Perdidos na Noite,
de John Schlesinger

EUA, 1969

Duas ou três coisas sobre Perdidos na Noite

1. No primeiro plano de Perdidos na Noite, vemos tudo branco. Aos poucos, a câmera vai se afastando e aos poucos vamos percebendo um retângulo branco no meio de uma paisagem. A câmera continua descrevendo um travelling aéreo para trás e sobrevoa o que finalmente vemos ser um drive-in deserto. Começar seu primeiro filme realizado nos Estados Unidos mostrando uma tela de cinema para depois dela se distanciar é uma forma peremptória porém elegante que John Schlesinger encontrou de avisar ao espectador que seu filme não trataria dos temas que os americanos estavam acostumados a ver nos filmes de seus conterrâneos. Não mais a América dos homens de ação bem-sucedidos ou dos empreendedores que se constróem do nada e montam um império. Distanciar-se da tela de cinema no início do filme significa fugir da propaganda de si mesmo que Hollywood tanto veiculou nos anos 50 e focar um outro lado da América, o lado dos perdedores, dos proscritos e dos vagabundos que logo passam a simbolizar os Estados Unidos mais do que a alegre e funcional família vivendo numa casa com jardim. No final dos anos 60, os EUA passam por uma forte crise existencial, e o cinema transforma-se num divã privilegiado. O país vive os dramas de uma guerra que se torna dia a dia mais impopular (Vietnã), os crescentes movimentos civis de minorias exigindo tratamento igual (negros e mulheres) e a ressaca do sonho consumista dos anos 50. Alguns filmes já prenunciam esse relato amargo sobre a sociedade americana, como Deus Sabe Quanto Amei, de Vincente Minnelli (1959) ou A Vida Íntima de Quatro Mulheres, de George Cukor (1963), o primeiro pintando um retrato desbotado de uma classe média já sem vida e o segundo registrando a infelicidade sexual da sociedade americana.

2. Perdidos na Noite, em todo caso, inicia um ciclo de filmes sombrios sobre personagens sem lugar dentro do cenário oficial americano. No ano seguinte Bob Rafaelson lança o primoroso Five Easy Pieces, em 1972 é a vez de Monte Hellman estrear Corrida Sem Fim, e um ano depois Martin Scorsese lança Caminhos Perigosos (isso sem contar as sagas de O Poderoso Chefão e O Franco-Atirador). A singularidade de Perdidos na Noite, contudo, ultrapassa seu pioneirismo. Poucas vezes o cinema, americano ou não, viu um misto tão forte e coeso de ternura e desencantamento por seus personagens e pelo mundo em que eles vivem. Joe Buck, um matuto que deseja fazer sucesso na cidade grande vendendo seu sexo para mulheres ricas de meia-idade, e Rico Ratso, aleijado e trambiqueiro de primeira hora, formam uma das duplas de anti-heróis mais desglamurizadas da história do cinema: nenhum deles é muito esperto, moram e se alimentam porcamente e só conseguem dar golpes para ganhar quantias ínfimas de dinheiro. Ainda assim, o olhar que o filme aponta para eles é generoso, redentor: ambos têm muito mais de crianças abandonadas e ciosas de atenção do que de escroques irremediáveis ou criminosos perversos. O filme sublinha com toda a força a ignenuidade e os sonhos banais de cada um: Joe quer ser considerado o maior amante de todos os tempos, Rico deseja ir para a Flórida porque acha que a vida lá será diferente.

3. Muito se fala da atuação dos dois protagonistas do filme, Jon Voight e Dustin Hoffman. E realmente, o resultado de conjunto e em separado conseguido pelos dois é de se deixar boquiaberto. Mas diversas outras coisas menos mencionadas são igualmente dignas de nota para constriur um universo tão íntimo e torná-lo próximo de nós. A esse respeito, o trabalho de locações é particularmente muito feliz, complementando a penúria material e existencial dos personagens sem evidenciar um instante o que está fazendo. Outro aspecto que não se pode deixar de mencionar é a inserção de pequenas seqüências experimentais dentro da narrativa. Para cada pensamento, lembrança ou pesadelo de Joe Buck, surge um filminho desconjuntado e evocativo que não nos permite propriamente compreender didaticamente (como os bons e velhos flashbacks explicativos da narrativa clássica...), mas no máximo especular sobre os traumas que o fizeram abandonar sua cidadezinha para ir para Nova York. Outra cena digna de nota, talvez a mais bonita do filme, é a da festa regada a drogas a que o caubói Joe é convidado. Espécie de registro semi-documental dos happenings da Factory de Andy Warhol, com participação inclusive de algumas das estrelas do artista (Ultra Violet, International Velvet), a festa é uma espécie de congregação dos deslocados, espaço dos sem-espaço onde se unem artistas e meliantes, desocupados e funcionários da indústria do glamour. Espaço utópico, lá nossos heróis estarão a salvo. Mas basta sair de lá para que tudo esteja novamente a perder.

Ruy Gardnier


Perdidos na Noite

Midnight Cowboy, EUA, 1969, cor, 113'
Direção: John Schlesinger
Roteiro: Waldo Salt, baseado em livro de James Leo Herlihy
Música: John Barry (com músicas de Nilsson, The Groop...)
Fotografia: Adam Holender
Montagem: Hugh A. Robertson
Produção: Jerome Hellman
Elenco: Jon Voight (Joe Buck), Dustin Hoffman (Ratso / Rico), Sylvia Miles (Cass), John McGiver (Mr. O'Daniel), Brenda Vaccaro (Shirley), Barnard Hughes (Towny), Ruth White (Sally Buck), Jennifer Salt (Annie), Ultra Violet, International Velvet, Paul Morrissey, Cecelia Lipson, Taylor Mead.

Sinopse:
Joe Buck, um simplório jovem do Texas, decide abandonar um passado tortuoso e vai par Nova York tentar ganhar a vida como garoto de programas para madames ricas. Sua pouca esperteza e excessiva credulidade, no entanto, o impedem de ganhar dinheiro com o negócio. Numa de suas caminhadas pela noite, encontra com Rizzo, um aleijado que sobrevive dando pequenos golpes e realizando pequenos furtos. É inicialmente enganado por ele, mas depois os dois se reencontram e brota da penúria material dos dois vagabundos um curioso e forte laço de amizade.

Filmografia de John Schesinger:
1958 Monitor (TV)
1961 Terminus
1962 A Kind of Loving (Ainda resta uma esperança)
1963 Billy Liar (O Mundo Fabuloso de Billy Liar)
1965 Darling (Darling, a que amou demais)
1967 Days in the Trees (TV)
1967 Far from the Madding Crowd (Longe deste Insensato Mundo)
1969 Midnight Cowboy (Perdidos na Noite)
1971 Sunday Bloody Sunday (Domingo Maldito)
1973 Visions of Eight
1975 The Day of the Locust (O Dia do Gafanhoto)
1976 Marathon Man (A Maratona da Morte)
1979 Yanks (Os Ianques estão chegando)
1981 Honky Tonk Freeway
1983 Separate Tables (TV)
1983 An Englishman Abroad (TV)
1985 The Falcon and the Snowman (A Traição do Falcão)
1987 The Believers (Adoradores do Diabo)
1988 Madame Sousatzka (idem)
1990 Pacific Heights (Morando com o Perigo)
1992 A Question of Attribution (TV)
1993 The Innocent (O Inocente)
1995 Cold Comfort Farm (Em Busca da Felicidade)
1996 Eye for an Eye (Olho por Olho)
1998 The Tale of Sweeney Todd (TV)
2000 The Next Best Thing (Sobrou pra Você)