Os Cafajestes,
de Ruy Guerra
Brasil, 1962
Primeiro longa-metragem
de Ruy Guerra, Os Cafajestes foi rodado em 1961 e lançado, com
grande escândalo, no ano seguinte. Sua trajetória comercial incluiu proibições,
manifestações de ligas conservadoras, debates na imprensa e até mesmo
censura de seu próprio produtor, Jece Valadão. Embora ligado ao movimento
do cinema novo, o filme antecipa algumas características que irão ser
desenvolvidas, mais tarde, pelo cinema experimental, e aí podemos lembrar
de Olho Por Olho, de Andrea Tonacci (1966), O Anjo Nasceu,
de Júlio Bressane (1969), Câncer, de Glauber Rocha (1968), A
Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla (1969), Perdidos e Malditos,
de Geraldo Velloso (1970), entre outros.
Os Cafajestes já contém imagens, situações, signos, que ganharão
importância nestes filmes posteriores: o deslocamento sem rumo certo dos
personagens, a presença do carro e da praia, a dupla de marginais/malandros
em constante disputa de poder (um é pobre e sem escrúpulos; o outro é
rico, mas covarde), a estrutura blocada das seqüências, o individualismo
dos personagens, os faux-raccords, os planos-seqüência que dilatam a percepção
e provocam a transformação de significado, a abordagem mais direta do
sexo e das drogas, a incorporação de uma visão fragmentada do mundo (no
caso, mediada pelo rádio), o que reinsere os personagens num contexto
mais amplo de análise (não só o Brasil ou microcosmos como a praia de
pescadores, a favela e o sertão). Esta preocupação cosmopolita vai se
refletir na própria forma do filme: Os Cafajestes dialoga com a nouvelle
vague, mesclada a momentos em que repercutem ecos do documentarismo verdade.
O filme não se prende ao compromisso de diagnosticar cultural e socialmente
o país, embora construa uma crítica contundente à alienação da classe
média. Contudo, apesar de todos estes pontos de ligação com o cinema que
se faria no final dos anos 1960, há uma forte diferença de tom: não há
o humor anárquico e o cinismo que marca o cinema de Sganzerla, Bressane,
Velloso etc. Há, no fundo, uma crença na consciência que está além dos
próprios personagens, e da qual é porta-voz o próprio cineasta-autor,
Ruy Guerra.
Há, também, um certo moralismo que se concretiza na própria estrutura
do filme, que poderíamos dividir, grosso modo, em duas grandes partes.
A primeira parte, solar, trabalha as paisagens concretas, áridas, masculinizadas,
e tem dois pontos altos: a agressividade da câmera em redor de Norma Benguell
nua, no longo plano seqüência de quatro minutos, hoje clássico, e a cena
em que Daniel Filho e Jece Valadão conversam e fumam maconha num forte
deserto, cercado de torres e canhões que são, igualmente, representações
fálicas. Nesta primeira parte, as personagens femininas estão aprisionadas
pela ação masculina (o verdadeiro contraplano da cena do nu frontal de
Norma Benguell foi filmado por Sganzerla em A Mulher de Todos:
Helena Ignez, de camiseta e charuto, vinga Norma, e é então a câmera que
parece ser dominada por ela).
A segunda parte, lunar, recorta os personagens sobre um fundo negro, em
que mal se vê as ondas da praia. É o momento em que o vento sopra contrário
aos dois cafajestes e se instaura a crise nos dois casais. Os personagens
masculinos (Valadão e Daniel Filho) são envoltos por uma escuridão uterina,
e defrontam-se com uma série de frustrações, mostram-se fracos e impotentes.
A água (elemento feminino) redime sexualmente a impotência de Valadão
e sela a derrota pessoal de Daniel Filho.
Por fim, um epílogo duplamente significativo: do ponto de vista concreto,
a vida dos personagens segue adiante; simbolicamente, a voz oculta do
cineasta aponta para uma transformação iminente, para um futuro no qual
personagens como os que acabamos de ver na tela enfrentarão as conseqüências
de suas contradições, de seu individualismo, de sua própria alienação.
Embora mutilado (a versão original, anterior ao corte imposto por Valadão,
terminava com um plano de conotação francamente pessimista), o epílogo
trabalha com imagens clássicas e recorrentes na primeira fase do cinema
novo, sem buscar uma resposta ou apontar uma receita.
Luís Alberto Rocha Melo
Sinopse:
Jovem playboy preocupado com a falta de dinheiro quando seu pai está a
ponto de ir à falência, recruta um cúmplice, prometendo a este um carro
se ele ajudar em seu esquema de chantagem. Eles atraem a amante do tio
até uma praia deserta e a fotografam nua. O playboy planeja extorquir
dinheiro de seu tio rico com as fotos, mas as coisas não acontecem como
o planejado. O playboy atrai a sua prima para a mesma praia mas, sentindo-se
atraído por ela, hesita em continuar com o esquema proposto. Este filme
ficou famoso por mostrar o primeiro nu frontal do cinema brasileiro moderno.
Os Cafajestes
Brasil, 1962, P&B, 100'
Direção: Ruy Guerra
Produção: Jece Valadão, Gerson Tavares, José Sanz
Roteiro: Miguel Torres e Ruy Guerra
Fotografia: Tony Rabatoni Montagem: Nello Melli
Música: Luiz Bonfá
Intérpretes: Jece Valadão, Norma Benguell, Daniel Filho, Lucy Carvalho
"Quando
cheguei aqui e fiz Os Cafajestes, foi dentro de uma proposta extremamente
lúcida, clara, objetivada. Era um filme que deveria ter sucesso de público,
para provar que era possível fazer um cinema diferente da chanchada; era
um filme que tinha de ser barato - sem interiores, apenas quatro personagens
-, porque não havia outra maneira dele ser feito. Tem uma cena com mais
duas garotas, e um policial no final. Foi escrito com o Miguel fugindo
de todas as possibilidades de ser um roteiro mais pesado, sob o ponto
de vista de produção, e ao mesmo tempo, com uns aspecto de provocação
evidente da nudez para atacar os tabus da época, mas também sabendo que
se não vencêssemos essa barreira, seria um escândalo. Isso foi lucidamente
usado, para não se fazer uma nudez erótica, mas crítica, o que obrigou
a um certo tipo de tratamento da cena. Também a censura era muito forte
na época, e eu sabia da força dos censores ao cortarem. Então preferi
fazer de uma forma que a cena principal fosse num plano só, para que eles
assumissem a responsabilidade de impedir que não houvesse possibilidade
de diálogo, teriam que tirar um plano-seqüência inteiro, castrar o filme
de uma forma evidente. E o filme passou e foi um grande boom, foi dito
que ali nascia o Cinema Novo".
"Eu nasci junto com o Cinema Novo, não "entrei" nele. Evidentemente, eu
tinha uma experiência diversa dos outros, porque alguns vinham do jornalismo
ou da crítica cinematográfica, outros eram autodidatas mesmo. Eu tenho
a impressão que o Joaquim Pedro e o Gustavo Dahl estiveram com o Zavattini,
e que o Paulo Cezar Saraceni teve uma passagem pela Cinecittà (...). Mas
eu vinha com uma experiência de seis anos, eu tinha uma visão, embora
antagônica em muitos pontos, havia uma série de fatores que eu havia incorporado
da nouvelle vague, certos conceitos temáticos... Enfim, havia alguns pontos
de identidade, embora fosse um cinema pequeno burguês de jovens intelectuais
que eu, como imigrante estrangeiro, não podia ter. A nouvelle vague sempre
teve uma marcada posição direitista, e eu sempre fui diferente por ter
nascido numa colônia, debaixo de uma metrópole, submetida à ditadura salazarista,
quer dizer, tinha uma posição nitidamente de esquerda. Mas havia pontos
de confluência e uma certa formação intelectual, porque você não passa
impunemente depois de viver num país, embora eu seja muito crítico em
relação a toda a mentalidade francesa e à postura dos intelectuais franceses
em geral."
(Ruy Guerra, em entrevista a Beto Rodrigues)
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