Mulheres
higiênicas:
amor, lavanda e bossa nova
Amor
e higiene. Esses parecem ser os referenciais centrais para a busca da
felicidade e da realização pessoal em Mulheres Apaixonadas.
Regidas
pelos mais que habilidoso Manoel Carlos, e dirigidas por seu parceiro
recorrente Ricardo Waddington, as primeiras semanas da nova "novela
das oito" tem se destacado como espaço crucial de representação
de uma certa vivência urbana brasileira. Longe de ser um mero retrato
cronista da realidade das classes mais abastadas do Rio de Janeiro, o
novo trabalho do autor de Por Amor, História de Amor
e Laços de Família (entre outras), se caracteriza
por um imbricado elogio a um certo modo de vida baseado nas dinâmicas
da ordenação e da limpeza como formas de práticas
busca do prazer. A sustentação da felicidade e do bem-estar
através de ferramentas cotidianas de compartimentação
da vida em cenários escalonados, se apresenta não apenas
como objeto de observação, portanto, mas como motor e carne
mesma das práticas políticas ali encenadas.
Sejam
nos núcleos onde a felicidade já reina, como naqueles em
que ela se coloca em questão, as personagens se articulam entre
pequenos e grandes rituais de purificação. Sejam nos empregados
perfeitamente uniformizados, seja na questão que envolve a possível
internação de um casal de idosos num asilo, Mulheres
Apaixonadas se desenvolve contrapondo justamente a contaminação
do desajuste (a presença dos avós indesejados) e o ideal
da assepsia como formato do bem-viver.
A
profusão de cenas de piscina, dos planos subaquáticos, das
cenas de banhos (do chuveiro às banheiras de hidromassagem) e águas
correntes sob céu azul, presentificam o que poderia ser considerado
o leitmotiv de todas as suas personagens: o desejo purificador,
o sentimento de satisfação que as façam deslocar-se
de sua condição cotidiana para uma dimensão etérea
de amor (a trama de Helena). A facilidade com que as personagens fazem
amizades e expressam sua felicidade em pequenos rituais diários
de adequação aos cenários,ferramentas e ambientes,
se sintetiza no espaço da utópica escola dirigida pela protagonista.
A
significação da escola como um universo de lazer para os
jovens, onde as alegrias são canalizadas de forma saudável
(vide a recorrência da imagem da piscina), é apenas um dos
exemplos dessa canalização da vida que se desloca da urbanidade
comum, compartilhada (polis). Casas de praia e montanha, apartamentos
de cobertura, mansões, restaurantes, funcionam como um mapeamento,
uma roteirização do cotidiano como passagens por uma série
de espaços funcionais articulados, interdependentes, mas que mantém
a não contaminação entre suas funções.
Mesmo
que essa representação do cotidiano da alta classe média
já tenha sido trabalhada em telenovelas que incluem de Malhação
a outros trabalhos de Manoel Carlos, em Mulheres Apaixonadas,
o autor consegue ir além: a estética da pureza e a ética
da realização pessoal não só estão
presentes, como se configuram em uma verdadeira dietética
(modus operandi) de vida. Uma dinâmica que se circunscreve
não apenas como retrato de um certo universo sócio-econômico
recortado mas, principalmente, que alcança os pormenores afetivos
das personagens, se fazendo, efetivamente, como formato para os discursos.
Uma
pequena seqüência como a da "noite da pizza" promovida
pela personagem de Suzana Vieira nos capítulos entre os dias 10
a 13/03, pode servir de rico referencial para a estrutura dramatúrgica
e para as temáticas com ela entrelaçadas.
Prazer
e beleza, fazem eco com ordenação e higienização
– traduzidas também de forma direta na transformação
que o personagem Expedito (homem do interior) sofre nas mãos de
sua protetora: seus cabelos são cortados, sua barba é raspada,
o rosto marcado pelo sol da fazenda é transcriado na imagem de
uma limpeza de perfume adocicado e formas equilibradas. "A cara do
Rio de Janeiro’, arremata uma personagem na reunião de amigos –
todos concordam.
Se
essa transformação é o eixo central da seqüência,
alguns outros detalhes que compõe o quadro não nos deixam
crer se tratar de uma característica pontual. A própria
circunstância em que a tal apresentação do novo (e
limpo) personagem se dá, é característica: uma reunião
de amigos para a inauguração da "nova pizzaria caseira".
Mais
uma vez, o que se procede é a celebração desse mapeamento
dos espaços: o lugar celebrado para a realização
de pizza. Não qualquer pizza, mas a pizza caseira de aparência
artesanal. Não um "artesanal" cotidiano, calcado na simplicidade,
mas um certo tipo de "artesanato" caracterizado por uma diferenciação,
de uma "especialidade". A imagem de Cláudio Marzo vestido
de pizzaiolo (avental e chapéu de chef), fazendo a pizza para sua
família e amigos reafirma essa higienização cotidiana
e demarcação tipificada das práticas, isso é:
uma uniformização (no duplo sentido) dos espaços-rituais
como forma de tipificação interna. Essa prática vai
um pouco além, quando a personagem de Marzo se retira (ileso: sem
suor, sem cansaço) de seu trabalho e o passa a um outro personagem.
Este, por sua vez, também coloca seu avental e o chapéu
de chef, conformando-se ao espaço, ocupando o lugar mapeado de
chef. Nenhuma flexibilidade, nenhuma contaminação é
observada nessa cena – todos os personagens dispostos na varanda do apartamento
se harmonizam nessa leveza de eventos, em que nada foge de seu espaço,
onde tudo tem seu lugar de ser. Celebração, em suma.
O
que é mais marcante em cenas como a acima descrita é o modo
como, em Manoel Carlos, elas não se precipitam apenas como uma
alienação sócio-econômica em relação
a realidade massificada do país, mas como exercício dramatúrgico
de comentários intra-trama que funcionam como microscópicas
representações do discurso da beleza pura. Dando à
ela, a voz direta de uma política da felicidade asséptica.
Não se trata, portanto, de se fazer aqui uma cobrança socilogizante
de que a novela de Manoel Carlos melhor descreva a vida diária
da grande massa da população. A questão é
mais profunda, isso é: na escolha e retrato desse universo imaginário
da alta classe média carioca, o autor faz um recorte e monta os
capítulos e diálogos como uma forma de reiteração
não da existência ou interesses estéticos desse modo
de vida, mas como forma de elogio da ordem e da vida em sobrevôo:
ícones do bem-estar, de um Rio de Janeiro de beleza clássica.
Em detrimento dos descompassos, do não acomodado, das contaminações,
Manoel Carlos montou em Mulheres Apaixonadas um verdadeiro tubo
de ensaio do ideal burguês de felicidade baseada na quantidade de
compartimentações funcionais da vida. Quanto mais partes,
mais vida: quantos mais cômodos na casa, quantas mais ‘pizzarias
caseiras’ se tiver, quanto maior for a piscina do clube-escola, quanto
mais casas de campo forem possíveis...
A
mistura, a convivência com o lugar não controlado se caracterizam
como um alter-ego silencioso dessa satisfação – exemplo
na questão sobre o casal de idosos, que, vivendo na casa da filha
não conseguem se conformar a esse lugar e se colocam como uma das
questões morais da trama. Os idosos são os excluídos
de Manoel Carlos, ou melhor, são aqueles que durante a novela deverão
encontrar seu espaço de escalonamento com as demais personagens:
para onde vão os idosos? Qual o lugar dos idosos? Essa parece ser
uma das obsessões da trama. Dar lugar de satisfação
a esses sem-lugar – os desejos higiênicos como propulsores de um
rearranjo social.
E
multiplicam-se os sorrisos e gargalhadas elegantes (todas). Um certo deslumbramento,
associada aos movimentos de velocidade e sobrevôo: daí se
multiplicam as cenas de natação, as cenas de bicicletas,
as cenas de asa-delta, as cenas de motocicletas. Todas cadenciadas pela
brisa leve, pelo movimento que atravessa as paisagens. Gestos que pouco
tocam os pés no chão, vagueiam sob a trilha sonora amena
e adocicada. Músicas que, em geral retiradas do repertório
da Bossa Nova, são utilizadas como comentários constantes
e quase ininterruptos de uma certa atmosfera carioca, presentificada pela
leveza dos pés que planam sobre os cenários e trocam olhares.
Manoel
Carlos, que, em outras ocasiões tinha praticado interessantes choques
criativos entre os modos de vidas de personagens divergentes (em Por
amor isso é mais marcante), mantém uma curiosa tendência
de sua obra na última década: a da passagem gradativa de
sua atenção dos personagens de classe média baixa
para os de classe média alta. Excluindo aos poucos, e aqui em Mulheres
isso alcança níveis inéditos, o elemento do "descompasso
de hábitos" entre seus personagens – comuns em tramas anteriores.
O
que é mais impactante em Mulheres Apaixonadas (e por vezes,
irritantemente previsível) , é a forma com que todos elementos
narrativos funcionam em extrema harmonia e monotonia dentro da trama –
onde trilha sonora, direção e texto funcionam para insuflar
uma só e mesma nota com uma firmeza admirável. Onde os núcleos
(elementos comuns das telenovelas) são usados como a coluna cervical
que rege a vida das personagens: servindo de bases por onde elas tem de
passar para cumprir seus papéis sociais. Mais que isso: para serem
relevantes na trama, as personagens tem de freqüentar (termo corrente)
esses espaços.
Corpos
que flutuam. Essa sanitarização dos hábitos, não
dificilmente, nos levaria a lembrar de uma certa vertente de produtos
voltados ao público feminino comumente propagada pela TV. Do anúncio
de margarina à propaganda de absorventes íntimos, passando
pelas imagens que vendem yogurts naturais, produtos de beleza e afins,
não é difícil encontrar o mesmo tipo de ideal de
saúde e pureza, de leveza do corpo (o culto ao corpo e à
magreza se misturam aqui com a da leveza de espírito). Enfim...
Dramaturgia
de "música de elevador", estética de hidromassagem.
Uma narrativa que transforma uma certa rotina urbana de dois ou três
bairros da Zona Sul carioca em expressão existencial do auto-conhecimento.
E isso nada tem a ver com a beleza confessional de um filme como o recente
Separações, de Domingos Oliveira. Pois se em Domingos
há uma voz apaixonada (quase brega) pelos cheiros e cores de seus
bairros do coração; em Mulheres Apaixonadas, faz-se
justamente o elogio do que não tem cheiro, dos odores programados,
dos gestos "detergênicos". Conduzidos todos, habilidosamente,
ao grande banho final.
Uma
novela de auto-ajuda? Talvez... E haja óleo de banho!
Felipe
Bragança
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