filhos largam os arquétipos ficcionais que uma sociedade desejaria assistir e ganham espessura verdadeira, cometem atos de seres humanos. Os jovens ratificam assistindo e garantindo o prolongamento da série.

Ruy Gardnier