Bolas
de Gude
Un Sac de Billes,
de Jacques Doillon (França, 1975)
O cinema de Doillon possui duas vertentes:
uma delas privilegia os excluídos sociais, jovens que sobrevivem
graças a pequenos delitos. Filmes como O Jovem Assassino (disponível
em vídeo no Brasil) e o recente Carrement à L'ouest (exibido
na última Mostra Internacional de SP) são bons exemplos
dessa vertente. A outra é mais intimista, explora o tênue
limite entre o sensível e o piegas. Filmes como La Femme qui
Pleure e Ponette alcançam a poesia pela extrema delicadeza
com a qual o diretor expõe seus personagens.
Bolas de Gude segue nitidamente a
segunda vertente. É o terceiro filme de uma carreira prolífica
e elogiada, que raramente encontra espaço no circuito brasileiro.
Doillon é fortemente influenciado por Truffaut. O mestre de Jules
et Jim chega a colocá-lo como companheiro de Nouvelle Vague em
seu livro "Os Filmes de Minha Vida".
Baseado no romance autobiográfico
de Joseph Joffo, Bolas de Gude narra a difícil passagem
de dois garotos franceses, Joseph (10 anos, narrador) e Maurice (12 anos)
, pelos anos da Segunda Guerra. Eram os anos da ocupação
e eles, judeus, morando em Paris, são obrigados a partir para o
sul, região ainda não ocupada pelos nazistas. Na companhia
de seus dois irmãos mais velhos, eles se adaptam a empregos e amizades
efêmeras enquanto aguardam a chegada de seus pais. Estes chegam,
mas o fantasma do nazismo não os abandonará.
Embora tenha sido muito bem recebido à
sua época (1975), o filme obteve algumas reservas. Críticos
franceses reclamaram do duro retrato da sociedade francesa. O colaboracionismo
teria sido exagerado por Doillon. Reclamam também que as únicas
pessoas dispostas a ajudar os garotos são os padres. Talvez: a
resistência parece insignificante e a sociedade só ajuda
em troca de alguma coisa, como aquele síndico da pensão
em Nice. Há também o livreiro, cuja filha conquista o coração
de Joseph, e que é membro de um partido de extrema direita. Mas
me parece que Doillon não teve a intenção de pintar
de negro a sociedade francesa. Os próprios judeus do filme tem
um tratamento mais duro. Os meninos passam o filme negando sua origem.
Penso que seja intencional mostrar que durante os anos de ocupação,
as pessoas não tinham muita escolha, ou colaboravam ou se calavam.
Claro, estamos falando de pessoas comuns, batalhadores do cotidiano. Deslocaria
gravemente o foco do filme se Doillon mostrasse muito a resistência.
Mas qual seria então o foco do filme?
A passagem da infância para a adolescência. Aquela velha expressão
lugar-comum: rito de passagem.
Na cena mais bela do filme, perto do final,
vemos Joseph e Maurice encostados num rochedo, tendo entre eles a filha
do livreiro, pela qual Joseph está apaixonado. Maurice tenta seduzí-la.
Acaricia seu pescoço. Ela, linda em seu vestidinho amarelo, desdenha
e diz que só se interessa por um garoto de sua idade, Joseph. Este
não consegue esconder sua satisfação. Doillon mantém
a câmera fixa durante toda a cena. Não há corte para
close-up. Tampouco há música para enfatizar a felicidade
do personagem. No entanto, um momento sublime de poesia cinematográfica
é alcançado. Momento digno do melhor da Nouvelle Vague.
Sentimos a mesma satisfação de Joseph, sem que Doillon tenha
nos conduzido. Ele apenas mostra.
Tem mais: quando os pais chegam no sul da
França, ainda na primeira metade do filme, Joseph corre para preparar
uma surpresa, enchendo dois copos com gelo para seus pais. Novamente temos
a câmera fixa. Joseph toma uma bronca do pai. Fica aborrecido num
canto enquanto seus irmãos abraçam pai e mãe e todos
riem. O pai percebe que a mágoa do caçula e o abraça,
dizendo que não é hora para brigas. Todos sorriem. Toda
a cena é mostrada sem a habitual chantagem do mau melodrama. Não
há música. Não há closes.
Apenas pessoas normais reagindo a anseios
e frustrações.
Longe de ser uma obra-prima, Bolas de
Gude conquista pela delicadeza e pela excelência na direção
de atores. Possui momentos inesquecíveis. É um oásis
na decadente programação do Eurochannel.
Sérgio Alpendre
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