Vivendo
no Limite,
de Martin Scorsese
Bringing Out The Dead, EUA, 1999
Patricia
Arquette e Nicolas Cage em Vivendo no Limite
OS
FANTASMAS DE DEUS
Desde o começo da década,
ou seja, desde Os Bons Companheiros, o cinema de Martin Scorsese
deixava de ser um mergulho radical dentro dos fantasmas individuais e
sociais de personagens à procura de redenção para
ser mais um reavivamento de preferências e estilos do diretor. Vimos
como Scorsese gostava de Visconti e podia ser belo fazendo filmes semelhantes
(A Época da Inocência), vimos como ele prestava tributo
aos filmes que o criaram (Cabo do Medo), vimos ele como mestre
e parasita de seu próprio estilo, para o bem e para o mal (Cassino)
e por fim vimos a diluição de um estilo com o estranho e
inócuo Kundun. Podia-se pensar num diretor já em
sua plena maturidade e que, dessa forma, não teria mais contato
com a parte seminal de sua obra, e que seus filmes seriam mais a purificação
de um estilo do que a eterna reconstrução desse próprio
estilo (e do autor mesmo, por tabela). Vivendo no Limite, ou Bringing
Out The Dead / Ressuscitando os Mortos, traz de volta Scorsese
ao terreno mais árido de sua filmografia, ao seu terreno preferido
de cinema, em que tudo se ganha ou tudo se perde. E como sempre no cinema
de Scorsese, de Caminhos Perigosos a After Hours, tudo se
ganha.
Estamos em Nova York, no Hell's
Kitchen, espécie de lugar desprivilegiado na capital do mundo.
Os habitantes são cosmopolitas: vemos uma pregadora asiática
falando contra os pecadores, negros, mulatos, brancos e mestiços
num regime esquizofrênico de queda e redenção. Nesse
quadro impressionante se encontra Frank Pierce, paramédico do hospital
mais barra pesada da região, que trabalha no turno da madrugada.
A vida de Pierce e isso se reduz a seu trabalho está
rodeada de fantasmas, fantasmas de todos aqueles que Pierce não
conseguiu salvar, emoldurados na pele de Rose, uma menina de 18 anos com
aparência vietnamita que Cage não conseguiu salvar por ineficiência
devido ao provável alcoolismo. Pierce não consegue salvar
ninguém a meses, e sua vida parece ressentir-se disso mais do que
qualquer outra coisa.
É Pierce quem narra o
filme inteiro, e cada imagem parece saída do diário que
existe na sua cabeça. O que vemos são literalmente os fantasmas
dele, e a onipresença da menina Rose na tela. Ser paramédico
para Pierce é a chance de por um momento poder restituir a vida
e ser Deus, mas o bom Deus do Céu e não o mau Deus dos Infernos
que tira a vida das pessoas. O filme todo se construirá nessa dialética,
no intervalo em que é dada a passagem de um ao outro, e a redenção
sempre intramundana, jamais transcendente será dada
no momento em que Pierce finalmente conseguir purgar seus fantasmas. Trata-se,
pois, de um movimento terapêutico, de uma verdadeira cura pelo reconhecimento
de que se é humano e que não se pode acertar sempre
deve-se também ser o Deus dos Infernos.
Quando o filme começa,
já vemos Frank Pierce na ambulância, com seu parceiro, indo
atender a uma chamada. É um homem que acaba de sofrer parada cardiáca.
Nos momentos de perigo e de urgência, o filme é sempre mudado
para a câmara subjetiva, que apresenta o olhar do paramédico.
Vemos as escadas dos prédios, como são sujas e como o tempo
de cada segundo é valioso. É a casa da família Burke.
Depois de alguns choques, uma das cenas vitais do filme. O barulho da
ambiência pára, os sons extensivos (da rua, dos objetos)
param para dar entrada aos sons intensivos, no caso os da mente de Pierce:
os fantasmas dos mortos, que passaram a se comunicar com Frank. Não
se trata de um filme espírita: é, isso sim, um filme panteísta,
uma dimensão em que os mortos comunicam com os vivos e tudo parece
imantado. Depois do momento intensivo, Pierce pede à família
que coloque alguma música que o velho Burke gostava. Quando o Sinatra
começa a tocar, um novo batimento irrompe de um coração
que já fora dado como morto. É Pierce como Deus da Vida,
mas não totalmente, porque o velho está em coma, é
preciso levá-lo ao hospital. Assim, Pierce ganha uma interlocutora
privilegiada para exorcizar seus demônios: Mary Burke, filha do
velho e a quem ela não dirigia uma palavra a anos. Ela também
é uma digna filha da Cozinha do Inferno, com problemas familiares
e com drogas, mas que parece já ter tudo resolvido.
Como se trata da obra de um
mestre, vemos que todo filme é feito a partir da perspectiva da
redenção. A luz está sempre pronta a explodir, deixando
sempre um tanto de tela superexposto: é a perspectiva da Luz, da
luz divina que chama. E é um achado. O encaminhamento da história,
o corte temporal é
também um primor: começamos a ver um Pierce que perde as
esperanças e entrar quase num mundo delirante que é
expresso de forma cinematográfica pela aceleração
da metragem, pelo estouro da luz e pela música agitada do primeiro
Clash. Se essa parte é a mais frágil do filme porque apenas
metafórica e mimética, é contudo necessária
ao final: Pierce salva um homem e deixa outro morrer. Ele deve passar
até o outro lado de sua miséria, purgar o bem e o mal de
sua prática para poder encarar a sua vida sem fantasmas. Ele salva
um louco e um traficante mas deixa um velho morrer para aliviar sua dor.
Não há teatro do absurdo em Martin Scorsese. Trata-se, isso
sim, do ponto de vista do humano demasiado humano que quer converter-se
em Deus onipotente presente em toda a obra do diretor. Mas, ao
contrário de toda a filmografia de Scorsese, o paramédico
Pierce encontra sua redenção intramundana, consegue encontrar
seu caminho para continuar vivendo. Trata-se não mais de negar
o mundo a partir de um ponto de vista de Deus, mas prová-lo e aceitá-lo
em suas idas e vindas, com direito a um bom descanso. E, depois de purgados
todos os fantasmas, depois da absolvição de Rose/Mary Burke,
é que finalmente Pierce pode encontrar um ombro e, enfim, dormir.
Vivendo
no Limite é uma obra como não mais se esperava de Scorsese,
uma obra de um diretor que do alto de sua mestria resolveu arriscar e
foi bem sucedido. Se o filme em momentos (poucos) desaponta, é
antes em função desse jogo arriscado que é trazer
um tema complicado à tela e fazê-lo evoluir. E a coragem
de Scorsese isenta qualquer problema pontual que o filme possa ter. Antes
mergulhar até o fundo do mar e vir à tona trazendo pérolas
e lama do que permanecer à superfície tolamente queimando
ao sol. É o que faz a diferença entre uma experiência
e um exercício. Fiquemos com a experiência, sempre. E ainda
mais se tratando de um filmaço commo Vivendo no Limite.
Porque é um filme que, antes de ressuscitar os mortos, ressuscita
a si mesmo e a seu autor.
Ruy
Gardnier
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