O
Círculo Vermelho,
de Jean-Pierre Melville
Le Cercle Rouge,
França, 1970
"O
ladrão Corey (Alain Delon) é libertado da prisão,
no mesmo dia em que o assassino Vogel (Gian Maria Volonté) escapa
do comissário Mattei (André Bourvil), que o levava sob custódia
para a penitenciária. Os destinos de Corey e Vogel se cruzam para
assaltarem, junto com o ex-policial Jansen (Yves Montand), uma joalheria.
No entanto, o assalto é dificultado por Rico (André Ekyan),
antigo chefe de Corey que deseja vingança, e por Mattei, que na
caça de seu prisioneiro força o escroque Santi (François
Périer) a delatar os ladrões." Esta é a trama
de O Círculo Vermelho (1970), com a qual Jean-Pierre Melville
faz uso do thriller para revelar a imensa ambigüidade moral
do homem e da sociedade.
No
thriller clássico, há a dicotomia do bem contra o
mal: os crimes cometidos pelo vilão, que trazem o caos ao mundo,
devem ser solucionados pelo herói, a fim de que a ordem retorne
à sociedade. Mesmo que o vilão, no mais das vezes, seja
apresentado como uma figura atraente e sedutora, trata-se de recurso narrativo
para forçar a identificação do espectador com o mal
e, desse modo, amplificar o impacto tranqüilizador da volta à
normalidade proporcionada pelo herói.
Em
O Círculo Vermelho, contudo, Jean-Pierre Melville borra
deliberadamente os limites entre o bem e o mal, dado o caráter
impreciso, nebuloso e ambíguo dos personagens. Revelador é
o diálogo entre Mattei e o juiz de instrução (Yves
Arcanel), no qual este diz ao comissário que todos os homens são
culpados, porque já nasceram assim: referência ao pecado
original do Gênesis – em que Adão e Eva transmitiram a culpa
de sua traição a Deus para todas as gerações
–, reencenado na história de Caim e Abel, na qual o homem se mostra
capaz de matar seu próprio irmão.
Se
todos os homens são culpados, implica que o herói, aquele
que deveria manter a ordem e a paz social, possui a mesma natureza daqueles
a quem combate. De fato, em O Círculo Vermelho, o comissário
Mattei se utiliza dos métodos mais torpes, corruptos e imorais,
como a traição, a intimidação, a mentira e,
sobretudo, a delação (não há polícia
sem delatores, segundo ele), para alcançar seus objetivos, compactuando
com a crença maquiavélica de que os fins justificam os meios.
Já Corey, Vogel e Jansen, em teoria os "bandidos" da
trama, desenvolvem uma relação de insuspeita amizade, lealdade
e integridade moral, marcada pelo respeito à palavra empenhada
e ao código de honra dos marginais – código este que, entretanto,
não existe para o "herói".
Para
reforçar ainda mais essa ambigüidade dos personagens, Melville
os põe na tela sem nenhuma motivação. Desse modo,
se em geral cabe ao herói agir (ou reagir) em virtude de seu senso
de justiça, Mattei, inversamente, comporta-se como um profissional
competente, que pretende somente cumprir seu trabalho de maneira eficiente.
Corey e Vogel, igualmente, tornam-se amigos sem que haja maiores explicações,
assim como se desconhece os crimes que levaram ambos à cadeia,
nem qualquer fato relativo à vida pregressa dos personagens: eles
existem no momento da ação revelado pela câmera, inexistindo,
em conseqüência, resquícios psicológicos ou ligações
pessoais capazes de motivar suas atitudes.
O
comportamento burocrático de Mattei, porém, aliado às
palavras do juiz de instrução, permitem que não apenas
o suposto herói seja ambíguo, como também transformam
a sociedade a quem ele serve em um ponto de interrogação.
Como policial, Mattei representa a força repressiva do Estado e
da lei, que age para perpetuar o contrato social: como todos os homens
são culpados, é tarefa do Estado promover a convivência
pacífica entre eles, que aceitam, para tanto, abdicar das liberdades
individuais. Contudo, como é possível ao Estado ter legitimidade
para garantir a paz social quando ele mesmo se funda sobre a repressão
dos direitos e sobre a violência, tornando-se, portanto, uma instituição
imoral?
Assim,
em uma sociedade em que o homem é lobo do homem, e na qual a lei
está impregnada de violência, sobra a Corey, Vogel e Jansen
a escolha de se manterem fiéis uns aos outros e às regras
do código de honra por eles criadas, até o trágico
desfecho. Se em uma sociedade tão ambígua não existe
possibilidade de redenção para eles, resta-lhes o consolo
de que seus sacrifícios não põem fim à desordem
do mundo.
Paulo
Ricardo de Almeida
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