A boa arte de Lavoura Arcaica


Para além de minha crítica a Lavoura Arcaica, na qual descrevo sucintamente os pros e contras ( principalmente contras) a cerca do filme de L.F. Carvalho, diversas questões outras parecem permear a recepção do filme por crítica e público. Enquanto parte da crítica contrária ao filme se ateve à uma simplificação que apontava para uma não-brasilidade anacrônica do filme, outros preferiram partir para a comparação do filme com obras marcantes do cinema artístico brasileiro – tal qual Limite, de Mário Peixoto.

De certa forma, a crítica e o público se separaram entre aqueles que o valorizavam por sua "qualidade artística" e aqueles que, por outro lado, o condenaram por suas "pretensões artísticas".

A força do filme parece ser, justamente, a radicalidade de suas pretensões artísticas e a forma chocante como um filme realizado nos moldes da proto-indústria cinematográfica brasileira, parece apontar para uma vertente diferenciada dentro do cinema comercial.

Lavoura parece não se encaixar em nenhum dos três modelos estéticos mais freqüentes no atual cinema brasileiro comercial: a que segue o caminho da mimese do cinema norte-americano, introduzindo o espaço brasileiro na trama (filmes como Buffo e Spalanzanni e/ou Gêmeas); a que sobrevive do imaginário de sucessos e estéticas televisivas (Xuxa, e núcleo Guel Arraes); e a que segue o caminho de filmes de arte comercialmente comportados ("filmes de festival" como Central do Brasil, Eu,Tu,Eles e outros...). Lavoura parece trazer para o espaço do cinema comercial brasileiro um outro modelo, menos comportado esteticamente, e que talvez seja o motivo de grande parte da dita "admiração" que o filme suscita.

  • Seria interessante utilizar Lavoura Arcaica como forma de abrir um precedente dentro das perspectivas comerciais de nosso novo cinema para além da arte contida no modelo Central do Brasil de filmar ? Seria o mercado de fomento ao cinema brasileiro capaz de se abrir para novas experiências estéticas como a que Carvalho utilizou em seu filme?

  • A estética diferenciada utilizada por Carvalho poderia ser usada não como mais uma fórmula de cinema artístico brasileiro e, sim, apontar para uma maior abertura do mercado brasileiro para a experimentação no cinema comercial?

  • O ritmo de "vídeo-clip ralentado" utilizado por Carvalho seria realmente uma inovação estética ou apenas uma outra faceta do cinema publicitário-televisivo que , apesar de se mascarar como novidade, reitera os valores de Qualidade Técnica da produção da televisão e da publicidade? Não seria Lavoura Arcaica um possível marco negativo da colonização da arte no cinema brasileiro pelos padrões de produção megalomaníacos trazidos pelo desejo de Qualidade Pura da produção televisiva/publicitária brasileira?

  • O alto "teor artístico" de Lavoura Arcaica não seria uma faca de dois gumes, podendo condenar esse tipo de experimentação artística a um isolamento dos chamados "filmes de arte" ? Isso é, terminando por ser estéril dentro do panorama geral de nosso cinema ? E mais: tentando estabelecer um padrão de qualidade para a produção do "cinema de arte" brasileiro?

  • Os elogios a Lavoura Arcaica baseados no virtuosismo da direção e da fotografia não podem simplificar a questão do filme à sua beleza estética e desatrelar o filme de seus efeitos éticos-estéticos e de narrativa? Por que se fala tão pouco dos sentidos do filme descolando-os de sua elogiada força estético-emotiva ?

  • Por fim, é curioso observar a força do discurso orgulhosamente autoral de Carvalho: essa valorização do diretor não como um criador em pensamento mas como um gênio artístico-desejoso, não nos remete às velhas e perigosas mitificações personalistas da figura do diretor mitificado? Não estaríamos voltando alguns passos atrás, ao tentar combater a massificação do cinema "em série" com o velho paradigma do cineasta genialmente controverso que se destaca na multidão de iguais ?....

O falso impacto é pior do que a calmaria. Assim como a retomada apática do sertão por filmes como Central e Eu, Tu, Eles enfraquece a potencialidade daquele espaço, a inventividade no cinema brasileiro não pode correr o risco de se limitar a frágil ruptura autista que Carvalho parece propor. Que a arte desse novo cinema brasileiro não se atenha à um modelo de belas imagens bem produzidas e a exercícios de fotografia virtuosos – não deixemos que o corrosivo paradigma da Qualidade também se cristalize de vez na arte cinematográfica brasileira. Seria o nosso cúmulo dos cúmulos se, além de nossa produção comercial homogeneizada, a ditadura da boa-aparência também recaísse sobre a experimentação de nosso cinema. O último refúgio de uma alternativa criativa para o cinema brasileiro não pode ser dominado pelos padrões estéticos da boa arte de nossa proto-industria. Dizer que o cinema artístico de Carvalho é um sucesso de público não pode correr o risco de se perder na padronização da "arte que pode dar certo" – e no enfraquecimento da criatividade do cinema brasileiro para sua submissão final aos meios grandiloqüentes de sua realização.

Felipe Bragança