Manhattan, de Woody Allen
EUA, 1979
O espelho de Narciso em
branco-e-preto
Manhattan, feito em 1979, é uma espécie de mito primordial
do cinema de Woody Allen, um Livro de Gênese de seu cinema. Mesmo
que as bases dele já estivessem lançadas tanto na fase mais
fabular do começo de sua carreira que vai até A
Última Noite de Boris Grushensko, de 1975 quanto nos
dois filmes já urbanos e angustiados que o antecederam Noivo
Neurótico, Noiva Nervosa, de 1977, e Interiores, de
1978, este sua primeira referência explícita a Bergman
, sobretudo porque já estava lá o personagem obsessivo que
dominaria suas aparições em seus filmes, é no filme
sobre a cidade que se tornaria o fantasma mais forte a assombrar a mente
do diretor que se pode falar em origem, em um sentido mesmo mítico.
Manhattan faz de Allen um autor, no sentido em que o filme inaugura
Allen, cria como memória um discurso, que é inexoravelmente
o próprio cineasta.
Um filme sobre uma cidade. Quando se fala que o filme é sobre Manhattan,
o termo "sobre" deve ser pensado. Embora ele tenha o tom de
ode que fica claro na filmagem sempre reverente a fotografia em
preto-e-branco de Gordon Willis é quase um filme a parte
, na escolha da Raphsody in Blue, e outros temas de Gershwin, na
tendência à geografia que há no roteiro, a cidade
existe no filme mais como um espírito, como uma ideologia. O filme
anda sobre a cidade, mas não versa sobre ela. Para Allen, Nova
York, particularmente Manhattan, é a cidade para se estar sozinho,
porque estar sozinho é o que há para ser.
Isso porque, no fundo, as possibilidades de ser feliz sozinho, de não
precisar do outro, são uma preocupação de todo o
cinema de Allen. Os filmes da fase bergmaniana mais fortemente
Interiores e A Outra arremessam na cara dos personagens
que não se pode ser sozinho, que o outro é terrivelmente
necessário (talvez por isso, Allen prefira não estar nesses
filmes); já as comédias urbanas sobre relacionamentos (sua
variante genial da comédia romântica americana), das quais
Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é o primeiro representante
e Manhattan o mais nobre, desconstroem o outro como utopia. O amor,
ou é mal necessário ou é sina insólita.
E isso é o que mais pesa em Manhattan. É um filme
que pode (talvez deva) ser considerado um dos mais machistas já
feitos. Afinal, ele é sobre o macho ferido e as mulheres que o
rodeiam. Ele é agredido pela mulher, que prefere uma mulher; troca
de namorada sem cerimônia; abandona a jovem atriz, que diz amá-lo,
pela mulher madura mais interessante; preocupa-se sempre com a sexualidade
como moeda de afirmação. É um macho narcísico,
um falocentrista convicto. Não à toa, a fala-síntese
do filme é a do diálogo entre o personagem de Allen e seu
melhor amigo, que lhe diz: "Tudo para você se transforma em
problemas morais. Pare de querer ser Deus". Ao que Allen (Isaac)
responde: "Eu tinha que mirar meu comportamento em alguém".
Mas ao mesmo tempo, o filme
revela que o macho não é outra coisa senão uma espécie
em extinção em um habitat opressivo. Basta Reparar como
muda o começo de seu livro na abertura do filme e ter a real medida
de seu problema: a sina do homem do final do século 20 será
encontrar seu lugar em uma economia das afetividades, será se compreender
como parte de uma história fundamentalmente sem sentido, mas que
traz algumas determinações Allen é, claro,
perpassado pela cultura judaica e, embora seja um cético, mostra-se,
ainda que muito irônico, profundamente moldado por ela.
Uma dessas determinações é a de que é preciso
encontrar alguém. O amor é uma sina terrível para
os personagens de Allen, porque ele se transforma em uma espécie
de problema profissional. É como se seus personagens buscasse mulheres
como quem busca uma carreira. Às vezes, inclusive, isso lhe causa
tédio. Em Manhattan, esse tédio chega ao horror,
porque as mulheres são extremamente ingratas com ele (em seu juízo).
Mas essa ingratidão do outro se espalha por seus filmes. Na fase
mais recente, ela se transformou na ingratidão do mundo com o autor
Allen. O diretor passou a ser mais preocupado com as possibilidades do
próprio cinema, sobretudo depois do descaradamente autobiográfico
Maridos e Esposas, de 1992. Dali para frente ele retomou preocupações
com que já tinha trabalhado em Zelig (1983), até
hoje seu maior filme, e passou a discutir a construção do
personagem, o papel da câmera, a relação entre ficção
e realidade, o cinema como mentira, artística e, sobretudo, social.
Tônica, aliás, de seu mais recente trabalho a chegar às
telas por aqui, Dirigindo no Escuro, sobre as peripécias
de um cineasta que tem que dirigir um filme e conquistar o público,
tentando manter sua visão artística. Como sabemos, depois
de anos de sucesso e sendo indicado a diversos prêmios da Academia,
atualmente Allen só consegue ter seus filmes financiados pela Dreamworks,
a produtora de Steven Spielberg, o que o obriga a fazer alguns filmes
filosoficamente menos pretensiosos, como Trapaceiros.
Alexandre Werneck
Manhattan
Manhattan, EUA, 1979, P&B, 96'
Direção: Woody Allen
Produção: Robert Greenhut, Charles H. Joffe e Jack Rollins
Roteiro: Woody Allen e Marshall Brickman
Fotografia: Gordon Willis
Montagem: Susan E. Morse
Música: George Gershwin (não original)
Intérpretes: Woody Allen, Diane Keaton, Michael Murphy, Mariel
Hemingway, Meryl Streep.
Sinopse:
Isaac Davis (Woody Allen) é um escritor quarentão que trabalha
como roteirista de TV na Nova York do final dos anos 70. Mergulhado em
uma vida afetiva tresloucada depois de ter sido trocado pela esposa Jill
(Meryl Streep), por uma mulher, ele namora Tracy (Mariel Hemingway), uma
jovem atriz de 17 anos. Um dia, seu melhor amigo, Yale (Michael Murphy),
um professor casado, confidencia-lhe que está tendo um caso com
Mary (Diane Keaton), uma jornalista criativa e inteligente. Quando Isaac
a conhece, apaixona-se e começa um jogo de problemas afetivos existenciais
dos personagens, tendo como pano de fundo a cidade de Manhattan.
Filmografia de Woody Allen:
1966 What's Up, Tiger Lily?
1969 Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run)
1971 Men of Crisis: The Harvey Wallinger Story (TV)
1971 Bananas (Bananas)
1972 Tudo que você sempre quis saber sobre sexo (Everything you
always wanted to know about sex)
1973 O dorminhoco (Sleeper)
1975 A última noite de Boris Grushenko (Love and death)
1977 Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall)
1978 Interiores (Interiors)
1979 Manhattan (Manhattan)
1980 Memórias (Stardust memories)
1982 Sonhos eróticos de uma noite de verão (A midsummer
night's sex comedy)
1983 Zelig (Zelig)
1984 Broadway Danny Rose (Broadway Danny Rose)
1985 A rosa púrpura do Cairo (The purple rose of Cairo)
1986 Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters)
1987 Setembro (September)
1987 A era do rádio (Radio days)
1988 A outra (Another woman)
1989 Contos de Nova York (New York stories) (episódio Édipo
caído)
1989 Crimes e Pecados (Crimes and misdemeanors)
1990 Simplesmente Alice (Alice)
1992 Maridos e esposas (Husbands and wives)
1992 Neblina e sombras (Shadows and fog)
1993 Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mystery)
1994 Tiros na Broadway (Bullets over Broadway)
1994 Don’t drink the water (TV)
1995 Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite)
1996 Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you)
1997 Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry)
1998 Celebridades (Celebrity)
2000 Poucas e boas (Sweet and lowdown)
2000 Trapaceiros (Small time crooks)
2001 O escorpião de jade (Curse of the jade scorpion)
2002 Dirigindo no escuro (Hollywood Ending)
2003 Anything else
2003 Why men shouldn’t marry (em filmagem)
Citações:
"Não pretendo conquistar a imortalidade
com minha obra... Pretendo fazê-lo não morrendo".
"Tenho idéias para meus filmes o tempo
todo e as anoto em guardanapos e em caixas de fósforos. Depois
as guardo em uma caixa, um bauzinho, e elas ficam por lá às
vezes por anos, até que as reencontro"
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