Matador, de Pedro Almodóvar
Matador, Espanha, 1986, 110', cor
Assumpta Serna e Antonio Banderas em Matador de
Pedro Almodóvar
O filme da (pré-)maturidade
Há uma cena de Matador que
concentra aquilo a que muito cedo se convencionou chamar a "marca
registrada Almodóvar" – supondo a partir disso um repertório
recorrente que emerge da movida (como ficou conhecida a agitada
noite madrilenha do início dos anos 80), envolve não só
cenário e figurino como também atitudes e falas e não
poupa absolutamente nada, nem mesmo as freiras (basta ver Maus Hábitos,
de 1984). A cena consiste no próprio diretor interpretando um estilista
às voltas com a preparação do desfile intitulado
"Espanha Dividida". Uma repórter lhe importuna com perguntas
vazias e redundantes, enquanto maquiadores recebem puxões de orelha
e lindas modelos de visual decadente se drogam e vomitam na roupa. A explicação
dada pelo estilista sobre o porquê do título é uma
resposta de Pedro Almodóvar: acostumado a ver a crítica
espanhola desaprovar seus filmes (com o argumento de que estes faziam
um falso retrato da Espanha e o vendiam como fidedigno – uma boa prova
de que o cineasta pisava calos e causava incômodo à mesma
proporção que recebia reconhecimento internacional), ele
diz que seu país é dividido em duas partes principais, a
dos invejosos ("a inveja é nosso esporte nacional", ele
declarou em entrevista à Folha de São Paulo publicada
no dia 31/7/94) e a dos intolerantes – e em seguida admite que se inclui
nas duas partes. É uma espécie de assinatura destemida da
obra, de auto-inscrição feita cínica e abertamente.
Almodóvar assume o universo que lhe interessa, responde acidamente
às críticas, reafirma sua vontade de filmar o que quer e
não o que deve agradar.
No filme Matador Antonio Banderas
é Angel, rapaz cujo nome antecipa a função de anjo
da guarda que tentará desempenhar no filme, um paranormal que carrega
enorme culpa devido às visões que têm, nas quais seus
medos e pulsões se confundem com tragédias alheias. Ele
é o ponto de interseção entre os demais personagens.
Aluno de Diego – famoso ex-toureiro que abandonou as arenas após
um acidente de trabalho e agora mora numa mansão onde ensina a
arte e a técnica que tanto domina –, Angel se entrega à
polícia para confessar o estupro da jovem Eva, que ele antes observara
de luneta pela janela de seu apartamento (na verdade uma tentativa de
estupro, pois, conforme o depoimento de Eva, o totalmente inexperiente
Angel não percebeu que estava longe de penetrá-la e apenas
ejaculava entre suas pernas). O personagem de Banderas assume também
a autoria sobre uma matança em série, dando a justificativa
de que as vítimas haviam tentado abusar dele, e acaba confinado
numa instituição psiquiátrica.
As linhas iniciais de Matador falam
por si mesmas, mostrando o que o filme tem de desconcertante e de semelhante
com o resto da obra de Almodóvar: Diego começa o filme se
masturbando diante de uma TV que exibe imagens mórbidas de mulheres
sendo violentadas, decapitadas, mortas; Angel é o rapaz puro e
ingênuo, que destoa com relação à hostilidade
e à perversão reinantes no universo em que é apresentado,
e que mesmo quando tenta uma atitude – impulsionada por um ímpeto
voyeurista – que a princípio parece diametralmente oposta ao que
se poderia presumir como sendo sua boa índole, reflui de forma
inocente (o que o aproxima bastante do enfermeiro de Fale com Ela);
a mãe de Angel, freqüentadora assídua da igreja, está
submersa num maniqueísmo que tudo silencia – incluindo aí
o bom senso – em nome de uma meia-dúzia de idéias fixas;
o voyeurismo e a solidão surgem como traços característicos
da grande cidade, corroborados pela televisão – do que uma idéia
mais direcionada estará em Kika, de 1994. Em suma, a tal
"marca registrada" não tarda nem falha.
Dá-se no cinema – onde passa Duelo
ao Sol, de King Vidor, tão toscamente dublado quanto qualquer
novela mexicana – o primeiro encontro (no filme) entre Diego e a advogada
que defenderá Angel, a qual logo no início aparece matando
com um prendedor de cabelo pontiagudo o parceiro sexual que atingia o
orgasmo (impossível não pensar em Instinto Selvagem).
Os aspectos meta (a já citada transferência de questões
pessoais do diretor para a tela) e intertextuais (as menções
ao suspense na linha Hitchcock, o filme de Vidor, a violência gráfica
à la Mario Bava durante a seqüência dos créditos
iniciais) enriquecem o filme de maneira substancial e sutil, nunca utilizando
as referências estéticas como escudos, mas sim como fruto
do prazer envolvido numa composição que bebe em boas fontes.
Ainda que buscando inspiração no suspense, gênero
consagrado (e muito em alta nos anos 80, independentemente da qualidade
ou do refinamento estético, como a profusão de body count
movies comprova), o melhor de Matador é mesmo o fator
almodovariano, com destaque para a seqüência final, na qual
a intervenção surrealista de um eclipse solar impede que
Angel chegue a tempo de salvar Diego. Interessou a Almodóvar menos
estruturar um thriller do que se aproximar das pessoas que estão
entre paixão e morte para se inteirar dos seus sentimentos, privações,
motivações – sem apelar para o psicologismo barato ou se
prolongar em teorias que expliquem os assassinatos.
Fala-se muito da maturidade de Almodóvar
em sua fase mais recente, a partir de A Flor do Meu Segredo (1995),
contrabalançando o exagero kitsch e conquistando uma raríssima
(e inusitada) singeleza de olhar. Entre Labirinto de Paixões
e Carne Trêmula, de fato, há uma grande variação
no espectro – o que abrange personagens, emoções, cores,
diálogos. Mas é preciso também reconhecer que Matador,
de 1986, já traz vários elementos que são comumente
apresentados como frutos dessa maturidade, a exemplo da profunda compreensão
de personagens ambíguos, culpados dentro de sua inocência,
órfãos literais ou figuradamente (como Angel), muito solitários,
por um lado, mas muito cheios de possibilidades, por outro, a ponto de
poderem emprestar a alguém essa energia vital em estado latente,
silenciosamente intensa (vide Fale com Ela).
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Apresentação de Eduardo Valente
e Ruy Gardnier.
Matador
Matador, Espanha, 1986, cor, 110’
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar e Jesús Ferrero
Produção: Andrés Vicente Gómez
Música: Bernardo Bonezzi
Fotografia: Ángel Luis Fernández
Montagem: José Salcedo
Direção de arte: Román Arango, José Morales,
J. Mordes, Josep Rosell
Elenco: Assumpta Serna (María), Antonio Banderas (Ángel),
Nacho Martínez (Diego), Eva Cobo (Eva), Julieta Serrano (Berta),
Chus Lampreave (Pilar), Carmen Maura (Julia), Eusebio Poncela (Comissário),
Bibí Andersen (Vendedora de flores)
Diego Montes é um toureiro aposentado
que tem uma escola de tauromaquia, mas tem que sente a necessidade de
continuar matando. E as mulheres substituem os touros. Fazer amor com
uma mulher e matá-la no último instante é o que mais
se aproxima, para ele, do prazer de tourear.
Depoimentos de Pedro Almodóvar:
"No dia de estréia de Kika em
Madri, tive medo de que o público não pudesse entrar no
filme porque ele é muito pessoal e cheio de conceitos puramente
cinematográficos. Adoro falar, discutir com um interlocutor interessante
sobre os detalhes de um filme, mas um filme deve poder viver independentemente
desse tipo de reflexão, ele deve poder ser visto sem nenhuma explicação."
"Meu grande segredo, se eu tenho um, a chave de meu trabalho é
que, qualquer que seja a situação, maluca ou incomum, ou
o tipo de história, o cinema é sempre objetivo, a imagem
é constituída de elementos concretos, reais, e assim deve
ser sempre sustentado por uma interpretação naturalista.
É o que dá a toda cena seu poder de credibilidade e de convicção.
É por essa razão que eu rodeio sistematicamente meus personagens
de objetos que têm ressonâncias múltiplas e não
somente servem à estética que eu escolhi para o filme, mas
dão ao espectador informações sobre os personagens."
"Gosto muito do cinema de sentimentos, mas em geral, os filmes sentimentais
não me agradam muito, especialmente os americanos. Mas gosto muito
de Ondas do Destino, que é um filme puramente sentimental,
verdadeiro, austero e contemporâneo."
Filmografia de Pedro Almodóvar:
1980 Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón (Pepi, Luci, Bom)
1982 Laberinto de Pasiones (Labirinto de Paixões)
1983 Entre Tinieblas (Maus Hábitos)
1984 ¿Qué he hecho yo para merecer esto? (Que Eu Fiz Para Merecer
Isto?)
1985 Matador (Matador)
1986 La ley del deseo (A Lei do Desejo)
1987 Mujeres al borde de un ataque de nervios (Mulheres à Beira
de um Ataque de Nervos)
1989 Átame (Ata-me)
1990 Tacones lejanos (De Salto Alto)
1993 Kika (Kika)
1995 La flor de mi secreto (A Flor do Meu Segredo)
1997 Carne trémula (Carne Trêmula)
1999 Todo sobre mi madre (Tudo Sobre Minha Mãe)
2002 Hable con ella (Fale Com Ela)
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