E
o rei é o palhaço
(Acabou o Big Brother)
Se era mesmo para premiar o melhor candidato,
se toda a campanha da Rede Globo quis vender Big Brother como um jogo
da descoberta do melhor guerreiro entre seus candidatos, a vitória
de Kleber, foi a melhor resposta que a emissora e eu mesmo, pobre crítico,
poderíamos receber.
Caindo no discurso do programa, em seu marketing
de realidade crua e de julgamentos de valores morais de eliminação
dos menos aptos a ganhar o prêmio máximo, critiquei com raiva
contida aquilo que se anunciava como um dos cultos mais perigosos às
personalidades limpas e bem sucedidas de seus personagens "comuns".
Era no caráter de credibilidade realista que minha crítica
era a mais ferrenha e condenava o programa ao título nobre de soft-fascista.
A transformação do encaminhamento
das predileções do público dos bons exemplos humanos
como Vanessa para a figura quase circense de Kleber foi ao mesmo tempo
uma satisfação e uma rasteira levada por mim. E pelo discurso
preparado pela Rede Globo.
Quando o público começou a
eleger em Kleber a sua figura central de diversão e de identificação,
algo de muito interessante de redesenhou no programa. Nas últimas
duas semanas de Big Brother, escaldado por 60 dias de intrigas
e julgamentos morais excludentes, o que antes eram votos de exclusão,
começaram a se tornar votos de embarque nas desventuras do amálgama
de caipira com pit-boy.
Diante do clima de moralismo pesado, do histerismo
contido das personagens, e das intrigas constantes, a fuga criativa em
direção à única personagem semi-mítica
presente na casa foi a melhor resposta do público à tentativa
de transformar o programa numa seleção do melhor dos candidatos.
Como podem ficar os padrões da Rede
Globo, baseados nessa lógica da competitividade pela alta qualidade,
diante da escolha de Kleber, o palhaço equivocado, como o rei de
sua principal atração?
O que fica da vitória de Kleber é
a negação de um discurso unívoco de padrões
de boa conduta ou de esperteza, onde o vitorioso é sempre o mais
bem sucedido. Entre esses dois estereótipos vitoriosos, venceu
Bambam, o candidato que tentava passar a perna em todos... e nunca conseguia...
O anti-heroísmo patético de
Kleber, a identificação com as crianças, a cena antológica
de Kleber chorando por sua boneca de sucata foram aqueles momentos que
conseguiram, atropelando todas as minhas críticas, trazer uma real
surpresa e um aspecto de identificação concreta não
pela admiração dos atos, pela escolha do mais forte, mas
numa relação mítica entre o público e o melhor
dos personagens, o que mais lhe dizia, mais lhe divertia com seus atos
estúpidos e malandramente ingênuos.
A limpeza Global desmoronou e junto se desfez
seu discurso de tom fascista. Não adiantou a Xuxa entrar no programa
e pedir que falassem menos palavrão; o personagem de chanchada,
cheio de bordões e adepto assíduo dos palavrões,
foi o escolhido.
Sempre haverá aqueles que lerão
sua vitória como o retrato da mediocridade de nosso país,
do como o povo se espelha numa figura dita ignorante, estúpida.
Esse tipo de protecionismo intelectual tem de cair, se quisermos de fato
interagir com a vida cultural de grande parte do país.
Porque não há melhor vitória
em Big Brother Brasil do que a de um ex-caipira, vendedor de coco,
pseudodançarino, fã de pagode e axé, atrapalhado
com as palavras. Diante da banalização recalcada com que
a Rede Globo retrata e propaga grande parte da cultura popular brasileira
(em seus programas voltados para o "grande público"),
a coroação de Kleber como rei é a saída perfeita
de um público oprimido entre aquilo que lhe chega aos olhos e ouvidos
e aquilo que é tachado como alta cultura, boa música etc....
Criticado inúmeras vezes por seus
gostos artísticos, por sua cultura de sedução baseada
em lanches no McDonald's, Kleber foi motivo de piada. Chico Anísio
(o humorista) ao visitar o BBB, fez piada com as predileções
de Bambam: como poderia alguém se dizer fã do pagodeiro
Xandy se também dizia conhecer gente como Chico Buarque ou Caetano
Veloso? Kleber não riu. O cinismo dessas piadas foi constrangedor.
Pois o quê dizem esses nomes de "boa
cultura" para uma multidão espectadores tem na televisão
brasileira sua principal referência cultural? Os códigos
simbólicos, o imaginário brasileiro não é,
para a infelicidade dos defensores da erudição, a música
proparoxítona de Chico Buarque ou a poesia concreta de Caetano.
Porque cultura, assim como aconteceu com a escolha de Kleber, não
se trata de uma assepsia de admiração intelectualizada,
mas pela imersão da participação internalizada.
Não adianta o público julgar
esse ou aquele indivíduo como o mais honesto, se os seus códigos
culturais (Vanessa por exemplo estava louca para comer um Hagen-Daas)
são inócuos diante do cotidiano do público. A junção
de seu tipo físico, com sua bagagem cultural, fizeram de Kleber
a imagem do padrão de beleza que a Rede Globo tanto cultua em seus
programas, mas que tenta tornar alheia a si mesma. A mea-culpa Global,
tentando mostrar consciência de que seu personagem mais popular
não passava de uma "figuraça ignorante", foi um
dos momentos de maior constrangimento do programa.
* * *
Felizmente, a Rede Globo não conseguiu
fazer o que encaminhava: não reverteu o jogo nem transformou Kleber
num personagem menor. Pelo contrário, a afirmação
dessa cultura da multidão diante do horror da boa imagem global
(visto que o Big Brother era um programa que visava também as ditas
classes A e B) fez do programa um objeto de observação muito
mais rico e interessante em sua interação cultural. A relação
campo-cidade, colocada na imagem desse caipira que veio ganhar a vida
no Rio, essa fusão de cultura interiorana com os estereótipos
urbanos do bad boy, trouxeram ao Big Brother Brasil uma
dimensão iconográfica pouco imaginada.
Pois se o vitorioso não foi o mais
inteligente, nem o mais bonito, nem o mais bondoso, nem o mais esperto...quem
foi o vencedor, então? Foram os bordões, as frases feitas,
os gestos estereotipados.
Se uma personagem como a de Vanessa surge
a princípio como a favorita por sua bondade e simpatia, aos poucos
vai se tornando monótona, asséptica demais para que possa
sustentar interesse naquela humanidade prevista; a personagem alegórica
de Kleber é justamente aquele que se constrói pela repetição,
pela rotina. Se num primeiro momento aparentava ser um bad boy
sem alma, Kleber conquistou espaço por sua capacidade de se tornar
mais interessante justamente por sua reiteração, pela rotina.
Como nos velhos chistes do humor pastelão, como nas frases feitas
do humor chanchada, Kleber foi o único a ser maior do que a realidade
cruamente observada: Kleber foi um verdadeiro clown, construído
em parte na montagem, um tragicômico herói fracassado que
ironizava os eventos da casa, tentando repetir as intrigas e os jogos
propostos sempre com um fragmento de palavra mal apreendida, de estratégia
mal traçada, de malandro otário que é malandro. Como
um dos personagens arquétipos da Casa dos Artistas, Kleber
foi o único a conseguir escapar dos parâmetros comuns de
bom personagem realista. Nem caindo na vilania "sincera" de
Adriano ou na histeria obsessiva de André, Kleber acabou como a
figura de farsa realista, de ícone da multidão excluída
da tal "seleção aberta" da emissora.
Assim, coroando a figura do herói
ingênuo, tradicional em nosso cinema desde antes das chanchadas
e em outros tempos de nossa TV (Os Trapalhões, por exemplo), Big
Brother Brasil terminou com a premiação da mais grata
surpresa que o programa poderia trazer: uma mimese tragicômica do
país.
Personagem expulso de nossas salas de cinema,
a figura do herói patético reiterou seu lugar na predileção
do público. Toda uma cultura massificada e representativa de nosso
país (explorada em nosso cinema apenas na figura megalômana
de Xuxa), invadiu a principal atração global e colocou diante
de todo o público médio brasileiro, sua figura mais recalcada.
Enquanto o pagode, o axé, as gírias
"chulas", e toda essa fauna da "baixa cultura" nacional
forem ignoradas por nosso cinema, e por nosso principais agentes culturais
e políticos, continuaremos condenados aos bons ditames Globais
de justiça e boa conduta que já nas últimas imagens
do BBB quis transformar Kleber num "bom menino incompreendido..."
Fazer de Kleber um injustiçado mal
compreendido foi a única resposta possível da emissora para
tentar fugir da ridicularização de seu programa e, conseqüentemente,
das boas intenções de seu núcleo de jornalismo. Diante
de um país partido entre aquilo que é e aquilo que a boa
conduta cultural dita como qualidade, a descoberta de Kleber em ídolo
de seu público é perigosa demais por não ter explicações...
Como pôde o público escolher Bambam o vitorioso? Escolha
do humilhado, do mais fraco? Resposta moralista tentando acomodar as coisas.
Porque não foi isso o que aconteceu,
não é essa a resposta do público. Não se fez
a justiça BBB!
Foi feita uma festa, uma brincadeira do público,
uma homenagem do público ao personagem que mais lhe divertiu e
mais lhe falou ao imaginário. A Rede Globo vai tentar transformar
essa vitória numa espécie de justiça popular diante
do humilhado vendedor de cocos... Fazendo isso, como já começou
a ensaiar no final do programa, a emissora vai estar apenas reafirmando
sua limitada visão de cultura, sua incapacidade de enxergar uma
imagem que aponte para além das lições moralistas
de suas telenovelas. Porque o público não foi complascente
com Bambam, não sentiu pena de Kleber, não o escolheu por
caridade. Escolheu Kleber por ser o único personagem capaz de,
entre outras coisas, sentado na poltrona intelectual/freak de Jô
Soares, dizer o que mais lhe fez falta na casa foi o sexo.
Tratado já como uma celebridade, Kleber
deverá ser submetido a uma cartilha de bom comportamento e tentativa
da emissora em torná-lo um personagem menos sujo, mais palatável
para se tornar sua maior estrela. Se a vitória tivesse caído
no colo de alguém como Alessandra, já escolhida pela Globo
como atriz, ou no do cantor André, ou na modelo boazinha Vanessa,
o star system Global já estaria mais do que pronto para
assimilar seu personagem. Mas o que fazer com uma figura como Kleber?
Colocá-lo (elegante como Leca) para apresentar um quadro no Fantástico?
Lançar um CD das músicas preferidas de Bambam? Uma fita
de aeróbica?
Até que ponto o sistema de elegantes
estrelas Globais poderá se articular com uma figura como Kleber?
Tão preocupada em diferenciar seu BBB da Casa dos Artistas
do SBT com seu alto nível, com sua tentativa de elevar o nível
das conversas, de levar ao ar uma realidade brasileira baseada em pessoas
comuns bem sucedidas, acumulando personagens como um painel cultural do
bom país brasileiro, a Rede Globo acabou por dar seu prêmio
à figura mais alegoricamente chula e mais capaz de participar com
sucesso no programa de Silvio Santos. Dentre tantos exemplos de personalidades
vitoriosas e interessantes, a self-explotation inconsciente de Kleber
reeditou o sucesso de público inaugurado pela Casa do SBT.
Suas imagens únicas, como a inesquecível
seqüência da perda de Maria Eugênia (a boneca), ou a
criação de seus bordões, acabaram se tornando as
imagens que melhor conseguiram desarmar o clima homogeneizado de realidade
vendido pela emissora. Big Brother Brasil terminou não com
a exclusão dos piores mas com a escolha de Kleber pelo diferencial
simbólico: o único que fugia da imagem de juventude descolada
e bem-sucedida, construídas pelo paradigma da MTV e levada à
TV aberta por programas como Malhação e retratada
nas telenovelas.
Produto da esquizofrenia cultural do país,
entre o abismo da boa cultura elitizada e a realidade dos eventos de massa,
Kleber foi a única escolha possível, a melhor das metáforas,
vagando entre o cantor sertanejo Leonardo e a trilha sonora cult de Moulin
Rouge. O rei e o palhaço, numa mesma imagem. Fez parte.
Felipe Bragança
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