A Bela Intrigante,
de Jacques Rivette

La Belle Noiseuse, França, 1991, Cor
Criação
Criar (e recriar)
o novo/belo não é coisa fácil. O que se cria? E como
proceder? E o que acontece com a vida? Criar e viver bem são coisas
que se conciliam, se confrontam ou ambos?
***
O João chegou
ao Odeon ainda cedo, bem antes da Sessão Cineclube. Comprou seu
ingresso logo, pegou um folheto como este e teve que fazer hora até
a sessão – ficou passeando, esperando Maria, sua namorada, pensando
no filme que ia ver, nas coisas que queria sentar para escrever quando
chegasse em casa e achando tudo muito estranho na Cinelândia.
Vera teve que estacionar
o carro correndo, em cima da hora, e Camila, sua filha de dezesseis, veio
reclamando o caminho todo por conta disso, era melhor ter pego o metrô,
além de estacionar no Centro ser terrível – ou caro. Mas
já não via ela há tempos, e nem se incomodou tanto
– Vera apostava que o filme ia ser bom. Em filme francês ela confiava,
só receava que fosse muito longo, mas era do Rivette, cineasta
da Nouvelle Vague que tinha feito recentemente Quem sabe,
que ela tinha gostado muito. E era sobre pintura, ela queria dar uma boa
educação artística para a filha. Entraram correndo
na sala e não houve como negociar: a mãe fez questão
de sentar nas cadeiras mais distantes da tela, "para não
perder as legendas". Camila teve que aceitar, resignada, já
sabia que teria que escutar durante todo o filme os comentários
da mãe. Vera começou notando certos aspectos teatrais na
relação dos atores. Ela gostava disso, um certo tom de encenação
que lhe parecia sutil, começando sem parecer que começava.
Mas achou graça e comentou (num tom mais alto do que Camila achava
necessário) que o Michel Piccoli estava a cara do Iberê Camargo.
Camila não sabia quem era Iberê Camargo, e Vera se prometeu
mentalmente que iria mostrar um álbum a ela mais tarde.
Renata, ou Dona Renata,
como lhe chamavam já os funcionários do Odeon e os organizadores
da sessão, estava feliz por poder ver aquele filme dos anos noventa
que ela tinha ouvido falar muito bem mas tinha perdido. Mas também
estava chateada por saber que a sessão não teria debate
(ela gosta muito de assistir) e o filme teria quatro horas, o que é
uma verdadeira prova de resistência física, coisa própria
para jovens como os rapazes da Contracampo, mas não era mais algo
agradável para ela. Mas com poucos minutos já estava encantada.
A atuação do Piccoli, a beleza das pinturas... ela achava
graça que mesmo os desenhos que lhe pareciam lindos não
agradavam o pintor – Freinhofer, o personagem, chega a dizer que não
fez nada de bom. E que menina linda essa garota, a Béart...
João estava
um pouco sem graça, já que não imaginava que tinha
convidado Maria para ver um filme que teria Emmanuelle Béart nua
por horas a fio. E nem podia comentar como ela era bonita! Se quando ele
disse "meu deus!" ela já tinha ficado brava, imagine
se falasse dos seios ou do bumbum? Ele já conhecia Maria – era
motivo para brigar a noite inteira! Mas tudo bem, menos mal que o filme
parecia cada vez mais interessante. E ela também parecia estar
gostando, apesar do olhar enfurecido na hora do comentário. Era
o caso, então, de disfarçar a reação ao ver
a nudez da personagem.. era só pensar como o pintor! Mas ele mesmo,
Freinhofer, tem um tom de sátiro, de artista sacana, então
ficava difícil não dar bandeira. Mas Maria estava quieta.
Embora João tenha achado que ela quase chorou num certo ponto,
quando a modelo se impõe ao pintor e, ao mesmo tempo, vê
sua vida privada ruir.
Dona Renata ficou
fascinada com a relação sofrida do pintor com sua arte.
Achou muita graça quando viu as manias que Freinhofer tinha para
começar a pintar, andando de um lado para o outro, mexendo em tudo
para poder se concentrar. Quando viu o pintor forçando a modelo
a posições incômodas, lembrou de um outro filme francês
e das histórias que tinha lido sobre Rodin e sua relação
com seus modelos. Incrível, ela achou, essa coisa de relacionar
um certo êxtase do sofrimento com a criação, que afinal
era um dos temas do filme. Pensou no seu filho, Cláudio, que ela
queria que tivesse sido músico, e no seu neto de seis anos, Pedro.
Será que seria uma boa vida ser artista, como ela sempre sonhou
para eles?
Vera também
lembrou de Rodin, e falou com Camila. Sim, ela sabia quem era, mas não,
nunca tinha visto as estátuas dele (e Vera novamente se prometeu
que iria corrigir isso). Mas Camila parecia realmente entretida no filme,
que bom. Vera sentia que a filha se interessava mais pelos comentários
sobre cinema, e falou rapidamente sobre os planos longos. Eram todos muito
simples, deixavam a imagem fluir, fosse dos atores ou de um desenho.
João sentiu
que Maria ficou bem perturbada pelo final do filme. Ele se sentiu muito
incomodado por não ter visto o quadro, mas achou ao mesmo tempo
que era uma boa solução. Mas ela realmente ficou incomodada
com a história. Ele não entendia direito o que se passava
na cabeça dela, e nisso até se sentiu próximo ao
personagem casado com Marianne no filme, Nicolas. Talvez fosse isso, Maria
talvez estivesse se identificando com Marianne, mas... em quê? Ele,
no entanto, não podia negar: sentiu-se provocado por não
ver o quadro. Achou que Freinhofer era um tremendo covarde, no final das
contas. Chegou a comentar isso com Maria. Pra quê, meu Deus?! Foi
só ele falar isso que ela mostrou o quanto estava transtornada
com o filme: então era para expôr a garota?, era para mostrar
que ele, Freinhofer, era o grande gênio, o machão insuperável?
Para mostrar que ele criava arte destruindo a vida? A vida é mais
importante que a arte!, foi o que ela vociferou. Só restou a João
pedir desculpas (ela também pediu) e concordar, que ele não
é tão bobo assim. Na verdade, estava louco para chegar em
casa e sentar no computador para escrever. Queria se arriscar como Freinhofer
sugeriu, fazer tudo certo e depois ir além. Não ia mais
escrever o ensaio em que estava pensando – ia arriscar uma ficção
misturada com crônica da sua vida. Sem medo, pelo menos na disposição.
Mas sem ser cruel – foi aí que se deu conta de que, no fundo, ele
dava razão a Maria.
Renata emocionou-se
com a coragem de Freinhofer em perder sua criação. Ficou
novamente triste porque não haveria debate naquela noite. Na saída,
tomou coragem e chegou a sugerir ao Ruy que o debate da semana seguinte
também falasse de A Bela Intrigante. Ficou conversando um
pouco, aprendendo sobre a carreira do Rivette, que, agora ela sabia, foi
um dos críticos da Cahier du Cinéma que fizeram a Nouvelle
Vague. Agora ela quer ver A Religiosa, que o Ruy disse que
é o filme antigo mais conhecido dele, e também esse recente,
o Quem Sabe. Ela ainda perguntou ao Ruy "por que é
que vocês do Estação não organizam uma mostra
com os filmes do Rivette?", mas o Ruy explicou que ele não
era do Estação. Mesmo assim, disse ele, um dia isso há
de acontecer aqui no Rio. Dona Renata lembrou de novo de Cláudio
e de Pedro. Resolveu que no dia seguinte iria comprar para o neto muitas
tintas guache e cadernos para ele começar a pintar.
Vera estava bem feliz
pelo filme e por ter saído com a filha. Só não esperava
ter que ouvir o que ouviu dentro do carro. Camila começou falando
que tinha que escolher logo o que fazer no vestibular. Oras, grande novidade...
E a garota logo emendou que sabia que agora era moda, que não era
fácil passar nem que seria fácil viver disso, mas que ela
estava resolvida: queria fazer cinema. Vera ficou sem saber o que dizer
– ela não gostou nem um pouco da idéia, mas como agir numa
hora dessas? Chegando em casa, lembrou do Rilke (e mostrou o livro à
filha). Se lhe parecesse que seria impossível viver sem fazer aquilo,
que fosse em frente, foi o que falou a Camila. E disse que, como o filme
mostrava, isso não era trabalho que se faz sem envolver toda a
vida. Sim, a filha sabia disso. Mas como fugir do que a gente quer criar?
Daniel Caetano
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