O painel do futebol brasileiro


Contracampo não é uma revista de futebol, mas não teve como não encarar a coletiva de imprensa de Luiz Felipe Scolari como um capítulo decisivo de uma novela, ou ao menos como uma sentença decisiva num filme de tribunal. A dúvida era simples: será que dessa vez Felipão vai convocar o Romário? Muito se fazia supor, num suspense que, como diria Moreira da Silva, era "de matar o Hitchcock": Ancelmo Góis já havia dado uma notinha sobre a convocação do atacante vascaíno, e o próprio técnico da seleção admitira que ainda tinha 22 nomes como certos e um jogador em dúvida.

Liga-se a televisão e o que se vê? Um fundo verde, uma mesa de coletiva. Fala Antônio Lopes, supervisor de alguma coisa na equipe. Mas logo a palavra é passada a Felipão. Só que o espetáculo principal acontece em outro lugar, que não é na voz monótona e um tanto abatida do técnico da seleção. A grande atração, para todos aqueles que acreditam em todas as teorias conspiratórias, era justamente aquele fundo verde, esquisito, e em muitos aspectos constrangedor. Constrangedor por quê?

Porque nele via-se, primeiramente, um escudo muito conhecido, o da CBF, Confederação Brasileira de Futebol. Era o símbolo maior daquele painel, mas não era o único. Ou melhor, só ele era único, porque havia apenas uma vez o escudo, central, acima da cabeça de Luiz Felipe Scolari. Só que, rodeando o escudo da confederação, dois símbolos se repetiam à exaustão: os logotipos da Nike e o do guaraná Antarctica (é possível ver ambos na foto, fora de foco).

Se essas companhias foram decisivas, se elas interferiram na escolha dos jogadores convocados, a decisão cabe aos comentaristas e aos repórteres investigativos dos jornais e televisões. O que cabe ao crítico de audiovisual é simplesmente interpretar aquilo que é mostrado. Um painel, um gesto ou um balbucio significam, sob esse aspecto, muito mais do que qualquer dossiê a respeito de corrupção ou acordo de cavalheiros feito fora das câmeras, fora de qualquer registro.

Digo isso porque, ao menos no quesito audiovisual, a CBF já está completamente impregnada dos patrocinadores. Veja-se o painel: um verde claro faz supor uma piscina com bastante cloro, imprópria para o uso, onde uma organização, sozinha (o escudo sozinho transmite uma sensação ímpar de criança indefesa, quase The Night Of The Hunter), bóia bem no centro, e é espreitada por uma multidão de pequenos seres, cada um com a metade do seu tamanho, mas que em bando adquirem muito mais um caráter sinistro de perseguidores implacáveis do que de companheiros de percurso.

Tão sinistro que a rede de televisão que mais entende de símbolos, a Rede Globo, também parceira da CBF, preferiu um enquadramento atípico: um primeiro plano bem fechado sobre o rosto de um Felipão quase autista, cuja silhueta tampava quase que totalmente o painel. A ESPN Brasil, seja por ironia seja pelo único possível enquadramento para a posição que lhe foi dada, preferiu um plano médio, em que Felipão e sua gangue literalmente flutuavam junto com o escudo da CBF em uma multidão de logos Nike e Antarctica. Fosse uma paródia à maneira Casseta & Planeta, nem riríamos de tão gratuita e óbvia a referência.

Num bom filme de suspense, as provas já são dadas de antemão. Já estão todas lá para o espectador ver. Mas a magia do diretor reside em deixar as verdadeiras evidências em segundo plano e entregar ao público um outro relato possível, para não entregar o jogo muito cedo. Se a convocação fosse um filme, o cenógrafo teria acabado com todo o suspense. Pois, intencionalmente ou não, o painel atrás da cabeça dos fab four da seleção brasileira já entregava tudo que iria acontecer a partir do momento em que Felipão abrisse a boca. O painel, antes de tudo, já gritaria INOCENTE ou CULPADO. Em caixa alta, por favor.

E quando o técnico da seleção brasileira fala, o sentimento do déjà vu aparece. Não o déjà vu do painel, muito próximo, mas um mais longínquo, de um tal jogador cabisbaixo que entrava em campo na final de 1998, com uma escalação rodeada pelo mistério. Era o mesmo semblante robótico de Ronaldo, o fenômeno, quando de sua misteriosa convulsão. Felipão, tal qual estudante do curso de alfabetização ou idoso acometido de alguma paralisia facial, entoava cada nome de jogador convocado lenta e maniacamente, como se estivesse revelando um mistério escondido a sete chaves ou tivesse por trás de si a carabina de um sogro que o obrigava a casar por ter deflorado uma moça virginal.

Essa toada estranha, sepulcral, tomava forma e os nomes dos jogadores saíam: Ro-gé-rio Ce-ni, do São Pau-lo... O crítico, no entanto, alterna sua atenção do primeiro para o segundo plano daquela imagem. Enquanto Felipão ainda estava nos goleiros, o painel que mostrava o logotipo do Guaraná Antarctica significava inequivocamente "não-Romário" (pois o "Baixinho" é patrocinado pela rival Coca Cola) e aquele minimalista bumerangue da Nike era um pouquinho mais prolixo: dizia Ronaldo, dizia Ronaldinho Gaúcho, dizia Denílson, e dizia Roberto Carlos, com um estranho sotaque inglês. Na hora H, Felipão só fez repetir os nomes que lhe eram "soprados" de trás, do painel, como o "Sim" de um noivo que casa forçado.

Se Luiz Felipe Scolari teve a liberdade para escolher aquela equipe, livre dos constrangimentos das trocas de favores entre empresas patrocinadoras? Trata-se de uma quimera que não nos diz respeito, e que só saberemos, se soubermos, num futuro não tão próximo. Se sim, não resta dúvida de que o cenógrafo da CBF fez o máximo possível para nos avisar, tal qual Cary Grant, de uma forte Intriga Internacional. Contracampo não é uma revista de futebol, mas não teve como não fazer, no ápice de uma de suas reuniões etílicas, a seleção da revista para a copa. Diferia um pouco da do técnico, mas pouco importa. O leitor poderá sofrer ou comemorar junto com os redatores de Contracampo. Bem-vindo às preliminares da Copa!

Ruy Gardnier