O
tour dos Simpsons /
Ana Paula vai à África
O turismo de aventura na arquitetura das imagens jornalísticas
Os
Simpsons vieram ao Brasil. Ana Paula foi à África. Sob
a cartela cautelosa da FOX (que fez questão de se abster
de qualquer responsabilidade sobre o conteúdo "exagerado"
do episódio), Homer Simpson fez a sua tão esperada visita
ao Rio de Janeiro, em busca de um jovem órfão "adotado"
por Liza. Ana Paula vai ao continente Africano com uma missão profissional:
preparar uma série de reportagens sobre o há muito proclamado
"continente dos excluídos". Sua missão é
voltar de lá com material suficiente para mais uma série
de reportagens especiais a serem apresentadas nos principais telejornais
da TV Globo.
É
aí que iniciam as jornadas:
Primeiro
movimento: escolher o destino
Na
série de mazelas ancestrais que povoam o imaginário "África",
crianças morrem de fome, mulheres são mutiladas, cidades
engolidas por vulcões. Exemplo paradigmático do modelo de
desvelamentos sociais que parecem ter tomado de assalto uma certa massa
da produção audiovisual brasileira, o olhar de Ana Paula
Padrão é um rico objeto de observação do modo
de funcionamento interno desse nicho em expansão. A objetivação
do espaço da miséria, respondendo de forma direta à
prática assistencialista do fenômeno das ONGs, se transmuta
numa expressiva cristalização dos mitos geográficos
e sociais.
Seja
na poderosa atração de Cidade de Deus sobre o público
brasileiro, na aclamação "cívica" de um
filme como Ônibus 174, ou no sucesso televisivo de Cidade
dos Homens, podemos esboçar um pequeno conjunto de ícones
argumentativos sobre o qual vem trabalhando grande parte da produção
audiovisual contemporânea: Miséria, Exclusão, Violência,
Dignidade, Cidadania, Justiça Social (ou ausência das três
últimas). Na interação narrativa, no arranjo dessas
mesmas notas intercaladas, uma série de dramaturgias possíveis
se desenham, indo do mapamento social de CDD, à cartografia
do mito de Madame Satã.
Nesse
movimento, a descoberta fotográfica, videográfica, dos limites
do cotidiano médio dos centros econômicos contemporâneos,
retomam sua força expansionista na reinvenção das
viagens, das jornadas humanas. A grande explosão da prática
do turismo em todo o mundo, configura-se também na explosão
midiática do turismo audiovisual.
Como
uma "segunda era de ouro das viagens", a contemporaneidade sufocada
em seus limites reiterativos do cotidiano, se reconfigura em sua admiração
pelo movimento, pela presença num lugar-outro, na diminuição
das distâncias e na doce sintonia única em que as dinâmicas
de vida têm adquirido em todo o mundo. O atravessar um espaço
alheio, o ter contato com uma atmosfera não sua (do espectador),
torna-se uma prática comum no telejornalismo, sob o domínio
das imagens inéditas. Num jogo de identidades público-jornalista,
onde o espectador se vê inserido nas imagens (inacessíveis)
de um lugar distante, ocupando o corpo presente de quem leva o microfone.
Viajar
pela África guiado pelas mãos de Ana Paula Padrão
(negando seu lugar de turista acidental, fixando-se no discurso impessoal
e ausente de surpresas) é assumir a segurança de um Pacote
Turístico Completo, onde não é necessário
pensar ou se questionar sobre o que é ou não de interesse.
Apenas seguir, passo-a-passo, as atrações visuais, as palavras
da guia – que nos dá a satisfação de sacar das mangas
uma "explicação contextualizada" para cada imagem,
e uma "imagem sintética" para cada sentença verbal.
Como
num guia de turismo ilustrado, Ana Paula Padrão escolhe um tema,
um estilo de pacote para o espectador (o turismo de aventura) e um destino
(a África). Em tudo o que representa: turismo (passagem rápida
e lúdica por espaços não cotidianos) + aventura (eventos
que lhe tiram dos hábitos cotidianos em lugares onde sua segurança
física está potencialmente ameaçada), essa forma
de jornada, tem se popularizado em ritmo galopante em programas de TV
a Cabo (Mochileiros, Sem Destino, etc) e nos moldes com
que o telejornalismo contemporâneo tem caracterizado a cobertura
de espaços em crise. Você já foi à África?
Não. Ana Paula Padrão já foi.
Mas
afinal, que lugar seria esse o do turista que atravessa cenários
munido de artefatos inventores de lembranças (filmadoras, câmeras
fotográficas)? Que significados internos caracterizariam a prática
do turismo em relação a outras formas de jornadas humanas?
O que quer o turista? E ainda: eu não vou mais falar dos Simpsons?
Seguimos
abaixo:
Segundo
movimento: arrumar as malas, seguir o roteiro
Sobrevoando
a cidade do Rio de Janeiro, Bart Simpson se vangloria de sua recém-adquirida
fluência no espanhol, e tem de ouvir de sua mãe: "no
Brasil, se fala português". Homer se espanta ao perceber que
o mês de fevereiro é quente no Brasil, e deduz que só
pode se tratar do "país do contrário". Liza Simpson
descobre que o órfão que ela viria "resgatar das ruas"
virou um astro de TV em um programa infantil. Essas defasagens entre as
expectativas dos Simpsons em relação aos países que
visitam, e o rearranjo que os signos desses espaços promovem diante
deles é o verdadeiro mote central do chamado Tour dos Simpsons:
No
Japão (episódio, 30 minutos sobre Tóquio)
todas as principais expressões da cultura japonesa são paródias
sarcásticas do american way of life: o que há de
mais típico em Tóquio do que um restaurante temático
que tenta reproduzir a "ignorância do povo médio"
norte-americano? Ou o programa de TV em que os Simpsons são humilhados
em busca de um prêmio? Entre as expectativas da ultra-tecnologia
e da sabedoria oriental, os Simpsons se vêem trabalhando num complexo
piscatório em Osaka, arrancando tripas de peixes e repetindo uma
música de "louvor à empresa".
Esse
espelho distorcido de si mesmos, a perda de referências claras,
é sintetizada na fala vitoriosa de Homer: "Como dizem lá
no meu país: Hasta la vista baby".
O
cruzamento entre os estereótipos projetados sobre o Japão
e os modos com que um norte-americano médio se povoa desses signos,
com as surpresas que desestruturam as expectativas levadas na bagagem,
é que regem a ironia do episódio. Os ícones imagéticos
do país visitado são agrupados no mesmo ritmo nonsense com
que os Simpsons atravessam a espacialidade (os próprios Simpsons
não têm endereço certo) dentro dos EUA: são
embaralhados e reconfigurados num jogo de erros em que nada do país
imaginado resta ao turista ao final de sua jornada. Os Simpsons brinca
com a carnalidade do próprio fazer turístico, esse lugar
turista, que descobre espaços munido de guias, em busca do exótico,
do único. Os turistas profissionais (Simpsons) têm como premissa
central a procura por uma realidade nova em tudo aquilo que ela conjuga
como reafirmação de si mesmos. A invenção
pré-adquirida nas definições autômatas dos
guias turísticos funciona como esse éden da novidade segura
– como repete Marge, de forma robótica diante do carnaval: "...uma
festa com alegria, regada a bebida e de sexualidades ambíguas".
Essa
ironia entre o discurso opaco-pronto do olhar turístico e a dinâmica
viva dos espaços encontrados é que forma o olhar com que
Os Simpsons vê a própria prática da descoberta
do lugar-outro.
Por
vezes distendendo os clichês ("meu deus, todos gostam de futebol
aqui" - no hall do hotel brasileiro onde os carregadores fazem embaixadas
com as chaves dos quartos), por vezes deslocando seu solo (o menino de
rua órfão que acaba pagando o resgate de Homer), por vezes
escancarando problemas velados (o livro que Homer leva na mala: "Como
Pilhar o Brasil"); Os Simpsons faz de seu grande objeto de
invenção a maneira com que Liza, Bart, Marge e Homer interagem
diante das diferenças, surpresas e frustrações da
viagem.
Essa
ignorância, esse choque entre o cotidiano seguro da família
(expressa na abertura: escola, compras, sofá, tv) e um novo universo
onde tem de "atuar", é o verdadeiro espaço dramático
de Os Simpsons. Diferente do que diz a cartela da Fox, o
episódio O Feitiço de Liza não é "sobre"
o Brasil, mas sobre a imersão do cotidiano de uma família
norte-americana no conjunto de signos-expectativas que compõe um
"paraíso tropical".
Não
há a pretensão de se desfazer/fugir dos estereótipos/clichês
em função de uma suposta autenticidade representativa. Os
Simpsons brinca justamente de abrir fissuras sobre o modo como os
preparativos e motivos turísticos de uma viagem se esforçam
para pré-estabelecer a identidade de um determinado lugar geográfico.
Os Simpsons atravessa os signos locais com sua própria carga
de clichês, numa paródia em curto-circuito onde o lugar da
"familia que viaja" perde seu solo seguro. Não se trata
de falar sobre o lugar-outro, mas dos Simpsons como seres que estranham,
que tentam se adaptar – não à toa, o mote central das piadas
não é falar das particularidades do país/lugar, mas
brincar com os modos de interpretação e as atitudes que
a familia Simpson toma diante das mesmas.
No
episódio sobre a África, o título e o motivo da viagem
são ainda mais precisos:
O
Safári conta a história da viagem dos Simpsons para
o continente africano a partir de um prêmio oferecido por um biscoito
com o formato de "bichinhos da savana". Esse lugar mediano,
essa relação com a África que a transforma num grande
Safári (onde há mais bichos do que gente), não é
desmistificado pelo episódio, mas levado a suas últimas
conseqüências, esticando ao máximo a visão mediada
que uma família do interior dos EUA tem sobre o continente. Safári,
bichinhos – a própria motivação da viagem é
usada não para falar do lugar de destino, mas para falar dos hábitos
dos próprios viajantes.
Ao
reiterar a idéia politicamente incorreta de caracterizar o continente
como um grande zoológico, a viagem se dá por essa farsa
de conhecimento que o olhar do marketing-promocional projeta sobre o mundo.
Os Simpsons sonham conhecer a África dos biscoitos sortidos e dos
animais interagindo com os homens. A partir dessa premissa básica,
inicia-se uma série de inusitados acontecimentos que, beirando
o surrealismo, desestruturam os próprios motivos pelos quais a
viagem se dá.
O
que fazer com uma África onde rinocerontes nascem de ovos, hipopótamos
têm medo de água, ecologistas exploram macacos em minas de
diamantes e guias de Safári têm nojo de esquilos? "Rinocerontes
não nascem de ovos!" se espanta Liza, quase avisando ao animal
de que ele está errado. A imagem carregada por Liza, advinda de
livros didáticos e documentários de TV, se esfacela diante
do nonsense. A África que a menina leva de casa, aquela que ela
carrega em seus sonhos, não é a mesma que ela vê.
Uma grande ironia, não sobre o continente, mas sobre as instituições
sígnicas que o resumem: animais, cientistas, interação
homem-natureza...
O
gancho inicial da viagem é ainda mais marcante: uma terrível
fome que abate Springfield por causa de uma greve de empacotadores de
supermercado...Os Simpsons vão à África em busca
de um lugar onde possam encontrar comida e bem-estar. Por fim, num último
movimento, os realizadores dedicam o episódio aos empacotadores
da América, "cuja cobiça e inabilidade permitiram esse
episódio..." Um curto-circuito de idéias – faíscas
da mais refinada ironia.
*
* *
Os
simplismos sígnicos são atravessados por outros signos (também
simplistas), criando fissuras na planície tranqüila do olhar
"que conhece". Desnudando-o em sua fragilidade, em seu solo
seco e quebradiço. O turismo como forma de percepção
espacial lúdica e acomodada é rasgada pela ironia dos acontecimentos
– um auto-retrato do turista e uma fresta para a dúvida. A dúvida.
Nada se cristaliza através do discurso inventivo de Os Simpsons,
abrem-se rachaduras nas máscaras do entretenimento e do conhecimento
estrangeiro – descolam-se os lugares do estar no lugar geograficamente
e o encontrar-se em sua temporalidade, em sua sintonia. Conhecer a África,
o Brasil, o Japão, os EUA, será sempre um jogo de limitações
– uma invenção apequenada, uma miniaturização
codificada, mesmo que afetivamente ativada. A família Simpson nos
serve de modelo nesse jogo de ignorância e conhecimento cristalizado
que forma a dinâmica própria do olhar turístico: onde
o atravessamento das fronteiras físicas se traveste em atravessando
de fronteiras temporais – e o olhar-turista quer poder contar através
do que viu uma vivência do lugar mesmo em que colocou seus pés,
fazendo da experiência da presença física um estatuto
de conhecimento inalienável – "Eu estive lá, eu conheço
o Brasil, você conhece a África?".
O
turista quer não ter lugar, quer se ter como a um zero, uma base
comum para a apreensão das novas paisagens. Normalidade, sanidade,
certeza, tudo menos admitir-se como um evento exótico em si mesmo.
A invenção de um conhecimento que não lhe arranque
de seu modus operandi se dá justamente porque esse lugar
de origem (a "casa" – para os Simpsons, a cidade de Springfield)
faz-se opaco, sintético, inexistente em seu desejo de onipotência.
O turista busca um conhecimento que saiba ser quantitativamente volumoso
e, ao mesmo tempo, qualitativamente portátil, capaz de ser levado
de volta para casa e colocado, traduzido em bibelô, sobre a prateleira
da sala. Ou em cinco minutos de reportagem...
Mas
qual a diferença entre a dramaturgia da suspensão/observação-espelhada
apresentada por Os Simpsons e o olhar propriamente dito do Turismo
Audiovisual? O que faz de Ana Paula Padrão (a imagem-que-fala,
não a mulher-fora-da-tela) um exemplo maior do turista contemporâneo,
do fazer turístico do sobrevôo. Em que meandros sua série
de reportagens de cunho social/sensacionalista se transformam em arremedos
de jornadas de aventura, de guias para o exótico, para o perigo
e para o lúdico jogo das novidades cotidianas?
"Ora
ora, o que anda acontecendo pelo mundo?..." – pergunta o cansado
homem de negócios, jogado em seu sofá as onze da noite.
Hora de Ana Paula voltar:
Terceiro
momento: lembranças de viagem – retratos e bugigangas
A
partir do conjunto de observações de nossos dois primeiros
tópicos, proponho aqui uma análise pontual dos elementos
formadores da cena estética do tour de Ana Paula Padrão
pela África. De forma geral, aponto para a forma turística
(nos sentidos expressos anteriormente) com que o telejornalismo praticado
pela linha editorial responsável pela série trata do universo
de imagens que compõe o signo audiovisual "África".
A
série de reportagens foi dividida entre dois telejornais, o Jornal
Nacional e o Jornal da Globo (com episódios em torno
de 3 minutos), totalizando cerca de 30 minutos de material audiovisual
durante uma semana, intitulados da seguinte forma:
Jornal
Nacional (20:30): Série África: Doenças
na África / Rotina de Sacrifícios / África – os efeitos
da seca / As crianças e a guerra / Limites da Guerra.
Jornal
da Globo (23:30): Série Continente Excluído:
No meio do caminho / Inimigo Natural / África das Guerras / Profissão:
solidariedade / Um continente Inesquecível.
Numa
visão geral, o que se vê é a recorrência de
palavras chave, combinadas e recombinadas, apontando para um conjunto
de sínteses dramáticas funcionais. O próprio nome
do continente (a apreensão espaço-social "África")
é repetido ao menos duas ou três vezes por episódio,
funcionando como o abre-alas metonímico das imagens (fenômeno
também presente, comentemos, em Cidade de Deus). Não
existem pessoas/indivíduos diante dos olhos do turista, mas "representantes
típicos" – conjugados num certo modo de vida reconhecido como
autêntico de uma região: cada criança filmada, cada
mulher, cada homem, torna-se uma máscara totalizada em generalidades:
a Violência, a Guerra, o Sacrifício – premissas da viagem.
Numa tese reiterativa e velada sobre o modus operandi do continente,
Ana Paula Padrão traz ao público um conjunto de imagens
entrecortadas, sufocadas sobre sua fala redundante.
Para
que uma viagem em 3 países (num continente com mais de 50 países)
apresente-se como um "retrato do povo" da África, uma
série de ferramentas estéticas são ativadas. Mas
não se trata apenas de um movimento que generaliza moralmente seu
objeto, pois uma das marcas do olhar telejornalístico-turístico
é justamente uma certa indiferença saudável, um certo
ar blasé. Longe do modelo griersoniano da apresentação
moral, o modelo turístico da descoberta dos espaços quer
fugir de uma certa literatura-jornalística incisiva, e se inscrever
numa imersão leve, até o tornozelo, onde se sente a temperatura
da água mas não se atreve o mergulho. Ana Paula desenha
com sua voz e o trabalho do câmera, uma coleção de
pequenos bibelôs temáticos, representantes de um mesmo conjunto
de teses veladas. Ou tomadas como um zero.
Qual
é a África de Ana Paula Padrão, visto que não
é a de uma caixa de biscoitos sortidos? Qual o lugar da personagem
Ana Paula atravessando aquele espaço estranho, tão distante
da bancada do Jornal da Globo?
O
que parece ser central na criação dessas imagens é
o exercício jornalístico que Ana Paula pratica na tentativa
de se falar de temas a partir da procura de eventos que
os ilustrem, e não o inverso. Essa primazia dos temas, visto que
não existem fatos momentâneos suficientes para a fome do
olhar midiático, é responsável pela estrutura narrativa
das reportagens. Um paradigma dramatúrgico da ficção,
da roteirização da invenção, que encontra
ecos na estrutura dos parques temáticos e em toda sorte de entretenimento
enquadrados nesse gênero da simulação.
De
alguma forma, o pensamento jornalístico de Ana Paula reproduz o
preparar as malas caracterizado pela viagem da família Simpson.
Como não há eventos a emergirem da vida cotidiana africana
que interesse às mesmidades relevantes do telejornalismo globalizado,
Ana Paula terá, justamente, que criar/narrar os fatos, as situações,
e submetê-las à comprovação de seus temas de
interesse. Como falar da fome, como falar da guerra, como falar da "tragédia
africana"? O roteiro de Ana Paula perde, nesse exercício de
formatação, a própria carne de sua presença,
esquece-se de si mesma – como na articulação de publicações
de turismo onde se estabelecem "distritos de interesse", e se
relevam a grande massa das áreas, ao status de "menos representativas".
Para
o olhar de Ana Paula, a Manhattan, a Zona Sul, o Pelourinho desse continente
africano são os acampamentos e abrigos de refugiados. Todas as
atrações temáticas que Ana Paula apresentam são
na verdade (como se pode assimilar em informações rapidamente
lançadas) articulações em torno das diversas atividades
que formam as práticas assistencialistas da Brigada da Cruz Vermelha.
Mas Ana Paula não se quer assim, ela não diz: meus guias
da Cruz Vermelha me mostraram isso, me contaram isso – Ana Paula NÃO
faz uma série de reportagens sobre aspectos do cotidiano da Cruz
Vermelha em países da África. Não, ela apenas sorri
e repete: "Essa é a África".
As
imagens de Ana Paula são a recriação posterior de
tudo aquilo o que o turista ideal procura: o encontro com seus sonhos/pesadelos
projetados – com a surpresa da satisfação garantida (paradoxo
fundamental). Ana Paula só vê nos países que visita
aquilo que busca em sua missão de humanidade jornalística.
Se foge do estereótipo comum das savanas e dos leões (ironizada
por Os Simpsons), Ana Paula faz justamente um movimento para o
estereótipo do inverso real – algo como: "a África
não é a savana, a África é isso". Esse
dispositivo que trata o sofrimento/pobreza como parâmetro para a
concretude, para a autenticidade das imagens, é um fenômeno
marcado pela banalização do assistencialismo como forma
de interação social. A dor, a pobreza, a tristeza, adquirem
um estatuto de verdade, de base concreta para a apresentação
do mundo à medida que se elevam a um melodrama cotidiano. Os sentimentos
de alegria, de felicidade são desvalorizados e colocados num certo
âmbito da fantasia, do não relevante. Da ficção.
Ana
Paula passa 21 dias entre a Etiópia, o Quênia e o Sudão,
e só fala/trata de cenas de dor e sofrimento. A alegria é
tratada como um alento, um apesar das mazelas, uma esperança longínqua....A
África de Ana Paula é o terreno maior da morte em vida,
e por isso mesmo, se torna objeto de uma concretude temática e
taxidermista. Onde pessoas, gestos e vontades passam a se tornar tipos,
representantes diretos desse conceito maior de povo excluído.
Pequenas
histórias pessoais são contadas como forma de dar pequenezas
aos grandes enunciados, mas não são elas quem inventam os
enunciados. Pelo contrário, os enunciados é que parecem
dar a relevância das palavras – revividas pela jornalista. A vida
dessa ou daquela jovem mulher só se justifica enquanto exemplo,
dado, estatística: as "mulheres africanas" isso, os "homens
africanos" aquilo.
Cenas
típicas, pratos típicos, vestimentas. O universo África
é catalogado como num álbum de retratos em que a última
coisa a não ser questionada é o lugar do viajante. O que
importa é a jornada, o viajante é opaco, o que vemos é
uma contação de histórias travestidas em expressões
do ambiente; através de uma fusão indutiva de imagens e
palavras.
"Becos
imundos", "Mutilação genital", descrição
detalhada da receita de sopa de espinafre, "isso é a África",
"Cidades como sopas de letrinhas", "Mulheres Africanas",
são alguns exemplos do reducionismo intocável com que Ana
Paula inventa seus cartões postais. A repórter vaga diante
do olhar do espectador, indo de país a país, cidade a cidade,
acumulando pequenas atrações visuais (de belas paisagens
a sensacionalistas imagens de crianças mutiladas pela guerra) que
vão povoando a hipnose de seu discurso ininterrupto.
A
cada episódio, Ana Paula aparece de corpo inteiro, de pé
no meio de uma multidão nas ruas de alguma cidade, como um fantasma
sem carne que se desespacializa ao mesmo tempo que reitera sua identificação
representativa com o espectador – como a mulher-imagem que de fato esteve
lá. O que é característico é que essa presença
não passa de uma informação comprovativa, pois não
se reintroduz como fenômeno. Na verdade, o único efeito gerado
é seu papel de mediadora, de guia local – como numa daquelas viagens
a países exóticos em que o guia fala inglês e se veste
com o terno bem passado da empresa. Ela é um braço institucionalizado
da presença informativa da emissora em que trabalha: Ana Paula
funciona não muito além de uma vinheta interna da imagem,
dando credibilidade às palavras proferidas e imagens mostradas.
Ana Paula não existe, a não ser como gancho de segurança,
como forma do espectador colocar seus seguros tornozelos na água.
Seguimos
o roteiro como autômatos, olhamos rostos como quem vê bichos
num zoológico, gestos como num museu de movimentos. Entidades estranhas
são articuladas na mesma gramática audiovisual com que o
telejornalismo tem subjugado as parcelas dos habitantes brasileiros desarticulados
do domínio econômico-consumista da cultura cultivada na TV
contemporânea.
(E
não se trata de se caraterizar uma "cosmética da fome"
– visto que tal proposição crítica se engana ainda
mais na insinuação elitista de que pode haver sim um formato
estético "artisticamente capaz" de expressar a temporalidade
íntima da fome. Questão outra...)
Não
por acaso, Ana Paula "encontra" nas cidades do Quênia,
vários "similares" africanos de nossos clichês.
Quando tenta traduzir a expansão de imagens possíveis em
pequenas sentenças sintéticas, a jornalista se utiliza dos
mesmos modelos de articulação de substantivos e adjetivos
– e constrói, por dentro de seu modelo discursivo inflexível,
uma mimese dos clichês brasileiros: "Crianças vão
a escola sob árvores, como no ensolarado Nordeste..."
A
incapacidade de abrir fissuras em seus modos de dramatização
de temporalidades-outras resume a jornada de Ana Paula em uma prática
turística da criação de paralelismos didáticos,
pequenas pílulas de emoção. Fórmulas que criam
uma falsa apreensão da diferença a partir da rearticulação
do mesmo. Férias audiovisuais. Uma jornada que se descola da vida
cotidiana através da diversidade de elementos, recompostos numa
temporalidade perceptiva mono-tom.
O
passeio proposto por Ana Paula é fruto/representante direto da
inoperância do modelo de diário-comum proposto pelo método
jornalístico de apreensão de imagens. A necessidade de uma
formatação final adepta dos "eventos relevantes",
dos traços de interesse comum-consensual limitam as possibilidades
expressivas dos espaços-outros e da diferença. Se há
um limite crucial do modelo informativo hegemônico na prática
da invenção diária das narrativas cotidianas, ele
se resume nessa cruel formatação do fazer turístico,
numa dramaturgia da aglutinação de clichês (tão
comum nas telenovelas).
Somente
uma prática capaz de fissurar os clichês no momento mesmo
de suas aparições na tela, será capaz de expandir
a imagem televisiva, de conjugá-la de potencialidades libertárias
que venham a promover alteridades temporais recondicionadoras do olhar
cotidiano. A insistência de um certo "jornalismo de qualidade"
em tentar "fugir dos clichês"/"trazer o novo"
através da simples acumulação de elementos inéditos,
sujeitados aos enquadramentos e vocabulários correntes, condena
a prática da televisão cotidiana a essa pobre acepção
de vivências – essa entrega diária de cartões postais
em movimentos.
Com
as malas cheias de fragmentos, Ana Paula Padrão monta seu álbum
de retratos. No último episódio, onde tenta praticar uma
certa observação de si mesma através do que chama
de "nossas impressões", Ana Paula narra um pequeno compêndio
do todo visto, dando pílulas de sua estadia e do modo como se transportaram
de um lugar ao outro e se alimentaram. Uma auto-crítica? Uma quebra
da norma? Não. Ana Paula faz de si mesma a cúmplice do espectador,
o modelo reiterativo da normalidade, da vida comum de todo dia.
Esse
encontro entre o turista e a perambulação da vida de quem
não se encaixa na gramática do mesmo (os "excluídos
errantes") nos remete à dependência que o primeiro nutre
por seu alter-ego sofredor. Essa necessidade que o turista tem de enquadrar/delimitar
o sofrimento alheio (o espaço do excluído/exótico),
funciona como ferramenta para sua própria atemporalização.
Numa afirmação de um certo paraíso-zero/modelo; onde,
supostamente, fluiria a vida do viajante. Fazer do outro o lado sujo/podre
da moeda ideal que caracteriza a vida do viajante é uma ferramenta
de cristalização que despotencializa uma autêntica
fricção entre suas gramáticas.
As
jornadas da liberdade turística necessitam de um referencial errante,
de um personagem outro que faça de sua vida (a do turista) uma
forma livre de caminhar. Desligar-se do sofá de sua casa e observar
as mazelas de quem erra pelo mundo com fome articula-se como a felicidade
necessária para a certeza de que sua jornada audiovisual se dá
no fluxo mesmo de sua liberdade: de ver, de julgar, de ajudar. O cetro
da solidariedade pesa macio nas mãos de quem se considera detentor
máximo do próprio destino – capaz de observar o mundo com
piedade. O turismo de aventura de Ana Paula Padrão não desestrutura
qualquer modo de apreensão do olhar sobre a África, ao mesmo
tempo que cristaliza esse conhecimento do exotismo alheio como forma de
afirmação estática da vida do viajante.
Vá
para onde vá, o monolito turístico de Ana Paula Padrão
não se arranha – abre e fecha gavetas, apenas guardando, em sua
memória vocabular, novos sinônimos para seu rosto – e para
sua horrenda face distorcida: o mundo lá fora, o louco, o exótico,
o excluído.
Porque não fazemos compras em postos de gasolinas como todas
as pessoas normais?"
"Faz calor em Fevereiro; esse é o país do contrário..."
(Homer Simpson)
"Não
admira que a metade turística da sociedade vacile na medida
em que se interesse pela outra metade, a dos vagabundos. (...) "Quanto
mais repulsiva e detestável a sorte do vagabundo, mais toleráveis
são os pequenos incômodos e os grande riscos do turista".(...)
"São suas privações gritantes que reduzem
as preocupações das pessoas, (...) é sua evidente
infelicidade que inspira os outros a agradecerem a Deus, diariamente,
por tê-los feito, turistas".
(Zygmunt
Bauman – in O Mal-estar na pós-modernidade)
Última
parada (por enquanto...).
Felipe
Bragança
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