Tempo de guerra, de Jean-Luc Godard
Les Carabiniers, França, 80min, 1963, preto e branco

SINOPSE/FICHA TÉCNICA
Tempo de Guerra seria mais ou menos como alguns filmes antigos de Rossellini, o de A Máquina de Matar Pessoas Más ou de Onde Está a Liberdade? O roteiro é tão direção: Jean-Luc Godard forte que eu só precisarei filmar sem me questionar muito. As soluções irão se impor naturalmente. É a história de dois camponeses que vêem chegar os Produção: Georges de Beauregard, Carlo Ponti soldados. Eles não vêm para prendê-los, mas para trazer uma carta do rei. É uma carta de alistamento. Eles ficam chateados, mas os soldados dizem a eles: a guerra é genial, podemos fazer o que quisermos, pegar tudo que vermos pela frente. Eles querem saber o quê. Podemos sair do restaurante sem pagar? Elenco: Marino Masse (Ulisses), Albert Huross (Miquelângelo), Geneviève Galéa (Vênus), Catherine Ribeiro (Cleópatra), Gérard Poirot (soldado), Jean Brassat (soldado), Barbet Schroeder (vendedor de carros), Jean-Louis Comolli (soldado) Claro que sim! E eles continuam a enumerar desde a bobagem menorzinha até a maior atrocidade. Podemos massacrar crianças? Claro! Roubar óculos dos idosos? Sim senhor! Queimar mulheres? Podem sim! Quando o papo se acaba, eles vão para a guerra. O filme será malvado, porque toda hora que uma idéia surge da estupidez deles, é uma idéia malvada. Eles escrevem às suas mulheres e contam a guerra roteiro: Jean-Luc Godard, Roberto Rossellini e Jean Grualt, a partir da peça de Benjamino Joppolo I Carabinieri: tomamos o Arco do Triunfo, o Lido, as Pirâmides, estupramos tantas mulheres, queimamos coisas: tudo indo. No fim eles voltam, Som: Jacques Maumont felizes mas estropiados, com uma pequena mala: trazemos todos os tesouros do mundo. E eles tiram um monte de cartões postais Fotografia: Raoul Coutard que representam os monumentos de todos os países: para eles, são títulos de propriedade, eles acham que uma vez que terminar a guerra, eles receberão tudo aquilo. Os soldados dizem: quando vocês ouvirem gritos e fogos de artifício, a guerra estará terminada e o rei vai recompensar a todos, inclusive vocês, que receberão tudo. Tempos depois, eles ouvem gritos e fogos, eles vão, mas são tiros. O rei não ganhou a guerra, mas assinou a paz com o inimigo e aqueles que combateram para ele são considerados criminosos de guerra. Em vez de recuperar suas riquezas, os dois camponeses são Montagem: Agnès Guillemot, Lila Lakshmanan fuzilados. Tudo será muito realista, numa perspectiva puramente teatral, veremos cenas de guerra, sob forma de comandos, como nos filmes de Fuller, com alguns planos documentais.”

A GUERRA, O FETICHE, A INFÂMIA E OS CARTÕES POSTAIS

Num programa de televisão, Jean-Luc Godard mostrava duas fitas de vídeo a seu entrevistador. Duas diferentes visões da Guerra do Vietnã. A primeira era Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987) de Stanley Kubrick, e a segunda 79 Primaveras, o média-metragem de Santiago Álvarez sobre o aniversário de Ho Chi-min. O confrontamento entre os dois filmes dizia respeito ao que Godard chama de “crítica visual”. As seqüências do filme de Kubrick eram exuberantes, a técnica perfeita, as batalhas incrivelmente filmadas, enquanto Santiago Álvarez se limitava a pegar alguns fotogramas de soldados andando pelas matas vietnamitas, colocar em banda de som, altíssima, um som de metralhadora, e por fim fazer tudo para destruir os fotogramas: queimá-los, fazê-los sair do carretel, mostrar ao espectador a fragilidade da película espelhada com a fragilidade humana numa guerra. O resultado sai também exuberante, até mais forte do que as imagens de Kubrick, mas acima de tudo o que importa a Godard é que as imagens de Santiago Álvarez podem ser belas ou feias, mas evidentemente elas condenam por sua própria existência a guerra, retiram de suas imagens qualquer poder de fetiche da imagem de guerra, enquanto Kubrick se deixa encenar cada imagem, como de seu estilo, com seu notório preciosismo. Kubrick, em seu filme, pode odiar as razões dos americanos, mas ele tira proveito estético da guerra. Santiago Álvarez odeia a guerra e faz questão de mostrá-lo não mostrando: infligindo nas imagens da guerra todo tipo de procedimento para destruir os fotogramas, tirar da imagem de guerra todo poder de gozo que ela pode fornecer.

Mais de vinte anos antes, essa preocupação em deslegitimar qualquer guerra retirando de seu filme qualquer fetiche das imagens ou dos gestos de bravura eventuais da guerra já estava presente em Tempo de Guerra, quinto longa-metragem de Godard. Nunca houve filme de guerra tão desdramatizado, onde nenhuma ação é respaldada pelo sentimento de honra, de bravura, de missão cumprida. Ao contrário, toda a história do filme é um processo cumulativo de gestos infames e desonrosos, em que ninguém se salva: Ulisses e Miquelângelo, os dois camponeses chamados para lutar pelo rei na guerra, são dois idiotas que ingressam na guerra com o único fim de cometer gestos de violência, saquear os lugares conquistados e conquistar depois da guerra as propriedades que tomaram em tempo de guerra (a idéia não é deles, é promessa dos soldados que vêm lhes trazer a carta de alistamento). As duas mulheres que acompanham os “heróis” do filme, Cleópatra e Vênus, não parecem ganhar deles no quesito inteligência: quando sabem da notícia da guerra, tratam de fazer uma listinha de compras para que eles tragam na volta. O rei, por sua vez, não passa de um escroque: promete tudo a seus soldados e, tendo perdido a guerra, faz um trato de armistício em que condena à morte todos os seus soldados como criminosos de guerra.

Desdramatizar é uma coisa muito difícil em cinema. Basta você olhar para um personagem sofrendo que a identificação que se cria entre personagem e espectador é quase imediata. Então como fazer para realizar um filme em que o espectador não deve se indentificar com ninguém e com nada, com nenhum gesto, nenhuma atitude, nenhum conceito? Godard faz isso de três formas.

A primeira é abandonar todos os primeiros-planos no filme. Planos mais aproximados e close-ups estão proibidos, criam identificação imediata. A segunda forma é mais elaborada: filmar todos os gestos de seus personagens como atitudes prosaicas do dia-a-dia, desde o fuzilamento de inocentes até uma ordem para que uma mulher se desnude. A câmera fica impassível, pasma diante da estupidez reinante. A terceira e última forma é ainda mais veemente: se compõe de frases dos soldados em cartas que eles mandam para os familiares (e são cartas verdadeiras): “Passamos por um rio de sangue. Um grande beijo.” O mais prosaico convive com o mais nojento, e os dois são inseparáveis. Tempo de Guerra filma tudo que há de mais mesquinho numa guerra: a estupidez dos soldados, o despreparo, a morte disseminada, a violência sem propósito, a covardia.

Tempo de Guerra não especifica tempo ou lugar. Ocorre em todo lugar e em todos os tempos. Não é de uma guerra específica que o filme fala, tampouco se prende nos motivos que existem para se fazer ou não uma guerra. É um filme que existe como um bloco, e é como um bloco que recusa-se a encontrar explicações, subterfúgios ou razões para se fazer uma guerra (em outra ocasião, Godard disse: “As pessoas pagam para ir ao cinema e ganham dinheiro para ir à guerra. Está tudo errado. Quem quisesse ir à guerra devia pagar, quem quisesse ver filmes deveria receber dinheiro.”). Tempo de Guerra centra-se na infâmia da guerra, no aspecto cotidiano e banal de pessoas matarem-se umas as outras por motivos ignorados.

O melhor momento do filme, contudo, ultrapassa inclusive a noção de guerra. É quando Ulisses e Miquelângelo voltam para casa, trazendo como suas conquistas apenas uma valise. Mas essa valise carrega todos os tesouros do mundo: uma coleção de cartões postais com os grandes monumentos do mundo (pirâmides, torre de Pizza), com os mais diferentes animais do mundo, os mais belos acidentes geográficos, as mais belas e sedutoras mulheres, e assim por diante. Ulisses e Miquelângelo crêem que os cartões postais são títulos de propriedade, e que depois da guerra tudo que consta de seus títulos será dos irmãos (pois são irmãos). Essa cena, transcendendo muito a guerra ou a época (anos 60), nos revela muito de nossa própria condição de seres contemporâneos, imagéticos, que nunca precisamos ir ao Louvre para saber de cor todos os poros da Mona Lisa e mesmo sem jamais pisarmos em Nova York sabemos nos localizar de tanto já termos visto filmes e seriados que lá se passam. Ulisses e Miquelângelo, a despeito da estupidez da guerra, nesse instante são a condição do homem contemporâneo: vivendo nuam multidão de signos e sinais que dão muito pouca garantia acerca da “propriedade de uma imagem”.

Ruy Gardnier

COMENTÁRIO DO DIRETOR

Tempo de Guerra

meu filme, um apólogo

Esse filme é uma fábula, um apólogo em que o realismo só serve para socorrer, para reforçar o imaginário. E é assim que a ação e os acontecimentos descritos nesse filme podem muito bem se situar em qualquer lugar, à direita, à esquerda, em frente, um pouco em qualquer parte e em parte nenhuma.

Há simplesmente uma casa, ou algo que se assemelhe a uma casa, meio destruida, muito simples, isolada da civilização, e uma cidade não muito longe, do outro lado da floresta, ou além das montanhas, além do rio.

Da mesma forma, os poucos personagens não são situados nem psicologicamente, nem moralmente, e muito menos sociologicamente. Tudo se passa no nível do animal, e além do mais esse animal é filmado do ponto de vista vegetal, quando não mineral, ou seja, brechtiano.

Dito de outra forma, nossos pobres heróis, seguindo a locação em que o filme será filmado, serão tanto papus da Indonésia quanto camponeses de Lozère, índios da Bolívia ou mujiques da Ucrânia, pouco importa, pois são personagens de teatro.

Os soldados não representam um poder ou um governo qualquer. Eles representam o rei, um ponto e pronto, como nos contos de fadas (nosso filme é um conto de fadas). Não é de um tal ou tal rei que se trata, mas simplesmente: “O Rei” enquanto entidade pura. E quanto às roupas dos soldados, para evitar todo malentendido, ele será composto de uma mistura disparatada de uniformes diversos: boné de oficial czarista, roupa de controlador de trens italiano, botas de partisão iugoslavo, etc.

Há seis personagens principais. Os dois soldados nao têm nome. Mas os quatro outros carregam nomes célebres da história da humanidade.

São vênus (a filha), Cleópatra (a mãe), de Miquelângelo e Ulisses (os dois filhos). Eles têm em comum a selvageria e a cobiça em estado natural – e eles ignoram as formas mais sutis com que esses sentimentos acontecem num mundo moderno do qual eles estão inteiramente separados. A estupidez ou o embrutecimento, neles, só dá lugar à maldade.

Enfim, tudo, cenários, personagens, ações, paisagens, aventuras, diálogos, são somente idéias e, como tal, tudo será filmado da forma mais simples possível, a forma mais simples do mundo, sendo a câmera, se ouso dizê-lo, um simples aparelho, em homenagem a Louis Lumière. Porque não se pode esquecer que o cinema deve, hoje mais do que nunca, manter como regra de conduta esse pensamento de Bertolt Brecht:

“O realismo não é fazer como as coisas verdadeiras, mas como são verdadeiramente as coisas”