Uma tarde no inferno com
Márcia Goldschmidt


Me lembro do anfiteatro; ela, Márcia, ela ficava no centro. Circulava no espaço vazio com seus passos firmes e decididos. Tinha os cabelos longos e uma boca muito grande. Não estava vestida de maneira elegante, não – usava uma roupa meio esportiva, uma dessas combinações com jeans. Em todo caso, todos pareciam ter muito respeito por ela.

"Todos" era a platéia do anfiteatro – praticamente só havia mulheres. Algumas idosas, outras bastante jovens, mas a maioria de meia-idade. Estavam sentadas e escutavam atentamente, embora nem sempre mostrassem compreender.

Não era questão de compreender.

A música que tocava no fundo era pura emoção. Aquilo enchia as orelhas de comoções sinistras. Um arranjo de cordas sempre intenso que não parava nunca. Talvez fosse algo de Bernard Herrmann, é bem provável. Certo é que mexia com meus nervos e dava a tudo um ar sério e muito grave.

A Márcia entrou na tela coberta de aplausos. Ela dizia : – chegou a hora da verdade. A platéia aplaudia. "Chegou a hora da verdade!", repetia, e seus passos pareciam cada vez mais confiantes. E acrescentou: "O caso é muito sério, é muito sério". Eu que ia trocar de canal acabei ficando curioso. Minha mãe, atirada na cama, disse que também queria ver o que era tão sério. Então Márcia disse : "É muito sério, mas antes a Fulana vai dar as dicas de como perder os quilinhos a mais."

A música parou subitamente. Quando apareceu a Fulana num balcão repleto de caixinhas, tudo deixou de ser grave, a seriedade sumiu. A Fulana mostrou um largo sorriso: ela queria vender as caixinhas. A seriedade fez uma trégua e minha mãe ficou interessadíssima nos produtos emagrecedores da Fulana. Antes que ela pudesse anotar o telefone anunciado no canto da tela, a Márcia reapareceu.

"É um caso muito triste" repetiu, e a seriedade voltou, tão repentinamente como tinha sumido. Pediu para uma tal de Solange entrar na sala. Ela entrou muito chateada: "É muito triste". A Márcia chamou um vídeo e a Solange falava: "Eles batem nos pais, Márcia".

Era um vídeo amador. Uma legenda embaixo informava que se tratava de uma câmera escondida, mas não dizia quem filmava. Os acordes sinistros voltaram e se juntaram aos berros e gritos que vinham do vídeo amador. As imagens tremidas mostravam uma casa, mas era impossível distinguir alguma coisa. A câmera mexia tanto que dava náuseas. Via-se apenas vultos de pessoas, com a imagem distorcida; mas ouvia-se xingamentos, uma voz de mulher xingando. A Márcia explicou que a filha é que batia nos pais.

Minha mãe se contorceu na cama. Ela ficou ainda mais interessada do que eu. "Os pais são idosos e ela bate neles" anunciou a Márcia, e chamou os comerciais. Então a câmera da TV mostrou a última imagem, que permaneceu por alguns poucos segundos: dois idosos entrando lentamente, assim, curvados, o passo lento e derrotado.

Trocou para os comerciais. Eu e minha mãe nos impacientamos. Quando voltou o programa os idosos já estavam sentados. A legenda anunciava: "FLAGRA: CAMERA ESCONDIDA MOSTRA QUE ELA BATE EM IDOSOS". "Eles estão com o rosto todo machucado", explicava Márcia, enquanto a tela se dividia, mostrando de um lado os idosos, de outro as imagens da câmera escondida. Disseram que foi Solange que gravou as imagens, e ela ilustrava o que acontecia no vídeo. Solange informava: "Ela quebra tudo, quebra tudo na casa." A Márcia estava muito indignada, e o demonstrava gritando.

"Isso é um absurdo! É um absurdo!" – era a Márcia gritando. Parecia que gostava especialmente da palavra absurdo. A palavra se destacava entre todas as outras, até porque todo mundo falava ao mesmo tempo. Pois a única coisa que se ouvia, mais alto que todas, era : "isso é um absurdo!" A Márcia queria saber se a filha tinha problema psiquiátrico. "Eu não sei" respondeu a Solange; ninguém sabia. As imagens da casa seguiram, mas era tão impossível ver alguma coisa quanto ouvir alguma frase completa. No meio da confusão, a Márcia acabou furiosa. "Vocês vão ter que se defender!" – foi seu conselho aos idosos. As mulheres da platéia apoiaram. Ouviu-se um "ÊÊÊEE"...A Márcia insistiu: "Vocês vão ter que bater nela também!" – e a platéia delirou. "Eu quero ver se ela vai reclamar!" – finalizou, com a platéia incensando.

O tempo acabou e vieram mais comerciais. A Márcia tinha prometido mais uma atração no próximo bloco. Quando acabaram os comerciais, os arranjos de cordas voltaram. Era o sinal, a coisa ia ficar séria de novo. E pela cara da Márcia, era seríssimo. A legenda em baixo já dizia tudo: QUERO LARGAR A PROSTITUIÇÃO MAS MEU MARIDO NÃO DEIXA. A tal prostituta estava fora do estúdio, numa sala isolada, e a Márcia a entrevistava. "Você tem alguma idéia de por quê o seu marido não quer que você largue essa vida?" "Ele quer o meu dinheiro" respondeu a moça, e depois explicou que fazia muitos programas porque o marido não queria trabalhar e a família em casa era grande. E fazia a profissão contra a vontade – é o que ela afirmava. A Márcia se solidarizou rapidamente com a moça. Dizia: "Ninguém pode te obrigar a fazer isso. Só você pode decidir se quer fazer ou não" – e mais tarde chamou mais um intervalo.

Minha mãe, que estava com o controle remoto na cama, não quis trocar de canal nem na propaganda. Estava com medo que voltasse o programa e ela perdesse alguma coisa. Eu fiquei ouvindo aquela variedade de jingles dos comerciais, um depois do outro, mas não tirava as cordas da cabeça. Aquilo mexia comigo, me angustiava. E quando o programa voltou, com a música sinistra junto, eu tremi.

Ao som da música a Márcia anunciou a presença do marido em questão. Ele estava em uma outra sala e seu rosto não aparecia – via-se apenas um vulto preto, a silhueta que ia do peito até o rosto. Embaixo, a legenda lembrava: MARIDO OBRIGA A MULHER SE PROSTITUIR. A Márcia estava perplexa e parecia muito brava com o marido. Quis confirmar a história. "Mas é verdade?" Sim, era a verdade. "Mas por quê?" Ele tinha seus motivos, mas não podia contar. A esposa também não sabia. A Márcia buscava compreender, só que o marido não contava. "Pra que você quer o dinheiro?" a Márcia perguntou. Ele não respondeu. Dizia que nem queria ter vindo, que a produção tinha jurado que ele não iria aparecer. Parecia contrariado, mas nunca bravo. Tinha a voz nervosa, não irritada, e dava a entender, ele também, que respeitava muito a Márcia. "Dona Márcia" ele respondia, "Dona Márcia eu não posso falar". A Márcia achava que ele devia explicações, a mulher também: as duas fizeram coro para conhecer a verdade. Ele lhes negava: "eu tenho meus motivos, eu tenho meus motivos!"

Então a Márcia tentou negociar. Um acordo de cavalheiros. Ela propôs: "por que você conta só pra mim...?" Ele não respondeu, mas ela já anunciou: "a gente faz um intervalo enquanto ele conta pra mim." Um olhar cúmplice ligou minha mãe e eu; estávamos ansiosos. A curiosidade nos matava. Não se sabia qual estava mais angustiado quando o programa voltou. Apareceu a Márcia.

Silêncio. Na quietude deu-se um daqueles breves instantes onde se vislumbra a verdade. A Márcia fez uma expressão de choque. "Gente...". A música se intensificou. "Esse mundo tá muito louco" – ela desabafou. A câmera fez um zoom na Márcia: "Eu tô passada... quanto mais eu rezo, mais acontece coisa..." O tom melancólico se transformou em raiva: "Vocês querem saber por que ele quer o dinheiro???" A platéia começou a fazer barulho com conversas paralelas; a Márcia tentou botar ordem: "Silêncio, gente!" – depois se voltou para a esposa : "Você quer saber por que ele quer o seu dinheiro?"

O marido reagiu: "Agora a senhora entende porque eu não quero contar?!". Ela reinventou sua cara de assombro. "Você acha justo isso?" – questionou. A platéia continuava com o barulho. A Márcia se alterou: "Silêncio senão eu piro!" A esposa e o marido continuavam em silêncio. "Olha, eu acho que agora você vai ter que contar", aconselhou a Márcia, e a legenda em baixo concordava com ela. MARIDO DIZ: VOU REVELAR PORQUE OBRIGO MINHA MULHER A SE PROSTITUIR – é o que estava escrito. "Acho melhor não contar, não!" – resistia o marido. "Não esconde!" – rebatia didaticamente a Márcia. E falando com a produção: "convençam ele a falar!"

Todo mundo na platéia aguardava a resposta; minha mãe, em casa, chegava a tremer. A única que não queria era a esposa; ela tinha mudado de idéia. Márcia tentava convencê-la, mas a moça parecia confusa. "Claro querida, mas é importante você saber, ele precisa contar...". A esposa, como o marido, não se mostrava resolvida. "À meia-noite e meia tem Otávio Mesquita..." interrompeu a Márcia, e depois voltou-se para o marido: "Vamos lá, você vai ter que falar..."

O marido começou a chorar; era um pranto histérico. A esposa reagiu com um olhar irônico. "Eu quero contar em casa!" - chorava o marido. "Mas eu acho que ela tem o direito de saber!" insistia a Márcia, enquanto a música incessante angustiava. Ela se impacientava, como se cada minuto perdido fosse um soco no estômago. Parecia que travava uma briga com o relógio. Deu-se mais um silêncio, apenas com os acordes ao fundo: – aquilo parecia um inferno!

No meio da angustia, mais um comercial. Enquanto minha mãe aproveitava para ir ao banheiro, eu suava. Voltou o programa. A Márcia exigiu uma resolução e o marido cedeu: "Eu vou falar, eu vou falar!" A apresentadora sentiu um alívio: "ele vai falar, mas, antes, um recado de verão..."

Era de novo uma Fulana com caixinhas; quer dizer, era um Fulano. Eu não lembro mais o recado, na verdade ninguém prestou atenção. As caixinhas não interessavam mais. Minha mãe percebia que estava chegando o fim. Os acordes não paravam, cada vez mais sinistros. A Márcia voltou com o golpe de misericórdia: "Meu filho, é a hora da verdade."

A tela mostrou o vulto do marido. Ele estava pronto, tinha tomado a decisão. "Ela não pode parar de trabalhar porque..." – interrompeu com um soluço – "...ela não pode porque... porque eu tenho outra família!". Nesse ponto seu pranto explodiu. "Se ela parar de trabalhar não vou poder sustentar minha outra família!" acrescentou.

"O quê!" – explodiu a esposa. "Eu me mato o dia todo com outros homens pra você sustentar outra mulher!" A legenda comentava as lagrimas e a indignação : MARIDO DIZ: TENHO OUTRA FAMÏLIA POR ISSO ELA NÃO PODE DEIXAR DE SE PROSTITUIR. "E você tem outros filhos?" – quis saber a esposa. "Tenho", respondeu o marido, resignado entre dois soluços. "Agora deu, agora eu saio de casa", foi a conclusão da moça.

Foi então que o marido se desesperou: "Ô Dona Márcia, fala com ela! Fala com ela!" – ele implorava. A Márcia lançou um olhar de impotência. A minha mãe, sentada na cama, também. A música deu lugar ao escândalo da platéia. "Agora isso é com vocês..." Marido e mulher continuaram discutindo, mas o final tinha chegado. "Meu tempo acabou, desculpe", disse a Márcia encerrando, "meu tempo acabou, mas pelo menos deu para botar os pingos nos is..."

Bolívar Torres