Paris
no Verão, de Jacques Rivette
Haut Bas Fragile,
França, 1995
Se não sabíamos
da admiração de Jacques Rivette pelo teatro de Pirandello,
tivemos a certeza em Quem Sabe, o mais recente filme do realizador,
já exibido comercialmente em São Paulo. Nele, Jeanne Balibar
é uma atriz que faz uma turnê com a peça Como Me
Quiseres, em que interpreta a protagonista (oportunamente chamada
"A Desconhecida", uma mulher amnésica que tenta ser por
todos controlada, seu passado reconstruído, manipulado, ao passo
que ela não se preocupa com sua real identidade, e sim com as possibilidades
de alguém que a possa amar verdadeiramente no presente. Essa personagem
sentiria-se perfeitamente em casa entre as três protagonistas de
Paris no Verão: Louise (Marianne Denicourt) ainda recupera-se
de um coma de cinco anos, indo para Paris visitar a casa de sua avó
morta; Ida (Laurence Côte) é ela mesma uma moça com
surtos amnésicos, órfã, que procura encontrar sua
mãe de sangue; por fim, Ninon (Nathalie Richard), a única
que não tem alguma disfunção psíquica, mas
que precisa viver uma vida completamente diferente quando abandona o companheiro
de vida criminosa.
Paris no Verão
é um filme feito sob o estigma de Pirandello, mas também
é uma comédia musical, uma reapropriação em
outra chave dos musicais americanos com números de dança
e canto tanto dos personagens como de artistas que só fazem
cantar no filme. Rivette, referencial e cinéfilo que é,
teria então que fazer seu filme também passar por Duas
Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort), o
mais bem sucedido filme francês a prestar homenagem ao cinema musical
hollywoodiano dos anos 40-50. Paris no Verão, assim, é
ao mesmo tempo um filme sobre encontrar a si mesmo o que dá
um verniz de obra mais especulativa e um filme sobre o poder do
acaso em nos fazer encontrar alguma pessoa que nos faz falta mesmo que
não saibamos que ela exista (um amor, a mãe verdadeira)
o que nos remete naturalmente para o mundo de fantasia e happy-end
dos musicais. Juntar esses dois mundos é a maior graça do
filme: ao mesmo tempo o andamento cadenciado e sem pressa de Rivette com
a velocidade típica das comédias musicais, ao mesmo tempo
o senso de improvisação nas situações que
Rivette vem experimentando desde L'Amour Fou e um senso muito preciso
de elaboração da intriga "ao gosto do frequês"
que ele persegue em seus últimos filmes (a referência à
comédia americana só ajuda o realizador a aproximar-se de
um cinema mais palatável ao grande público).
Visto de longe, Paris
no Verão pode parecer como uma concessão tola ao mundo
dos musicais. Falsa impressão: visto de perto, o grande interesse
do filme em criar situações musicais é romper a representação,
instaurar um charme no filme que não se restringe mais ao acompanhamento
de uma narrativa, mas se constrói em gestos, movimentos, passagens
de tempo, atmosferas, sensação de lugar, etc. As cenas de
dança de ocorrência maior do que que as cenas de cantoria,
se descontarmos as canções de não-personagens ,
curiosamente, não têm muito valor expressivo nem como coreografias
nem para adiantar momentos da história ou características
dos persoangens. Valem pelo único fato de estarem lá, chamam
atenção para si mesmas e para o ato primeiro que é
caro a Rivette: existe alguma coisa se passando na tela, e essa alguma
coisa é superior ao que essa coisa significa (a narrativa, a representação).
Em Paris no Verão Jacques Rivette alcança com muita propriedade
o terreno em que Alain Resnais vem trabalhando há pelo menos 20
anos: a bidimensionalização de seus personagens para fugir
de todo psicologismo que impregna a maior parte do cinema contemporâneo.
Se para Resnais a saída é apropriar-se de outras formas
de contar histórias (os quadrinhos em Quero Ir Para Casa,
as canções populares em Aquela Velha Canção,
os tipos romanescos em A Vida É um Romance), para Rivette
o caminho também pode pasar por aí (as danças e os
cantos do filme, que quebram a diegese mais do que sustentam-na), mas
baseia-se acima de tudo numa relação diferenciada com o
tempo e o espaço, em toda sua carreira.
Quando saímos
de um filme de Rivette, podemos nos sentir contentados ou não,
dependendo naturalmente do filme e das impressões pessoais de cada
um. O que dificilmente pode ser contestado é que sempre sai-se
de um filme dele com a perfeita impressão do tempo decorrido na
diegese e um forte sentimento de espaço (a casa de cada personagem,
as locações). Ao contrário de grande parte dos filmes
contemporâneos, em que cada espaço vale e é intercambiável
por todo e qualquer outro (Matrix seria o melhor exemplo, um espaço
dentro da matriz vale tanto quanto qualquer outro da mesma forma que um
agente Smith vale tanto quanto qualquer de suas cópias). Rivette,
como seus colegas de nouvelle vague (Rohmer, Chabrol), ainda acreditam
na localização espaço-temporal para acionar dispositivos
de crença e intensidades no espectador. Para cada um a estratégia
é diferente, para Rohmer passa pela luz e pela simplicidade de
cada lugar (todo apartamento rohmeriano parece pertencer ao prédio
ao lado). Para Rivette, os espaços se definem antes por alguma
suntuosidade, ao menos um pé direito enorme (o espaço do
teatro em Amor Louco, o estúdio em A Bela Intrigante,
o ateliê de Paris no Verão), mas principalmente por
dilatar o tempo e fazer com que o espectador na longa duração
do filme enfim capte o gosto de cada lugar que é filmado. Assim,
os quartos possivelmente nos dizem mais a respeito dos personagens do
que suas próprias vidas. O apartamento de Ida nos mostra confusão
e solidão, ao passo que o quarto de hotel de Louise é tão
asséptico quanto o branco em sua psicologia pós-coma, ou
o apartamento de Ninon, algo eternamente em construção,
quase uma cabana de tão provisório. Tamanho cuidado não
reifica os personagens nem faz deles meros reflexos do espaço que
habitam: os espaços são facetas da personalidade de cada
um, assim como o tempo que a câmera dedica a cada personagem é
o tempo interno de cada um. Que o deleite seja forte, porque o prato anda
raro.
Ruy Gardnier
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