O
que McLuhan já sabia sobre os espetáculos de realidade
É incrível como o jogo social/estético é cíclico. Tudo retorna, tudo volta, e tem-se a notável impressão de que nunca se discutiu senão e sempre a mesma coisa. O motivo do espanto: fazendo o dever de casa e lendo o paradigmático Signagem da Televisão, de Décio Pignatari única tentativa realmente vigorosa de tentar compreender as significações do mundo da TV brasileira no campo da inovação e da criação , qual não é a surpresa de se deparar com o trecho seguinte: "Outra curiosidade é que o meio [de comunicação] antigo tende a se transformar em arte, enquanto o meio novo passa a sofrer todos os ataques dos intelectuais (vulgar, alienante, etc.)"1 Ora, não se trata ainda da questão do meio de comunicação, pois a net art ainda caminha a passos curtos (muito embora eles existam e sejam injustamente ignorados por Contracampo até agora). Mas sim de uma ruptura que é feita na estrutura de um mesmo meio, mas que o modifica de dentro: a passagem do folhetim diário em formato novela (ficção, 50 minutos, atores famosos) para o reality show (supostamente vida real, 15 minutos de programa e episódios semanais, de maior duração). Por mais que o meio continue o mesmo, a mudança foi radical: fez a sensação do público e da crítica (mesmo que negativa), tornou-se o centro de todas as conversas em ônibus, nos salões de beleza, nas mesas de bar, e nutre o imaginário nacional de hoje muito mais do que qualquer Murilo Benício ou seu clone nas ruas do Marrocos (ou da Argélia? Quem se importa?). Inclusive a ponto de obrigado, Luciana Araújo conseguir despolarizar a já clássica separação semântica homens=futebol e mulheres=novela tão comuns nas rodas de amigos. Não nos importa mais o que acontecerá com a Regina Duarte, com a Vera Fischer ou com o clone: hoje queremos saber se a pneumática Leka será eliminada porque tomou um porre e quase entrou em coma alcoólico, se a Mariana Kupfer vai soltar outra pérola de patricinha preconceituosa esclarecida. Podemos tentar ensaiar várias explicações para o fenômeno: a novidade que é o espetáculo de realidade, o fetiche que transmite o caráter de "a vida como ela é" dos programas, ao contrário das novelas, engessadas que estão pela repetição sistemática do mesmo e pela previsibilidade dos desenvolvimentos narrativos. Mas isso, na verdade, importa muito pouco. O que nos parece decisivo é a mudança estrutural realizada com o advento do espetáculo de realidade e com a sua conseqüente aceitação por grande parte do público espectador de televisão. E, claro, todas as críticas feitas ao novo formato. Pois bem, mesmo que não haja uma mudança tecnológica no suporte, há certamente um upgrade na relação espectador/programa. Uma modificação na relação de identificação que se estabelece entre espectadores e personagens, mais imediata porque se supõe que vemos "realmente" a vida de cada personagem. Esses programas depreendem a forte sensação de que "podia ser eu". Ou melhor, é o sentimento de identificação associado à idéia clássica, analizada por Aristóteles na Arte Poética de idealização: os personagens dos espetáculos de realidade são "eus melhorados" (segundo Aristóteles, a comédia mostra os homens piores do que são e a tragédia mostra os homens melhores do que realmente são). Outro upgrade, outra evolução acontece sob o ponto de vista ficcional. Enquanto as intrigas principais das novelas já estão definidas de uma vez por todas (embora muitas vezes sejam reelaboradas de acordo com o feedback da audiência, isso não é decisivo), as estratégias de ficção num espetáculo de realidade funcionam de forma diferente. Continuamos tendo os plots principais (o amor de Sérgio e Vanessa em Big Brother, as discussões entre Xis e Mariana Kupfer em Casa dos Artistas), mas até suas conseqüências são imprevisíveis: Vanessa pode alegar sua auto-imagem familiar para não querer ser tocada pelo namorado, Xis pode sair da Casa e dar fim a um dos pontos altos do programa. O espetáculo de realidade pode ainda significar uma mudança aguda até em relação ao que é a ficção na TV: a forte sensação de que nada acontece, de que não há intriga. Esse argumento, dado na maior parte das vezes para desqualificar o novo gênero de programas que invade a TV brasileira, talvez seja o principal motivo pelo qual devemos cada vez mais prestar atenção nesses espetáculos. Pois ele transforma aquilo que previamente não era considerado nada excitante cozinhar, conversar, tomar banho, fazer festa em objeto de desejo. Ao contrário da telenovela, onde só há tempo para as ações e o desenvolvimento delas (e são ações absolutamente deslocadas do contexto ou da possibilidade do espectador), o espetáculo de realidade privilegia a intimidade de seus personagens, mostra seus integrantes realizando atividades que nós realizamos também. É aí que entra todo o discurso "crítico" feito aos espetáculos de realidade. A surpresa não é a sacação de Pignatari, mesmo porque trata-se de um lema célebre do sociólogo Herbert Marshall McLuhan, estudioso dos meios de comunicação. Também não é surpresa que assim o seja: as artes plásticas se livraram da submissão à naturalidade a partir da fotografia (e a fotografia era "não artística"), o cinema virou "arte" a partir do momento em que nasceu a televisão, e assim por diante. O que mais surpreende é como os adjetivos escolhidos por Pignatari são justamente os mais erigidos pelos intelectuais para tentar destruir o formato dos espetáculos de realidade. Vulgaridade e alienante são os grandes motores das críticas ao novo gênero televisual. Vulgaridade, primeiro. Artur Xexéo não cansa de dizer que nesses programas só se fala de sexo e cocô. A própria Xuxa Meneghel, indicada pela produção da Globo para visitar a casa do Big Brother, pediu aos moradores da casa para falarem menos palavrão e para conversarem sobre temas "nobres", como educação, homossexualidade, etc. Engraçado vindo de uma apresentadora de programa cuja música-tema fala sobre "energia" e sobre um planeta girando. Vulgar deriva de vulgo, a plebe, a classe popular. Supõe-se, logo, que alguma outra classe a dos intelectuais e aristocratas, mais preocupados com as "coisas do espírito" não seja vulgar. Se sim, onde vemos isso representado na televisão brasileira (uma vez que tomamos como premissa básica que, se havia vulgaridade antes na TV, acusar os espetáculos de realidade de "vulgares" não passa da mais absoluta falta do que dizer)? E considerando que, mesmo vulgares, esse programas são assistidos por um número colossal de pessoas mesmo quando há real opção por outra coisa a Casa dos Artistas passa no horário da novela da Globo, default do televisor , o intelectual não há de convir que ele mesmo, como intelectual num país onde o regime é a democracia, tem em algum nível relação com isso? Sob pretexto de deslegitimar o espetáculo de realidade, os intelectuais acabam apelando para o gênero que já foi como sempre, o meio novo, etc. etc. seu maior inimigo, a telenovela. Que, excetuando a novela Malhação (ela mesma um formato híbrido, contínuo), ancorada realmente em vivências mais tangíveis da população (embora muito mais idealizada que um reality show), é enesimamente mais vulgar e menos inovadora do que qualquer espetáculo de realidade. E quando o discurso paira sobre a questão da alienação, tudo fica pior. O JB de 11 de março nos apresentava um artigo equivocadíssimo2, comparando a lógica "vence-perde" dos espetáculos de realidade (os autores queriam dizer que personagens são excluídos toda semana) à miséria, ao terrorismo e à violência urbana (!!!). Poderia haver honestidade e ao menos dizer que essa mesma "regra de exclusão" é a mesma que rege a sociedade em todos os seus aspectos: concursos públicos, vestibulares, eleições, licitações... Segundo os autores, a única coisa que esses programas ensinam é uma "pedagogia da esperteza", ou seja: o elogio feito é daqueles que "enganam" melhor (é o principal argumento de Platão em A República para expulsar o poeta da cidade). Mentira: basta ter visto algum dos programas dominicais do Sílvio Santos para perceber que os espectadores estão bastante atentos àqueles que atuam como manipuladores. Mas os autores continuam: "O espectador-padrão, que engrossa as pesquisas de audiência, liga a TV para deixar diante dos olhos alguma coisa que não lhe exija esforço, entregando-se a um lazer narcotizante que reduz ao mínimo a atividade de pensar. Deixa de refletir sobre sua própria vida, seus próprios problemas, e se projeta nos personagens envolvidos naquele espaço virtual." Percebe-se que o dever de casa foi feito, de que leu-se Adorno, Horkheimer, ou hoje o mais cínico Baudrillard. Mas não se nota, ao se falar dessa "alienação", que ela não é um caráter especificamente do reality show, mas algo que compreende a televisão inteira, e possivelmente todas as formas de arte, em alguma medida. Ao contrário do que pode parecer, a Casa dos Artistas e o Big Brother Brasil são os melhores programas da televisão, sim, não porque se tratam de uma simples novidade, mas porque colocam o próprio dispositivo ficcional em crise (mesmo que seja uma outra ficção que responda a essa crise), porque questionam o espectador e o obrigam a tomar posição contra um ou outro personagem (quando nas telenovelas e até nos telejornais os inimigos já são claramente definidos), e porque não entregam ao espectador um mundo idealizado de gestos e ações nobres, mas justamente aquilo que eles vivem profundamente, sua intimidade, as pequenas coisas que eles vivem. Claro, isso envolve vulgaridade, pois há vulgaridade, há mesquinharia, há um pouco de baixeza em todos nós. Ver nessa vulgaridade algo que o ser-humano não é (ou algo que não deve ser), isso sim que nos parece constituir a verdadeira alienação, a verdadeira cegueira que faz com que certos comportamentos pareçam "altos", "nobres", enquanto outros, partilhados por uma coletividade a partir de atos lúdicos e de expansão de repertório ficcional (a Casa dos Artistas nos remete inquestionavelmente a Kiarostami, a Beckett, a Antonioni, a Resnais na mesma medida que ao filme pornô, ao exploit à Baywatch e ao sitcom familiar). Há ainda muito a se dizer e estudar sobre os espetáculos de realidade. Mas uma certeza nos atinge como um raio: trata-se dos melhores exemplares de audiovisual inovadores, instigantes, fenômenos coletivos e de comportamento a terem sido realizados no país nesse novo século. Ruy Gardnier
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1. PIGNATARI, Décio. Signagem da televisão. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1984, 1ª edição, p. 9. 2. RABAÇA, Carlos Alberto e BARBOSA, Gustavo, "Reality shows: pedagogia da esperteza", in Jornal do Brasil, 11 mar 2002, página de opinião. |