O Atalante,
de Jean Vigo
L’Atalante, França, 1934-40, P&B, 90'
1. Há
muitos filmes bonitos no mundo. Como também há muitos diretores
capazes de identificar coisas belas no mundo e uni-las a seu bel prazer,
construindo espécies de casas-de-bonecas que servem como objetos
suplementares ao mundo, filtrado de todas as suas impurezas. Da mesma
forma, há compositores e compositores que conseguem com uma das
mãos nas costas associar nota a nota e conseguir uma melodia bonita,
cantores para cantar certo essas melodias, etc. Não é
assim tão difícil. Difícil é contemplar toda
a diversidade do mundo, suas simetrias e dessimetrias, suas suavidades
mas também seus traços grosseiros, os belos gestos e as
ações ingóbeis. Nada fácil é agregar
toda essa multiplicidade de aspectos do mundo e conseguir criar beleza
a partir dela, tomar para si um bocado de dados sensíveis que por
si mesmos não tem nada de belos para compor alguma coisa de belo
que nasça desses encontros, unir o sublime ao grotesco, ou melhor,
fazer o sublime a partir do grotesco. Não nos parece que
muitos filmes tenham conseguido até o final tal intento. E, dentre
os que conseguiram, O Atalante aparece talvez um tantinho à
frente de todos eles (talvez Tempos Modernos de Charles Chaplin
junte cabeça a cabeça) como a maior entrega que um artista
cinematográfico já fez da grandeza do mundo traduzida para
a tela do cinema.
2. A
intriga de O Atalante é tão sumária que mais
parece um conto de fadas: um casal recém-casado passará
sua lua-de-mel num barco de carga sem nenhum conforto. Ele é comandante
desse barco, gosta muito de sua nova esposa mas não parece amá-la
(ao menos, ele não consegue ver seu rosto quando mergulhado em
água). Ela é apaixonada por ele, mas uma forte vontade de
conhecer a vida da cidade grande tornam-na um tanto impaciente, sobretudo
se considerarmos a pouco entusiasmante vida cotidiana num barco. Atiçada
pelos flertes que um vendedor de rua faz para ela e cansada dos adiamentos
que o marido faz em levá-la para visitar Paris, a moça deixa
o barco à noite, secretamente. Quando descobre a fuga da esposa,
o marido decide partir imediatamente com o barco, deixando a moça
perdida em terra firme. Separados e sob o risco de nunca mais se verem,
os dois precisarão pôr à prova o amor que sentem.
O que mais impressiona na esquemática e simples trama de O Atalante
é o aparentemente infinito número de situações
dramáticas entre um casal que o filme consegue capturar. Há
espaço para a magia do andar de um corpo feminino (Dita Parlo caminhando
contra o sentido do barco em plano geral, talvez a imagem mais pregnante
e feérica do filme), para caminhar juntos e felizes na beira do
rio, para a agressão gratuita ou para o desapontamento. E, claro,
para os dois opostos extremos: o sofrimento absoluto que é o sentimento
de perder para sempre a pessoa amada e a felicidade suprema que é
estar feliz e ao lado da pessoa a quem se ama. O filme é incrivelmente
bem sucedido em alternar essas diferentes situações aparentemente
impossíveis de colocar juntas e no mesmo filme com naturalidade,
nos parece, justamente porque ele não nos prepara para presenciar
nenhuma cena. A sensação que o filme nos passa é
que aquelas pessoas e aqueles objetos que ali estão são
livres para se aproximarem ou se repelirem, independentes da intervenção
de um diretor para guiá-los ou de um espectador para observá-los.
3. Jean
Vigo não faz poesia com belas palavras. Escolhe sempre as imagens
mais inesperadas, mais improváveis, para nos transmitir um sentimento
vigoroso e novo de beleza. Pois a beleza em O Atalante não é
da natureza da conformidade, mas do sentimento de grandeza que advém
de determinadas situações, e também do disparate
entre o formado e o disforme, sempre convivendo juntos no filme. A esse
respeito, nada mais memorável do que a cena em que Juliette desce
à cabine do Tio Jules, possivelmente a mais bonita do filme. Lá,
ela trava o primeiro contato com as "coisas do mundo" que não
conhecia, tendo vindo de uma cidade do interior. Num misto de repugnância
(por Tio Jules ser feio, sem modos e desajeitado) e fascinação
(o conhecimento e a vivência do velho marinheiro), ela observa como
num transe as maravilhas vindas da China e do Japão, do Novo Mundo,
as toscas tatuagens do marujo e as canções que ele conheceu
pelo mundo. Aquela cabine vale o mundo inteiro, e vale como uma metáfora
do filme: naquele pequeno espaço cabe tudo do mundo, do mais bonito
ao mais feio, desde que se deva aceitar tudo ao mesmo tempo. O Tio Jules,
falso coadjuvante, é o verdadeiro centro e a chave de significação
do filme. Pois só ele, desde o princípio, sabe aceitar o
mundo dessa forma (a história do filme será a dificuldade
dos amantes em também aceitarem o mundo assim).
4. Poucas
coisas no mundo conseguem misturar doce lirismo com selvageria transbordante.
Podemos pensar em alguns momentos únicos, fugidios, que nos emocionam
ao mesmo tempo que nos escapam. Como Glauber Rocha fazendo sua câmera
dar círculos em volta de Ioná Magalhães e Sonia dos
Humildes sob um fundo musical de Villa-Lobos, ou John Coltrane violentando
apaixonadamente uma canção de A Noviça Rebelde.
O Atalante é isso o tempo todo. O Atalante é
uma carta de amor. Uma carta de amor que agrega o mundo em toda sua variação.
Ruy Gardnier
Filmografia
de Jean Vigo (1905-1934):
1929
A Propos de Nice
1931 Taris
1933 Zéro
de Conduite (Zero de Conduta/Zero em Comportamento)
1934-40 L’Atalante
(O Atalante)
"Muitas
vezes pensei em Corot diante dessas paisagens de águas, de árvores,
de casas pequeninas na margem calma do rio e de barcos que caminham devagar
à frente de suas esteiras de prata; a mesma composição
impecável, força invisível porque senhora de si,
equilíbrio de todos os elementos do drama visual na acolhida terna
de uma aceitação total, pérola e ouro que recobrem
com seu véu transparente a nitidez dos planos e a firmeza das linhas.
E talvez, daí, eu tenha apreciado respirar, num quadro tão
nítido, tão despido de empastes e empolamentos – clássico
em suma – o espírito da obra de Jean Vigo, quase violento, em todo
caso atormentado, febril, fremente de idéias e fantasia truculenta,
um romantismo viruleento e mesmo demoníaco, mas sempre humano"
Ëlie
Faure, "Un Cinéaste-né: Jean Vigo, l’auteur de L’Atalante",
1934, apud Jean Vigo, Paulo Emílio Salles Gomes, Ed. Paz e Terra,
RJ, 1984
Sinopse:
Jean, comandante de um barco comercial, e Juliette, uma linda moça
de uma cidadezinha de província, se casam. Eles passarão
sua lua-de-mel no barco Atalante, que irá até Paris. O Atalante
é guiado pelo tarimbado e pitoresco marinheiro Tio Jules, que tem
como ajudante um jovem desajeitado. Nessa viagem de barco, Jules e Juliette
conhecerão a felicidade, a tristeza, o ciúme, a perda e
o reencontro do amor.
Direção:
Jean Vigo Roteiro: Jean Vigo e Albert Riéra, baseado em roteiro
original de Jean Guinée. Fotografia: Boris Kaufman Montagem: Louis
Chavance Música: Maurice Jaubert Produção: Jacques-Luis
Nounez Elenco: Michel Simon (Tio Jules), Dita Parlo (Juliette), Jean Dasté
(Jean), Gilles Margaritis (camelô), Louis Lefèvre (o garoto),
Charles Goldblatt (o ladrão), Fanny Clar (mãe de Juliette),
Raphaël Diligent (pai de Juliette), René Bleck, Gen Paul,
Jacques Prévert, Pierre Prévert, Loutchimoukov.
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