Dançando no Escuro,
de Lars Von Trier

Dinamarca, França, Suíça, 2000
(crítica publicada
em Contracampo à época do Festival do Rio 2000)
Toda a expectativa
em torno de Dançando no Escuro parece ter sido bem recompensada.
Ao menos pela grande maioria do público que esteve presente na
única projeção aberta do filme no Festival, Lars
von Trier conseguiu novamente fazer um filme que invade o espectador,
que o faz render-se ante à imagem (anteriormente já o fizera
com êxito em Ondas do Destino). Dançando no Escuro
(desde o longo breu inicial) é Cinema, é muito Cinema. O
que já é um bom começo...
Contando o melodrama
de Selma, imigrante tcheca nos EUA, cujo destino é o de perder
a visão por completo – Lars von Trier faz um fantástico
musical opressivo e angustiante. Em contraponto com todo o sofrimento
da personagem (além de cega, acusada de assassinato), somos obrigados
(e digo mesmo "obrigados") a assistir a delirantes cenas de sorrisos,
cantoria e passos marcados. Esse desrespeito pelo emocional do espectador
é um dos trunfos de von Trier para fazer com que o público
se entregue de vez ao filme (não foi a toa o coro de narizes fungantes
e olhos avermelhados no final do filme). Ele sabe o que está fazendo,
ele sabe o que quer e, por isso mesmo, consegue fazer de um dramalhão
meloso um filme forte e inventivo. Auto referente em relação
ao cinema clássico dos musicais, mas sem cair no estúpido
narcisismo que invade de assalto parte da atual produção
cinematográfica mundial, Dançando no Escuro é
um filme exato, uma obra completa e marcante. Mesmo nos momentos em que
o musical parece entrar um tanto quanto forçado no filme, tudo
ainda faz parte dessa intenção de desrespeito, dessa quebra
da expectativa dramática... Lars von Trier não quer harmonizar
a entrada da música, não quer fazer dos números musicais
imagens fáceis...O espectador não se entrega às musicas,
ele se debate contra elas...
* *
*
Do ponto de vista
técnico, o filme também é instigante: tendo o próprio
diretor como operador de câmera, Dançando no Escuro
tem uma belíssima fotografia em digital (um misto de leveza e frieza
nas cores) que se transforma em imagem granulada e mal iluminada nas passagens
musicais. Fotografia digital que facilita a criativa montagem cheia de
cortes - que interrompem movimentos, que resumem gestos - como se fossem
pequenos soluços da imagem...
Bjork está
incrível no papel: tímida e com aquela voz pequena, parece
mesmo ter encontrado seu único e grande papel no cinema. A construção
de sua personagem ao longo do filme é perfeita, e sua cegueira
se torna inquestionável...
Por fim, a trilha
sonora (embora com letras um tanto quanto fracas do próprio diretor)
cria uma atmosfera de ilusão que fecha com perfeição
o drama onírico-opressivo de Selma.
* *
*
É claro que
virão as críticas negativas, que se buscará defeitos
e falhas em Dançando no Escuro (a Crítica serve um
pouco para isso mesmo), mas é um alívio ver que o Cinema,
ainda muito vivo, pode gerar tamanha surpresa visual como a que se vê
aqui. Que o cinema, absorvendo com inteligência as novas tecnologias,
não precisa ser uma mera masturbação formal, e que
ainda pode atiçar os sentidos do imaginário anestesiado
com o que temos de conviver na produção artística
e intelectual contemporânea...
Felipe Bragança
Filmografia de
Lars Von Trier:
1977 Orchidégartneren (37’)
1979 Menthe
- la bienheureuse (31’)
1980 Nocturne
(8’)
1981 Den Sidste
detalje (31’)
1982 Befrielsesbilleder
(57’)
1984 Forbrydelsens
element / O Elemento do Crime (104’)
1987 Medea /
Medéia (75’) (feito para a TV)
1988 Epidemic
(108’)
1991 Europa
/Europa (112’)
1994 Riget /
O Reino (série de TV, 280’)
1996 Breaking
The Waves / Ondas do Destino (159’)
1997 Riget 2
/ O Reino 2 (série de TV, 286’)
1998 Idioterne
/ Os Idiotas (117’)
2000 Dancer
In The Dark / Dançando no Escuro (140’)
2000 D-Dag (experiência
televisiva dirigida juntamente com Soren Kragh-Jacobsen, Kristian Levring
e Thomas Vinterberg)
2003 Dogville
(177’)
Citações:
"Coloquei na
cabeça que eu agora só farei filmes que se passam nos Estados
Unidos. Talvez porque, no lançamento de Dançando no Escuro,
me criticaram por fazer um filme sobre um país que eu nunca tinha
visitado. Tenho dificuldades em compreender essa crítica. Acho,
de todas as formas, que a verdadeira motivação dessa birra
está antes na denúncia do filme contra o sistema judiciário
americano. Ouso achar que conheço melhor a América, através
das imagens que ela escolhe exibir dela mesma pela mídia do que
os americanos conheciam o Marrocos quando fizeram Casablanca, Humphrey
Bogart jamais pôs os pés nesse país. Hoje, é
difícil não ter informações sobre a América:
90% das novidades e do repertório cinematográfico vêm
de lá. Eu acreditava que poderia interessar aos americanos ver
como um não-americano que jamais visitou esse país poderia
observá-la. Kafka escreveu um romance muito interessante intitulado
América e ele também nunca foi aos Estados Unidos."
(sobre Dogville
e a personagem de Grace [Nicole Kidman], que se distingue bastante das
protagonistas dos filmes de sua "trilogia coração-de-ouro",
Ondas do Destino, Os Idiotas e Dançando no Escuro.
Sobre a questão do sacrifício e da vingança)
Sim, eu quis fazer
um filme sobre a violência e a vingança feminina é
mais leve de tratar do que a vingança masculina. Jenny dos corsários
(personagem que inspirou a personagem principal de Dogville) é
também uma mulher que se vinga. É muito estranho, mas me
parece que as mulheres desempenham e exprimem melhor essa parte de mim.
Essa minha parte feminina, talvez! Encontro mais facilmente uma desculpa
para mim mesmo ou meus pensamentos quando eu faço com que ela seja
expressa por uma mulher. Quando exprimo a mesma coisa através de
um homem, o que se vê é brutalidade e crueldade."
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