Preso
na Escuridão / Abra os Olhos
Abre los Ojos,
de Alejandro Amenábar (Espanha, 1998)
Preso na Escuridão tem várias
possíveis motivações para ser assistido. A mais óbvia
é a de que nessa mesma semana estréia a refilmagem americana
com Tom Cruise no papel inicial, Vanilla Sky. Uma outra é
o sucesso e as nominações que recebeu o belo Os Outros,
do mesmo diretor em sua primeira aventura hollywoodiana. Pois bem, sejam
quaisquer que sejam os principais motivos para se ver um filme, um deveria
se sobrepor aos outros: Alejandro Amenábar é um diretor
talentoso.
Desde o começo, um gosto indisfarçado
pelo classicismo: uma viagem de carro nos remonta para certas metáforas
daquilo que depois acontecerá no filme (como Hitchcock em O
Homem Errado), referências estilísticas (O Fantasma
da Ópera, O Homem da Máscara de Ferro), mas acima
de tudo uma preocupação pouco comum numa nova geração
de cineastas francamente maneirista (pensemos em Baz Luhrmann ou Wes Anderson):
apenas contar sua história da maneira mais visualmente eficaz possível.
Claro que aqui não se faz apologia da narrativa como única
maneira de se fazer bom cinema, mas como algo que parece esquecido das
telas de hoje, onde os verdadeiros artistas são autores,
ou seja, donos de um universo que é mais importante do que a própria
história a ser contada, e os apologetas da narrativa são
simplesmente pueris, de interesse puramente (ou majoritariamente) comercial
e nada criativos na forma com que encenam e montam seus filmes.
Nesse modelo, uma antiga forma de fazer cinema,
muito cara ao amante da arte cinematográfica, fica à deriva:
o cinema de artesão. É nesse nicho que Alejandro Amenábar
vem se inscrever no panorama do cinema contemporâneo recente. Vejam-se
os primeiros trinta minutos de Preso na Escuridão para se
notar um trabalho muito bem realizado, onde a criação de
climas é a iniciativa predominante do diretor. E já aí
uma diferença gritante entre os novos realizadores: Amenábar
sabe que cinema é eminentemente uma arte visual, e é mestre
justamente nessa modalidade, ao contrário dos amantes de um cinema-de-roteiro
tão recentemente propalado e simplesmente inócuo e vazio
(pensemos no argentino Nove Rainhas ou no ignóbil Memento/Amnésia
de Christopher Nolan). Pois em Preso na Escuridão, por
mais que o roteiro seja importante e a narratividade ocupe um lugar muito
especial (como em todo cinema clássico de artesanato), Amenábar
sabe que cinema se resolve na tela.
Uma mesma frase povoa o filme: "abra
os olhos". Começa, entremeia e termina, com uma tela preta
que a acompanha. Quando ele finalmente acorda, é César,
um jovem bem-sucedido, invejavelmente belo, um don juan que tem
por reputação jamais dormir com uma mulher por mais de uma
vez. Uma espécie de homem dos sonhos do imaginário macho,
pois. Só que os sonhos se transformam em pesadelos, e uma dessas
mulheres, Nuria (a belíssima e polar Nájwa Nimri) passa
a persegui-lo no dia de seu aniversário. Para fugir dela, César
começa a conversar com Sofia (a também insinuante e cálida
Penélope Cruz) por quem seu maior amigo, Pelayo, está
apaixonado , e depois de uma noite em claro na casa dela, acaba
se enamorando, e a ação é recíproca. Isso
tudo nos é contado num flashback. No período presente, César
está com o rosto aparentemente inutilizado (ele o escponde com
uma máscara) e conta sua história para um médico,
dentro de uma cela num hospital psiquiátrico teve seu rosto
deformado por uma batida de carro que vitimara Nuria e, meses depois,
cometera um assassinato por influência de delírios visuais.
Esses delírios são as linhas
mestras pelas quais o filme evolui. Preso na Escuridão vai
aos poucos envolvendo o espectador numa rede onde sonho e realidade, onde
plausibilidade e implausibilidade coexistem numa mesma lógica,
em que César é incapaz de saber se está sonhando
ou em vigília ou apenas tem surtos delirantes. Isso nos
remete a dois filmes recentes razoavelmente aparentados: o já mencionado
Memento e um filme de David Fincher, The Game. Nos dois,
há a dúvida se a verdade é aquilo mesmo que está
simplesmente sendo visto ou uma realidade que escapa aos olhos do protagonista.
Em todo caso, é uma aventura, ou melhor: a vida é vivida
como uma historinha de videogame, como um jogo de imaginação
(detalhes futuros mostrarão como o personagem de Abre los Ojos
pode estar vivendo um sonho atrás de outro). Só que Amenábar
tem uma dupla vitória sobre esses dois filmes: a primeira é
que realmente sabe filmar muito melhor, e sem o ranço (improcedente)
de enfant terrible que esses outros dois diretores sustentam. A
outra diz respeito à própria narrativa: a verdade final,
finalmente encontrada em Memento ou The Game (quando fica
claro ao final o que é o quê), até existe, mas não
como complô (em Fincher) ou pura montagem auto-consciente e complacente
de memórias (em Nolan). Com Preso na Escuridão, o
protagonista (e o espectador junto com ele) finalmente se coloca em xeque,
e há antagonismo moral e um sentimento estético que dele
decorre.
Mas o amor à narrativa não
esconde uma certa insuficiência. Como em Os Outros, deve
haver o momento explicativo: para aqueles que não entenderam, o
filme trata de explicar-se ponto a ponto nos últimos minutos de
projeção. Isso dá imediatamente a desagradável
sensação de que estamos viajando com um guia por demais
cioso de zelar por nossos passos. Esse zelo pode se transformar em controle,
e o viajante simultaneamente sente que a viagem não é mais
sua. Tanto pior quanto Preso na Escuridão por momentos parece
delegar essa liberdade ao espectador (e Memento também).
Amenábar ama seu filme, mas não a ponto de entregar a verdadeira
experiência de seu personagem à pessoa que vê o filme.
Resulta uma viagem muito interessante, mas quase o tempo inteiro dentro
de um ônibus, onde se contempla lugares muito bonitos. Se se procura
uma genuína experiência, no entanto, a saída é
dirigir-se a eXistenZ (Cronenberg) ou Mulholland Drive (Lynch),
esses sim filmes onde é proibido apertar os cintos de segurança.
Ruy Gardnier
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