A
Fantástica Fábrica de Chocolate
Willy Wonka And The
Chocolate Factory, de Mel Stuart (EUA, 1971)
Filmes cultuados na
infância, época em que nem temos noção dos
significados da palavra culto, tendem a causar uma certa cegueira quando
os revemos anos depois, com uma bagagem cultural muito maior. É
muito fácil ignorar problemas de direção ou de roteiro
como consequência de uma nostalgia dos tempos de inocência
(ou quase), ficando o filme como uma obra intocável, como se nossa
apreciação de pré-adolescentes fosse muito mais rica.
Por outro lado, não é dificil, ainda que ocorra com menor
freqüência, que sejamos levados a achar tudo decepcionante
não percebendo as qualidades que ficam, apesar do tempo.
A dúvida não
é sem propósito porque o canal Cinemax passa neste mês
o filme que fez a cabeça de nove entre dez trintões como
eu, que passaram suas infâncias vendo e revendo os filmes da Sessão
da Tarde. Esse filme é o mítico "A Fantástica
Fábrica de Chocolate", fantasia musical bem característica
de sua época. Willy Wonka fez para a geração
que foi pré-adolescente em 1980 o que o Doutor T de "Os Cinco
Mil Dedos do Dr. T" fez pra quem foi criança nos anos 50. Proporcionou
instantes únicos de fantasia e medo, ficando para sempre na memória
de quem viu. Disse 1980 porque nunca conheci alguém que tenha visto
o filme na época (1971) em que foi lançado nos cinemas.
Mas já vi muito marmanjo emocionado pela lembrança de tê-lo
visto na televisão.
Para minha surpresa,
o filme conserva grande parte de seu encanto. Charlie é um garoto,
entregador de jornais, que ganha um cupom dourado que lhe permite entrar
na misteriosa fábrica de chocolates de Willy Wonka (interpretado
magnificamente por Gene Wilder). Ele e mais quatro crianças, acompanhadas
de um membro da família - Charlie vai com seu avô - passam
por momentos de suspense e diversão dentro de uma fábrica
que mais parece um parque de diversões. E é, na verdade,
uma espécie de provação onde a criança só
sai vitoriosa se não violar nenhuma das regras impostas por Wonka.
Claro que nosso pequeno Charlie sairá vencedor, enquanto as outras
crianças amargarão um triste destino sendo "expulsas" da
fábrica humilhantemente.
Pode parecer lição
de moral com sua mensagem que prega os bons comportamentos. "Se você
fizer direitinho a lição ganha um chocolate". Mas o filme
emociona, faz rir e possui um raro senso de limites para seu humor negro.
Situações
fortes são tratadas com uma leveza incomum. Como bom exemplo disso
temos a cena do resgate. Os cupons vêm nas barras de chocolate Wonka.
A corrida em busca dessas barras é enorme. Uma mulher tem seu marido
sequestrado e deve pagar como resgate sua caixa recém adquirida
dos famosos chocolates. Quando confrontada sobre a escolha entre o marido
e os chocolates pede tempo para pensar.
Em outra sequência,
já dentro da fábrica, o garotinho gorducho e guloso se afoga
e fica entalado num tubo. Com a ajuda de um Wilder inspirado, o espectador,
mirim ou não, não se incomoda com o perigo devido à
ambiência de desenho animado. Mesmo com as previsões sinistras
de Wonka, não ficamos, e não ficávamos, assustados.
A violência é apenas sugerida, de maneira fantasiosa.
O filme ainda reserva
outros momentos de humor inspirado:
- quando o gorduchinho
alemão encontra o primeiro cupom, vemos o reporter na Alemanha
em cena com um chifre de alce por trás, como se fossem dele;
- mais tarde,
quando ele faz uma pergunta ao pai do gorducho, este come, subitamente,
parte do microfone
- em um leilão
inglês pela última caixa de barras surge...sua majestade
- o garotinho
vidrado em televisão, apropriadamente chamado de Mike Teevee, reclama
que não pode ter uma arma de verdade. Seu pai completa: só
quando fizer doze anos.
- um psicanalista
diz que acreditar em sonhos é sinal de insanidade, mas em seguida
pergunta desesperadamente onde está o cupom de acordo com o sonho
de seu paciente.
São momentos
que escritos perdem seu poder cômico, podem até parecer banais,
mas no filme soam como um sopro de humor refinado.
Ou estarei eu enfeitiçado
pelo suspeito clima nostálgico? De qualquer forma descobri que
vem de uma das crianças, justamente a mais mimada, o nome da banda
de rock alternativa chamada Veruca Salt.
Algumas pequenas falhas
no roteiro escrito por Roald Dahl, inspirado em seu livro infantil Charlie
and the Chocolate Factory, e retrabalhado por David Seltzer (diretor
de Palco de Ilusões que não obteve crédito) devem
ser apontadas.
A reclusão
de Willy Wonka, segundo o avô, veio por causa da concorrência
desleal de Slugworth. Parece um fato de conhecimento público. No
entanto ninguém parece conhecer de fato esse senhor. Ok, ele podia
ser recluso também, mas é improvável e não
fica claro no filme.
É gratuita
e sem precedentes a desobediência de Charlie encorajado por seu
avô a beber o líquido levitante. Nada no filme até
então havia mostrado que eles seriam capazes de quebrar uma regra,
principalmente depois de ver uma companheira pagar por ter quebrado uma.
A direção
é segura e eficaz. Mel Stuart é diretor de documentários
feitos para a TV. Raramente dirigiu para cinema e revela aqui que domina
essa linguagem fazendo um belo trabalho de artesão. Não
mostra os vícios que a maioria dos diretores de TV têm, ou
seja, insensibilidade para planos abertos e iluminação invasiva.
Assisti a Fantástica
Fábrica de Chocolate com aquela curiosidade de quem encontrou
um brinquedo de infância num velho baú. Não lembrava
de quase nada do que ocorria antes da entrada na fábrica, o que
se dá na metade do filme. Em compensação, tudo que
se passava naquele playground comestível me era muito próximo,
como se a versão que sempre vi do filme começasse já
dentro da fábrica.
Os estranhos anões
Oompa Loompas são o que de mais infantil existe no filme. E eu
gostava deles quando criança, continuo gostando agora. Sinal de
que ainda sou um moleque? Talvez. Mas penso que tal simpatia vem dos números
musicais por eles protagonizados. A coreografia é muito boa e a
música, com suas variações, bem agradável
por suas características de jogral. Não é a toa que
lembrei de Gentle Giant, influente banda de rock progressivo dos anos
70.
As sequências
que eu adorava do filme não me causaram tanto impacto, principalmente
a do garotinho aficcionado por TV que acaba sendo dividido em milhares
de partículas para ser recomposto dentro de um aparelho de TV futurista
inventado pelo excêntrico anfitrião, a Wonkavision. Tudo
embrulhado com um visual datado, no pior sentido do termo, com aqueles
barulhinhos de sintetizador dignos do Didi Mocó de 25 anos atrás.
Aliás essa seqüência revelou-se uma crítica à
televisão graças à música cantada pelos Oompa
Loompas. Trata-se de um paradoxo, pois o diretor, como já disse,
faz sua carreira na televisão.
Momentos que eu sequer
lembrava me pareceram mais tocantes agora, como a aparição
do sinistro Slugworth que se revela como o principal concorrente de Wonka.
Onde quer que surgia o ganhador, lá estava o Sr. Slugworth para
envenenar-lhe a mente. Sequências de pura fantasia que agradam diferentes
tipos de espectador.
É muito difícil
saber o quanto fui influenciado pelas fortes impressões juvenis.
Tampouco sei dizer se o filme teve recepção carinhosa das
crianças de sua época. Porém, como tentei demonstrar,
considero merecido o culto ao filme. E quem não ficar com água
na boca nunca foi criança.
Sérgio Alpendre
|