O
Coliseu é aqui
sobre o quadro "Agora
ou Nunca" do Caldeirão do Huck
Assistir ao sofrimento alheio
sempre foi uma das maiores fontes de diversão do ser humano, desde
que o mundo é mundo. A dose pessoal de sadismo de cada pessoa ou
sociedade varia, mas nunca está distante da superfície.
Em extremos históricos, podemos traçar uma linha evolutiva
que comece com o Coliseu Romano e viria até seus sucessores (pós)
modernos como a Pegadinha do Faustão ou o Telegrama Legal.
No entanto, o Caldeirão do Huck da Rede Globo nos apresenta
uma nova modalidade do mesmo sadismo, quão mais odiosa por se disfarçar
do exato oposto do que seria o sofrimento humano: a solidariedade e a
caridade.
No início do programa já
havia uma variante desta mistura indigesta, segundo a qual dois grupos
de artistas ou celebridades sem ocupação defendiam as "cores"
de uma instituição de caridade numa gincana televisiva nos
moldes tradicionais de provas e perguntas. Ao final, os vencedores recebiam
R$10.000,00 em prol daquela instituição que "defendiam".
Tudo muito divertido, mas o que ficava levemente escamoteado era que uma
outra instituição saía do programa de mãos
abanando. Nunca consegui deixar de imaginar aquela cena: doentes de câncer,
sem-teto ou crianças excepcionais vendo um time de artistas colocando
em jogo uma inestimável ajuda que podia significar a comida do
mês seguinte.
Os menos cínicos argumentariam
que pelo menos a Globo estava fazendo algo por uma instituição,
e que não se poderia ajudar a todas as que existem no Brasil. É
verdade. Mas, porque não ajudar quietamente? Depositem R$10.000,00
na conta de alguém, e dane-se. Para que tornar isso um show, uma
crueldade, um jogo de vencedores e perdedores? Ainda mais colocando na
mão de pessoas que, por mais bem intencionadas que fossem, no fundo
não se importavam muito com o resultado daquele joguinho.
Pois bem, talvez insatisfeita
com o nível de constrangimento que aquele quadro permitia, a direção
do programa conseguiu inventar um sucessor que leva adiante o nível
de exploração do mais sofrido em nome da "bondade" e "colaboração".
Agora ele se chama Agora ou Nunca, e consiste do seguinte: uma
pessoa necessitada por qualquer motivo (dívidas, desemprego, projetos
pessoais) tem a chance de receber R$10.000,00 desde que consiga realizar
uma tarefa ao vivo no programa de Luciano Huck. Que tipo de tarefa? Coisas
como fazer malabares com claves, ou atirar em garrafas com estilingues.
O nível de sadismo é tão sofisticado que é
dada uma semana de treinamento para a pessoa naquela tarefa.
Mais uma vez a voz dos menos cínicos
se levanta: "Pôxa, não só o programa dá uma
oportunidade de uma pessoa receber R$10.000,00, que de outra forma ela
não teria, como ainda faz com que o único responsável
por isso seja ela mesma. É uma lição de vida: se
você realmente se dedicar, consegue vencer na vida."
Este raciocínio calhorda
parte do pressuposto de que aqueles que não ganham "tiveram sua
chance" e de que "não se dedicaram". Como qualquer pessoa sã
pode dizer, ninguém aprende a fazer malabares em uma semana, a
não ser aqueles que já tenham uma predisposição
de talento para tal. Então, trata-se tão somente de um artifício
para tornar espetáculo o sofrimento alheio. Cercado de uma multidão
de adolescentes seminus e de cantores de pagode, sabendo ser aquela sua
única chance não só de ganhar dinheiro mas de aparecer
em rede nacional de TV, se dá uma tarefa circense para uma pessoa
humilde (cujas tristes histórias são sempre relatadas com
detalhes por Huck) ganhar um dinheiro. Em alguns lugares mais sensatos
os responsáveis por esta idéia seriam presos. Trata-se de
se aproveitar do sofrimento e necessidade alheia para entreter uma audiência.
O coliseu romano, em suma. Afinal, se os gladiadores venciam ou não
os leões é detalhe, porque eles tinham a sua chance!
No sábado, dia 16, por
exemplo, nós podíamos ver um morador da Favela da Maré,
envolvido em projetos comunitários, tentando ganhar um dinheiro
para completar sua casa e pagar dívidas. Infelizmente, ao invés
dos 60 segundos requeridos, ele conseguiu manter as claves no ar por apenas
2. Não deve ter treinado direito, este povinho vagabundo. Ao pedido
quase humilhado do rapaz por uma segunda chance (e as meninas de biquíni
na banheira do fundo se sensibilizaram socialmente e gritaram "Mais uma
chance! Mais uma chance!"), o samaritano Huck nos explicou a seriedade
do jogo. "Não posso dar mais uma chance porque o jogo se chama
Agora ou Nunca. Se eu te desse mais uma chance, teria que dar a
todos os concorrentes. Isso é um jogo, você participou, e
perdeu. Tenho o maior respeito pelo teu trabalho, e se pudesse adoraria
ajudar, mas são as regras." Enquanto o rapaz saía pelo fundo
com as palmas da platéia, o apresentador seguia com o show, chamando
um quadro em que dois adolescentes são colocados numa barraca escura
para se conhecerem. Viva o circo.
Obcecado que eu devo ser com os
perdedores, eu não conseguia parar de pensar na continuidade daquele
rapaz. Perdedor em rede nacional, ele "jogou o jogo". O "jogo" podia ser
isso pro Huck e para suas meninas de biquíni e para quem assistia
em casa no almoço de Sábado. Não me parece que fosse
só isso para aquele cara. Podiam ter pedido para ele estudar ou
trabalhar durante um mês, no fim do qual receberia um salário
de R$10.000,00. Podiam simplesmente apoiar em silêncio o seu projeto
comunitário, pois dinheiro há. Mas não, como nossos
meninos de rua de todo o dia, sobrou para ele a chance de jogar os malabares
para o alto para diversão da platéia. Não sei não,
mas me parece que o Agora ou nunca de verdade continua sendo a
hora em que um rapaz decide se aceita ou não entrar no tráfico
para ganhar dinheiro. Pode ser sujo, mas ainda me parece melhor que ser
atração de circo daqueles que têm nas mãos
sua vida e ainda te fazem ver como são bondosos.
Ou isso ou eu sou muito mal humorado
depois dos almoços de Sábado.
Eduardo Valente
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