X-Men
2,
de Bryan Singer
X-Men
2, EUA, 2003
Está tudo lá na tela. Bryan Singer alcança com esse
X-Men 2 um lugar de destaque entre os raríssimos cineastas
que souberam Ler (com maiúsculas letras...) o universo dos quadrinhos
de super-heróis norte-americanos. Chegando às telas brasileiras
logo após o equivocadíssimo Demolidor (outro personagem
Marvel), o filme é um verdadeiro peso-pesado do cinema hollywoodiano,
mesclando a monotonia e o encantamento típicos de seu poderio.
Do roteiro primoroso às caracterizações perfeitas
dos personagens e cenários, Singer rege a tudo como uma grande
ópera de vibrações e impactos, que vão das
sutilezas dos murmúrios de Noturno aos grandes arroubos de explosão
e movimento de Wolverine, costurados por frases chave para a conceituação
de seu universo. Um trabalho que leva ao máximo sua entrega às
ações dos personagens, numa decupagem de espaços
e pontos de vista dignos dos melhores momentos das HQs. MAGIA, essa palavra
tão desprezada por um certo refluxo iconoclasta de nossa contemporaneidade,
tem nas mãos de Singer (e dos milhões de dólares
torrados – e muito bem torrados) um breve momento de liberdade. Os gestos
das personagens, os modos de olhar, os tons de voz, cada palavra do roteiro
são peças de uma engrenagem de rara energia discursiva num
meio tão sem idéias quanto a hollywood dos anos 90/00.
Ao contrário
da horda de filmes de ação videoclípicos dos últimos
anos, Singer não se deixa levar pelos movimentos de câmera
frenéticos e sem motivações, pelas steadycams mirabolantes,
pelos sobrevôos "Matrixianos" que se tornaram fuga fácil
para a falta de talento – não, o diretor sabe pegar o caldo de
histórias, personagens e efeitos especiais e os moldar com a beleza
do heroísmo clássico da decupagem de ação,
dos exercícios de paralelismo, dos travaelling descortinadores,
das atuações épicas, da trilha grandiloquente. A
seqüência de abertura com Noturno é um marco no entrecruzamento
entre a invenção das HQs e as possibilidades dos efeitos
especiais norte-americanos (misto preciso entre a elegância de uma
decupagem consciente e o estardalhaço gráfico).
Cinema-montanha russa?
Nunca. Bryan Singer não se interessa em fazer de seu filme uma
celebração das cenas de ação como meros artifícios
para o famigerado "entretenimento" – em X-Men 2, cada
movimento de luta, cada batalha, cada ação ou uso de super-poderes
carrega o desenvolvimento dramatúrgico e o entremear narrativo
caro ao desenvolvimento conceitual do universo dos mutantes da Marvel.
Quando aparecidos
em meados da década de 60, os X-Men não representavam uma
multiplicação gratuita dos heróis de HQ pós-Homem
Aranha; seu sucesso retumbante estava diretamente ligado ao ineditismo
das questões que traziam para o universo dos super-heróis
da época. Questões que roteiro e direção souberam
tecer com maestria.
Ao contrário
do paradigma do Super-Homem (em que a luta por justiça é
o mote moral das ações de heroísmo), os X-Men marcam
a aparição de narrativas de super-heróis onde a luta
de resistência é a condição mesmo de
sua existência. No lugar do posicionamento do bem contra
o mal, as HQs dos mutantes focavam não o universo dos workaholics
defensores da ordem (Clark Kent), mas o espaço das disputas políticas
dos grupos dissidentes dos padrões de beleza e comportamento médio
norte-americano. Numa sociedade em que igualdade de direitos muitas vezes
se lê como homogeneização de comportamentos, figuras
bizarras como Noturno, Mística e Wolverine aparecem como um novo
lugar do heroísmo até então inexplorado.
"Bob, será
que você poderia tentar não ser um mutante?" – pergunta
a mãe ao Homem de Gelo no filme, pedindo para que o filho faça
o impossível. Ser mutante não é opção
moral, não é escolha a ser julgada por outrem – ser mutante
é condição de existência do próprio
ser apontado (e temido como diferente). Mística, a personagem que
se morfa e poderia de disfarçar num ser-humano de aparência
comum, é taxativa ao explicar o porque não optar por uma
aparência permanentemente bem aceita por todos: "Porque não
deveríamos ter de fazer isso." Essa é uma questão
primordial em X-Men: os heróis são justamente parte daquele
grupo que é visto como grande ameaça. E o grande desafio
de suas vidas não é derrotar o mal, mas construir, por assim
dizer, um outro bem possível. Um lugar onde suas vidas adversas
possam se dar, se livrar das segregações e misturar à
vida dos "outros".
"Chegou a hora
daqueles que são diferentes lutarem juntos" – diz a poderosa
campanha publicitária espalhada em outdoors, numa mirada que deixa
claro o espaço ocupado por aqueles heróis bizarros: eles
não são o modelo de conduta para a sociedade onde vivem
(a cena de selvageria de Wolverine diante dos soldados e dos olhares assustados
de seus colegas, deixa claro o despudor de Singer quanto a isso), eles
não são modelo de aparência, nem tem certeza absoluta
da bondade de suas ações (Tempestade expressa sua raiva
numa conversa com Noturno). Nem mesmo entre seus líderes há
clareza de suas intenções: a dupla Professor Xavier/Magneto
metaforiza a grande "amizade" entre os ideais de libertação
racial do pacifista Mathin Luther King e do combativo Malcom X. O primeiro
lutando por um espaço novo para sua vida, o segundo pregando a
superioridade dos mutantes sobre os demais e a guerra inevitável.
No entrecruzamento entre as ações de ameaça de Magneto
e as tentativas de Xavier de promover a vitória pacífica,
está o campo de questionamentos de suas entrelinhas.
Há um equilíbrio
frágil nas ações dos personagens e a opção
por colocar a agressividade de Wolverine alinhada aos pacifistas deixa
clara a proposta ambígua de seu discurso. O desfecho do filme nunca
será uma vitória definitiva dos X-Men, pois seu interesse
nunca está no abatimento do outro (o "mal"), mas na possibilidade
de criação do novo. Os mutantes uniformizados não
lutam em defesa da ordem já dada, mas pela possibilidade de criação
de uma outra. Eles são justamente os outros, aqueles que o presidente
dos EUA teme, aqueles sobre quem o governo norte-americano emprega uma
política "preventiva" de aprisionamento para a defesa
do "modo de vida que conhecemos."
As ações
estatais de opressão e organização da sociedade numa
lógica asséptica de segregação também
estão no alvo das críticas do roteiro – e as falas do comandante
Stryker (que ganha poder à medida que o medo aumenta e a guerra
se aproxima) são de impossível desassociação
aos gestos políticos da Era Bush. O medo do diferente, tão
presente na cultura norte-americana nos dias de hoje e sempre, o medo
do vizinho desconhecido que pode esconder uma ameaça...
Tudo gira em torno
da imagem dos mutantes: que podem estar em qualquer lugar, que podem ser
qualquer um...até mesmo um filho. A metáfora da mutação
é a metáfora das constantes invenções de modos
de vida, que podem até dar super-poderes a alguns poucos mas que
não representam (como gostaria a política de Magneto) que
os novos seres sejam superiores aos demais. Assustador por vezes, o desafio
se lança ao futuro como objeto caro a ser observado – e o roteiro
é habilidoso em costurar essa expectativa: "Vamos estar de
olho em você", diz o Wolverine de Hugh Jackson.
Bryan Singer não
termina seu filme com um final feliz idealizado, mas com uma promessa
ainda não cumprida de novas práticas políticas cotidianas.
Diante desses grandes desafios, os X-Men aparecem como aqueles que lutam,
como aqueles que não se escondem, mas que enfrentam a fraqueza
de quem os teme com a nobreza rara de sua vontade de existência.
De inventar um lugar que não seja a derrubada do "outro"
(e aqui, colocar o ser-humano como esse espaço do fora é
um dispositivo de auteridade notável) mas a construção
de novas formas de interação entre as diferenças.
Entre as diferentes resistências.
Como afirma o Professor
Xavier ao perplexo presidente norte-americano (prestes que estava de proclamar
medidas extremas de combate aos mutantes): "Nós viemos para
ficar". Esperemos que sim.
Felipe Bragança
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