Segredos e Mentiras,
de Mike Leigh

Inglaterra, 1996
Bem-vindos à família
O formato adotado
por Mike Leigh não só em Segredos e Mentiras como também no mais
recente Agora ou Nunca é o de filme-painel, ou short cuts
(termo tornado genérico a partir do excelente filme de Robert Altman),
isto é, uma visão panorâmica de pessoas que habitam um grande centro urbano
e são apanhadas em seus cotidianos, estando integradas por elementos variáveis
de filme para filme (um conjunto habitacional, um ambiente de trabalho,
um evento isolado...). Tal formato, que antes se mostrava original, de
uns anos para cá naturalmente gerou filão e vez ou outra aparece mal utilizado.
O próprio Agora ou Nunca deixa entrementes a sensação de que pegou
carona na fórmula fácil.
Segredos e Mentiras,
contudo, tira enorme proveito dessa estrutura narrativa, tendo como ferramentas
essenciais a tentativa de compreensão, ao invés de julgamento raso, e
a demonstração de ternura pelos personagens (talvez não mais que obrigação,
em se tratando de um cinema com pretensões humanistas). Nada de exposições
caricaturais. Cynthia, por exemplo, personagem de Brenda Blethyn (em atuação
brilhante) que a todos chama sweetheart e que chora por qualquer
motivo, nunca surge como alvo de crítica depreciativa. Sua fragilidade
não é ridicularizável, sua carência não lhe tira o direito à ternura do
cineasta - e do espectador, por tabela.
Três grandes qualidades
de Mike Leigh são: filmar dramas familiares/sociais da classe média britânica
sem o marxismo vulgar de um Ken Loach, transmitir peculiaridades do "ser
inglês" com rigor quase antropológico (o que cria cenas bastante interessantes)
e se mostrar extremamente atento aos modos distintos com que as pessoas
se relacionam. E essas três qualidades estão em Segredos e Mentiras,
filme que deflagra um vetor subterrâneo, quase imperceptível enquanto
força atuante, que cresce no silêncio e na carência de seus personagens:
a passividade que se encarrega do fluxo de vida na grande cidade. Mike
Leigh filma pessoas que a princípio não falam o que devia ser falado (será
necessária uma "terapia de grupo" espontânea ao final do filme), que não
se olham nos olhos (como no inesquecível plano-seqüência na lanchonete
onde mãe e filha conversam pela primeira vez, lado a lado, mas sem cruzar
o olhar), que encaram os problemas somente de soslaio: essa passividade
tem um poder de destruição incalculável, e nisso nada há de passivo. A
catarse do final, numa festa de aniversário (seqüência da qual Festa
de Família, o dogma #1 de Thomas Vinterberg, seria uma espécie de
versão hardcore), mostra uma inusitada e reveladora manobra dramática,
num equilíbrio que evita simultaneamente o constrangimento coletivo e
a pieguice.
Levar o cinema para
o seio familiar de maneira bem-sucedida não é fácil: clássicos (os melodramas
de Douglas Sirk, o sensacional Juventude Transviada, de Nicholas
Ray) e modernos (Longe do Paraíso, de Todd Haynes, O Rio,
de Tsai Ming-liang) que assomaram ao tema questões relevantes comprovam
a demanda por uma estética apurada. Ao fazer Segredos e Mentiras,
Mike Leigh também soube encontrar a forma de que precisava: luz prioritariamente
natural, câmera que economiza movimentos, cortes secos, atores à vontade
em planos mais longos, representação naturalista (cenários, figurino,
interpretações).
Avesso aos atalhos
moralistas e psicologizantes, Segredos e Mentiras acha na imanência
- na substância do cotidiano - uma forma tanto de inspiração artística
(sua direção estética) quanto de afirmação da riqueza das relações humanas
(sua dimensão ética). O filme quer mostrar como a vida, qualquer vida,
envolve problemas. No entanto, mais importante que apontar tais problemas,
o que seria demasiadamente óbvio, é avaliar a proeza (e a beleza, por
assim dizer) de sua superação. E Leigh o faz numa chave que busca distância
com o melodrama e proximidade com o prosaico da vida. Os cineastas que
se voltam para os lares da classe média não raro chafurdam numa ponderação
negativista, por vezes até preconceituosa e gratuitamente ácida. Segredos
e Mentiras paira acima de tal negativismo, perspectivando seus personagens
por intermédio de estados de alma oscilatórios, algo bastante distinto
da unidimensionalidade vista naqueles que costumam povoar os filmes-painéis
(armadilha na qual o próprio Mike Leigh cai em alguns momentos de Agora
ou Nunca).
Luiz Carlos Oliveira
Jr.
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