As
Coisas Simples da Vida,
de Edward Yang
Yi Yi, Taiwan, 2000
O espelho que reflete
Os espelhos deveriam
refletir ao invés de reenviar a imagem, já dizia Jean Cocteau.
Yi Yi, para encurtar a história, desmente o poeta. Yi
Yi reflete. O filme conta a história da família de Nj,
um pai de classe média de Taipei, de seu irmão às
voltas com um casamento de obrigação, sua filha adolescente,
seu filho em vias de descobrir a sexualidade, sua esposa desamparada e
sua sogra em coma. Através desses personagens um bocado arquetípicos
e atualizáveis seja em que país seja em que tempo, o diretor
procura delinear um painel da Taiwan de hoje: globalizada, se assim se
quer, mas na verdade de fato ocidentalizada. Isso não aparece,
entretanto, como lição, positiva ou negativa: a lucidez
de Yang prefere não jolgar as imagens, deixar que elas tenham valor
por elas mesmas. Assim um menino que lancha saborosamente num McDonald's
quando não consegue comer sua refeição típica,
assim as referências a Bob Dylan, aos Beatles, a Cary Grant e Audrey
Hepburn. Não estamos mais falando de uma China primordial, objeto
de mito (O Tigre e o Dragão), tampouco de uma China totalmente
entregue aos ícones do consumismo (Nenhum a Menos), mas
de uma população que vive para debater-se entre duas culturas
que estão localizadas em sua raiz, já indissociáveis:
o ocidente americanizado e a tradição secular.
E é aí
que Edward Yang consegue demonstrar mais um de seus golpes de sutileza.
Da mesma forma que Felicidade e Magnólia são
exemplos moralistas e grosseiros de cineastas filmando estados-de-crise
de uma sociedade, Yi Yi sabe escapar da teleologia brutal que permeia
esses dois filmes americanos, e mais uma penca. Neste filme, não
há chuvas de sapo ou denúncias globais da infelicidade de
um povo, e muito menos uma solução por demais esquemática
(o é-conversando-que-a-gente-se-entende de Magnólia).
Há, isso sim, constatações de que as pessoas vivem
e cometem erros; e que eles não são cometidos por absurda
maldade ou covardia, mas por medo e inexperiência. Se Yi Yi
é sobre a crise de um país em conseguir um modo de sobrevivência,
ele sabe sê-lo sutilmente, com serenidade oriental. Para dizer que
algo vai mal, basta que a avó, o membro sábio e contemplativo
da família, caia doente. Logo depois, basta que o menino, aquele
que está mais passível às intervenções
do mundo exterior, comece a comportar-se de forma esquisita, fazendo perguntas
de gente grande ou, até mesmo, de conotação filosófica:
"Se a gente só olha pra frente, como é que a gente
pode saber mais do que 50% da verdade?"
Se a partir de então
o menino Yang Yang vai se municiar de uma máquina fotográfica
para tirar fotos das costas das pessoas para depois mostrá-las,
devemos ver nele um duplo diegético do cineasta Edward Yang, pois
é exatamente essa a sua tentativa em Yi Yi. O nome do filme
já denuncia: muito mais do que simplesmente "as coisas simples
da vida", o filme tem a ambição de tentar refletir
a sociedade onde vive, de trazer para ela a imagem dela ao avesso, de
costas, de ponta cabeça. Setecentos filmes poderiam se chamar As
Coisas Simples da Vida, mas não este: yi yi, um e um,
trata-se antes de uma crença firme no poder de criar imagem, de
acreditar que sobre a realidade (um yi) deve se comentar (outro
yi), ou, mais simplesmente, que um ato deriva do outro, e que este
novo ato irá ser derivado de um outro. Em uma palavra: consecução.
Assim, ao contrário
da linguagem de um filme sobre "as coisas simples da vida"
ou seja, uma câmera ágil, planos curtos, predomínio
do plano americano , Edward Yang realiza um filme opaco, em que
o visível adquire uma substância grande demais para que simplesmente
reenvie a mensagem. Esse efeito é conseguido por Yang ao
manter em diversas oportunidades um vidro transparente entre a câmera
e os personagens, conseguindo assim um apuro de imagem estupendo e ao
mesmo tempo utilizando esse efeito estético para demonstrar algo
que não é meramente "bonito". Incrível
talento o dos cineastas de Taiwan em trabalhar a luz para recriar um universo
pessoal, que destila uma beleza que não surge apenas para o deleite
visual, mas também e isso é o mais importante
contribui à compreensão inteira do filme. A câmara
distanciada, os planos alongados e sobretudo a opacidade fotográfica
do filme (da mesma forma que os planos seqüência e os filtros
na obra de Hou hsiao-hsien) fazem com que ele adquira uma consistência
rara, de obra cinematográfica e filosófica (assim como outro
gigante dos últimos anos, Eyes Wide Shut). Yi Yi,
ao fazer os vidros transparentes reenviarem as imagens, faz com a própria
imagem cinematográfica reflita.
Mas Yi Yi não
é um filme sobre adquirir sabedoria, ou um filme sobre os caminhos
certos para a sociedade. É antes um tratado sobre o erro, sobre
a inevitabilidade do erro. O filme é todo moldado a partir da recorrência
das experiências e dos erros constitutivos de qualquer aprendizagem.
Pois todos no filme estão de certa forma começando alguma
coisa: a esposa de Nj está transtornada pelo coma da mãe
e decide fazer uma temporada numa seita religiosa; o próprio Nj
reencontra a única mulher que amara até então, seu
primeiro amor, ao mesmo tempo que vê sua empresa aventurar-se num
negócio sem honra ou honestidade; a jovem Ting Ting ganha uma amiga
e sente-se atraída pelo namorado dela; o cunhado de Nj, que abandonou
um noivado sério e engravidou uma jovem frívola, além
de estar envolvido em negócios com amigos picaretas; e, por fim,
Yang Yang é a criança que em breve descobrirá a sexualidade
(ele vai para a escola com uma camisinha que pensa ser um balão,
ele vê por acaso a calcinha de uma menina), talvez precocemente,
e certamente encontrará os perigos da morte, uma vez que mergulha
na água (e a câmera nos faz pensar imediatamente em perigo
quando corta o plano sem que possamos ver o menino nadando ou ouvir qualquer
barulho seu).
O jeito com que Edward
Yang filma todas essas histórias de erros do presente e do passado
não tem nada de enfático ou de moralizante. Timidamente,
a câmera simplesmente registra, como Confúcio quando diz
"Observar e não julgar, Olhar e não intervir"
(citado muitas vezes por seu colega de geração Hou Hsiao-hsien).
Os personagens do filme são crianças, são anjos.
A câmera, todavia, não condescente com eles e muito menos
recusa. Ela mostra o erro e sua recorrência, não como pecados
ou como evidências acusatórias, mas como um ato de perfeição.
Quando Nj e Sherry, sua primeira namorada, se reencontram no Japão,
os dois relatam a experiência do primeiro encontro, o suor nas mãos,
a inexperiência, e finalmente a fuga do personagem masculino, por
medo do futuro, temor da responsabilidade ou falta de firmeza. Nesse mesmo
momento, um e um, yi yi, Ting Ting e Gorducho passam pela mesma
situação, idêntica em todos os aspectos. Ele foge,
da mesma forma que Nj uma vintena de anos antes.
Se é da atitude
da um verdadeiro amigo da verdade incorporar o erro dentro do processo
do conhecimento e colocá-lo em perspectiva, tirar o erro da interpretação
por demais idealista que deseja expulsá-lo da vida e passar a assumi-lo
como necessidade eventual de qualquer indivíduo e de qualquer sociedade,
Edward Yang é um desses amigos. Yi Yi nos ensina a não
ter medo do erro, a saber que ele é inescapável. O filme
se fecha, mais uma vez, numa declaração de erro é
o pequeno Yang Yang que faz um pronunciamento no enterro de sua avó,
em que diz que não conseguia dizer nada a ela porque achava que
ela já saberia tudo que ele contaria. Yang Yang termina seu discurso,
e com ele o filme, dizendo que se esforçaria em contar sempre coisas
que os outros não soubessem. Mais uma vez aí, encarnação
da figura do diretor Yang no menino Yang Yang, profissão de fé
na ficção, certeza de que ao contar uma história
contribui-se para o crescimento daqueles que ouvem. Afinal, o erro é
constitutivo mas quanto menos se erra, melhor.
Ruy Gardnier
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