Reality shows: a nova dramaturgia televisiva do século XXI

Não chega a ser surpreendente mas, devido ao tamanho da repercussão e número de respostas, bastante impressionante quão equivocada costuma ser a "crítica" televisiva e cultural do fenômeno dos reality shows. Imbuídos de um espírito ao mesmo tempo nostálgico ("como era boa nossa TV...", "como era bom o nosso mundo..."), altamente preconceituoso e simultaneamente equivocado (acha-se high brow, quando na verdade é a manifestação do mais batido senso comum, middle brow puro) e tomado pelo impulso inesgotável da gracinha que toma nossa mídia (onde o maior elogio a alguém seria chamá-lo de witty, de preferência assim mesmo, em inglês), em nenhum lugar você consegue ler um esforço de compreensão do que acontece na TV atualmente que ultrapasse o mais óbvio, em busca do que explique e discuta o fenômeno de fato.

Tal e qual a própria Rede Globo (conforme discutimos em artigo anterior), os críticos assistem, mas têm vergonha de gostar. Ou pior, não gostam, mas têm preguiça de entender porquê. Ou pior ainda: gostem ou não, não se esforçam por olhar fora da telinha da TV um mundo todo que se apresenta a cada dia para eles, significado e simbolizado em suas casas. Só isso explica termos críticos que se unem a Xuxa pedindo menos palavrões e mais inteligência nas conversas. Críticos perdendo seu tempo fazendo pouco do que seja a celebridade dos "artistas" da Casa dos artistas ou julgando desinteressantes as personalidades dos participantes do Big brother. Ai ai...

Por isso, meio cansados disso tudo, e sabedores de que Big Brother e Casa dos Artistas são, no mínimo, muito mais interessantes que seus detratores, vamos tentar olhar com um pouco de critério para o que acontece no nosso horário nobre da TV. Para tal, precisamos esquecer tudo que a Rede Globo tem feito de equivocado no seu programa. Não só porque senão o artigo passa a ser sobre isso (como já o foi na semana passada), mas principalmente porque queremos tratar aqui da noção do que seja de fato um reality show, independente de se a Globo mesmo parece não entender muito.

Há pouco tempo, muito pouco mesmo, estes já citados críticos, e tantos outros, reconheciam uma crise na teledramaturgia nacional. Acometida de mesmice brutal, de repetições e obviedades, a nossa telenovela estava perdendo sua atração. Isso podia ser notado em vários números de Ibope. Embora no fundo este raciocínio partisse de uma mesma nostalgia preconceituosa já notada acima, o que não se pode negar é que ele possua um ponto de relevância: todo formato possui um máximo de exploração antes de exaurir-se ou renovar-se. Isso está na história das artes, e se pensamos especialmente no cinema tomando como exemplo o mais comercial deles (o americano dos estúdios), veremos que os gêneros (ou formatos) são de fato cíclicos. Musicais, westerns, film noir, comédias adolescentes, todos vão sofrendo momentos de maior ou menor sucesso de acordo com circunstâncias sócio-culturais, mas também de acordo com ciclos de esgotamento de uma proposta.

Ora, a telenovela brasileira completa mais de 30 anos de existência, em muitos momentos com uma presença diária de até 8 horas de programação (somando-se diferentes redes). Claro, a telenovela não é uma só, possui inúmeros gêneros (tanto que se criou um significado estético para o que deveria ser só um horário, ou seja, "novela das 6" ou "das 7" ou "das 8"). Mas, todos estes tipos foram se alterando, modificando, recebendo consideráveis adições feitas por tantos nomes (de diretores e de autores), até podermos julgar que, sim, o formato se encontra numa certa crise ao início do século XXI. Crise esta que se torna mais complexa quando somamos a ela a entrada da TV a cabo (que dilui a atenção de uma classe mais alta, com maiores opções) e a necessária adaptação das grades da TV aberta rumo a uma popularização necessária. Ou seja, sem qualquer nostalgia, a TV dos anos 70 não pode ser modelo para a do ano 2000, porque seu público e seu país são completamente diferentes.

Pois bem, não por acaso, entra em cena aqui o fenômeno dos reality show. Que, é bem sabido, está incluído num contexto muito mais complexo, uma vez que trata-se de acontecimento mundial. Portanto, relaciona-se ao momento histórico da mídia mundial, onde há algumas noções universais. Como a inversão da lógica do "você precisa ser alguém para estar na TV" para o "você passa a ser alguém se está na TV". Como também o interesse pela vida como espetáculo, que filmes como O show de Truman e ed tv já prenunciavam antes da explosão mundial dos reality shows. No entanto, embora precisemos notar e reconheçer a existência de todos estes fatores, não vamos entrar em discussão direta aqui com eles, e sim com a noção que nos interessa que é a dos reality shows como desenvolvimento da teledramaturgia. Para tal, vamos nos ater mais ao Big brother, por dois motivos. Um, bem prático: pouco pude acompanhar a primeira versão do Casa dos artistas, e esta segunda mal começou. O segundo, também já falado no artigo da semana passada, é que diferencio o atrativo básico dos dois programas, que julgo bastante distintos em sua gênese, e inclusive no tratamento de ambos pelas suas emissoras (esteticamente, principalmente), embora como já dito a Globo não resolva bem essas questões. Casa dos artistas é mais filhote de um show de espetáculos, de um Domingo legal, onde o que importa é ver a performance daquelas pessoas como "gente". Ele é editado exatamente assim pelo SBT, inteligentemente, e apresentado por Silvio Santos desta forma. Já o Big brother está (ou deveria, tratemos por exemplo o que vemos no Multishow) bem mais próximo da telenovela e é disso que queremos falar.

Teledramaturgia significa acima de tudo dois componentes, os quais analisamos agora.

Trama - toda novela se baseia numa teia de acontecimentos que assegura o interesse do espectador dia a dia. Por isso, o primeiro capítulo é sempre tão importante e bem cuidado, e muitas vezes o ritmo das primeiras semanas é muito mais acelerado, e cheio de acontecimentos. Precisa-se garantir o interesse do espectador. Num tipo de programa como o Big brother, é vital portanto que se apresentem logo os "personagens", e suas histórias, para que o espectador se interesse por eles. Isso ainda está por ser melhor solucionado pela Rede Globo no futuro, que nesta edição tentou criar "acontecimentos" consecutivos para manter a audiência interessada (a prova do carro logo no primeiro dia, escolha de líder, prova por comida, etc) quando o realmente importante é fixar os personagens. Quem se interessa por quem vai ganhar um carro se ainda não conhecemos aquelas pessoas? Isso nos leva ao ponto seguinte, essencial.

Personagens - a trama pouco terá interesse se não houver empatia (simpatia e antipatia) dos espectadores pelos envolvidos nela. Para isso, é importante ter pessoas diferentes, com características de identificação simples (o cantor, a funkeira, a intelectual de óculos, o malhador, o playboy, a patricinha, o estrangeiro), mas que vão assumindo diferentes papéis ao longo da narrativa, surpreendendo e revelando novas características. Não adianta pré-determinar quais serão amados ou odiados pelo público (e isso não vale só no Big Brother, se pensamos num Felipe Barreto ou Sinhozinho Malta, ou tantos outros vilões muito mais amados que os mocinhos), mas sim que eles sejam reconhecíveis como indivíduos. A noção que os críticos tanto usaram de "desinteressantes" é uma bobagem. Os participantes do Big Brother são tão interessantes quanto qualquer pessoa, o que é parte da idéia do programa, como veremos mais tarde.

Juntando-se trama e personagens, pode-se desenvolver a narrativa na qual estes se desenvolverão, buscando sempre manter a atenção e interesse do espectador. Aí sim precisamos começar a entrar no tal território que possa entender porque o reality show traz algo de novo que possa renovar a idéia de dramaturgia televisiva. Comecemos pelo fato mais óbvio: estes personagens existem de verdade. Ou seja, fora das telas eles continuam vivendo (e neste ponto as limitações da dramaturgia tradicional nos lembram do já clássico Rosencrantz e Guildenstern estão mortos de Tom Stoppard). Eles têm família, amigos e uma casa fora da nossa telinha. Isso os torna, automaticamente, empáticos, pois são como nós neste ponto. Fora isso, se você bater neles, dói mesmo, se você xingá-los, eles ficam chateados, se você beijá-los, eles ficam excitados. Este é o primordial ponto novo de atrativo do público. Prova de sua funcionalidade, é que as pessoas voltam a discutir os personagens em mesas de bar, fóruns de discussão na web, etc. Há quanto tempo isso não acontece com uma novela? Claro, alguns poucos fãs discutem, mas de forma aberta, na mídia e na rua? Pessoas que nunca assistiram novelas se interessam por estas discussões, pelos personagens. Porque eles existem.

O que nos leva à complicada noção de "realidade". Talvez o principal problema do programa seja este nome, reality show. Vários críticos "inteligentíssimos" se prendem a este ponto: o programa é manipulado, aquilo não é real. Isso é uma bobagem, mas parte da culpa é da própria Rede Globo que tenta forçar esta barra sempre. Vamos, então, combinar o seguinte: aquilo É sim REAL. Afinal, aquelas pessoas têm CPF, endereço e (dizem os mais religiosos) corpos e almas. Ponto.

Aí, mistura-se a noção de que o que eles vivem lá não é "realista". Óbvio que não. Quantos de nós já fomos trancados numa casa com 11 estranhos com câmeras ligadas em todos os lugares para disputar R$500 mil? Então, vamos combinar o seguinte: é meio óbvio concluir-se isso. Quando a rainha Xuxa esteve lá, ela ouviu da própria "personagem" Estela: "é claro que não somos 100% nós mesmos aqui dentro". Obcecada pela contenção da realidade em fórmulas compreensíveis, a genial rainha dos baixinhos perguntou qual a porcentagem de realidade. Ao que André emendou (e frases das pessoas lá dentro ironizando seus colegas globais nas intervenções destes têm sido comuns, mostrando que lá dentro eles entendem muito mais o que se passa do que a Rede Globo): "62,7%".

O ponto principal aqui é: não importa se fazer esta distinção entre realidade e realista, porque são óbvios estes limites para qualquer um, neste caso. E, as noções são um pouco mais complexas do que querem fazer crer nossos coleguinhas. Como disse certa vez o grande documentarista Frederick Wiseman, quando perguntado se a presença da sua câmera não tirava a "realidade" dos fatos que documentava porque as pessoas tornavam-se auto-conscientes de sua imagem: "Claro que sim. Mas, tanto melhor porque elas passam a projetar aquilo que acham que as pessoas devem ver delas. E com isso, revelam-se ainda muito mais profundamente nas suas crenças e ideologias". E ponto final. Portanto, a noção de "realismo" é muito boba como está sendo invocada.

Pelo contrário, talvez um dos mais interessantes aspectos do programa seja a metalinguagem (que se fosse feita na ficção seria considerada "genial") que faz com que os participantes refiram-se constantemente ao "jogo", ao "jogar o jogo", numa situação cuja condição metafórica em relação à vida parece ser mais bem aceita quando vem num O show de Truman. Este nível de consciência dos personagens da sua condição de títeres (as referências constantes que fazem ao "Big God", que seria o diretor do programa, são hilárias) adiciona todo um outro nível de interesse às suas ações. pois eles demonstram estar conscientes do seu papel, e ainda assim nada podem fazer além de interpretá-lo.

Mas, esta metalinguagem nunca distancia o público, porque o que importa é o FATO (este indiscutível) de que aquelas pessoas existem fora daquela casa. E isso fascina o público, que se vê ainda mais representado por elas, pois pode ser um deles. É claro que esta "ilusão de realidade" sempre existe nas novelas, e não é por acaso que ouvimos tantas histórias de atores que interpretam vilões sendo xingados e agredidos na rua. Mas, o que esta indicialidade de realidade traz de novo é que quebra o ilusionismo de fato, emprestando novo interesse aos momentos de dramaturgia. Sobre isso, até uma repórter da UOL, jornalista anônima e não um dos nossos grandes gênios midiáticos, entendeu melhor do que a maioria, quando escreveu: "Big Brother Brasil não passa de mais uma novela global, com atores desconhecidos, roteiro amarrado e altos índices de audiência".

Isto nos leva, então, até a pergunta realmente importante: como se dá a dramaturgia num programa como estes? Muito se discute a questão da manipulação, do "previamente arranjado", da "seriedade da votação". Parecem questões menores, uma vez que você entenda ser mais um show do que reality, e pronto. O fato é que a manipulação existe, sempre, mas estará muito mais na edição do que no "roteiro".

Desculpem-me os fãs das teorias conspiratórias, mas eu não posso aceitar a idéia de que "é tudo arranjado", no sentido de cada discussão, beijo ou briga ser previamente anotada pela Rede Globo. Não acredito porque sou inocente? Não, pelo contrário. Não acredito porque sou experiente nisso que se chama a produção de ficção audiovisual. Se tudo que aquelas pessoas fazem fosse acertado, acredite-me, precisávamos trocar os atores todos das novelas globais. Porque simplesmente não se atinge o nível de naturalismo conseguido ali. Só quem nunca esteve num set de filmagem/gravação pode não saber o quanto se demora para conseguirmos algo "crível" em realismo, sem de fato sê-lo.

Então, quando a Cristiana briga com alguém, podem crer que eu acredito que ela foi pega de surpresa e está revoltada; quando o Bruno fala as coisas que fala, ele não ensaiou aquilo; quando o Kleber torna-se incompreensível, ninguém podia escrever aqueles diálogos! E alguém escreveria um caso de amor com uma cadelinha?? E, sim, quando Vanessa e Sérgio se olham eu acredito que eles estão atraídos um pelo outro. "Eles se amam? É só na frente das câmeras?" Ora, por favor... Isso já é assunto para outro tipo de publicação.

Então, é óbvio que a manipulação não é deste nível grosseiro (até porque para funcionar ela pediria uma sofisticação e domínio que a Globo, em suas entradas ao vivo, já mostrou não ter). A manipulação é sempre mais sutil. Dê bebida alcóolica para as pessoas, e elas falarão (e farão) coisas inesperadas. Regule a comida, e elas brigarão. Ofereça prêmios e elas se trairão. Em suma, coloque (quaisquer) 12 pessoas num ambiente fechado e elas interagirão, brigarão, farão sexo. Independente de câmeras, ou roteiro escrito.

Os trabalhos principais de dramaturgia são dois: primeiro, o de edição do que acontece naquele ambiente. Como torná-lo um espetáculo com começo, meio e fim, com plot points, com histórias e desenvolvimentos. A Globo erra ao não dar tempo diário de tela para isso, e ao tentar mexer demais com as coisas. A edição do Multishow é bem superior, e a do Casa dos Artistas também. Todas as intervenções "ao vivo" têm sido desastrosas, e quebram o ritmo da dramaturgia pura e simples. Este erro de análise estava em O show de Truman e fica claro sempre que se assiste o pós-Globo ao vivo no Multishow. A vida DE NINGUÉM é interessante todo tempo, o dia inteiro. E nossos olhos e percepções estão por demais educadas pela dramaturgia. Portanto, o "ao vivo", com sua falta de eventos, é chatíssimo. O importante é como "editar o real". Torná-lo discurso. Afinal, se até o jornalismo faz isso profissionalmente, qual exatamente seria o dilema ético num show???

O segundo trabalho principal é de análise. É preciso ter alguém (inclusive um dramaturgo, porque não?) vendo os acontecimentos do dia a dia, e direcionando o programa a partir de detalhes que enxergue. Sem dúvida, isso a Globo tem feito bem, mas podia melhorar ainda mais. Não precisa de Bial nem de Marisa Orth para fazer as coisas andarem. O que aqueles personagens já emprestam ao dramaturgo é o estofo, a complexidade de personalidade inerente a um ser humano. Cabe a ele torná-los espetáculo.

Se assim for feito com consistência (o que até agora não aconteceu), eu afirmo sem dúvida: o reality show tem vida longa, pois adiciona esta novidade a um formato já mais do que provado. No momento, parece que o maior obstáculo a se enfrentar é menos a percepção do público disto (já garantida) do que tantas vozes se levantando contra algo que é contestado por todos os motivos errados. Desde os palavrões e nível de educação das pessoas (manifestação clara de um purismo quase fascista. Eu, que falo palavrão a beça e não passo o dia dizendo coisas inteligentes, não posso ser tão hipócrita) até o "grau de manipulação da realidade" (em plena era CNN, o Big Brother é tudo menos o problema). Ao contrário do "fim dos tempos" apregoado, este tipo de programa é tão somente uma evolução natural de uma necessidade histórica do ser humano: ouvir histórias com as quais se identifique. Ponto.

Eduardo Valente