Viva São João,
de Andrucha Waddington

Brasil, 2002

Santa ignorância!

Ao contrário da postura de "documentarista profissional" (normalmente adotada por Lula Buarque de Holanda), Andrucha constrói seu filme em cima de uma saudável e criativo desconhecimento de causa. Mais interessante do que toda a linhagem de "documentários bem-embasados" da produção Conspiratória, Viva São João é uma bela surpresa ameaçada pela mesmice.

Repete a fórmula recorrente de utilizar Gilberto Gil como uma espécie de mestre de cerimônias. Um mestre de cerimônias verborrágico, exagerado e excessivamente explicativo, o que faz do filme, em alguns momentos, uma monótona seqüência de declarações reducionistas: "O nordeste é isso, o nordeste é aquilo..."

A quase incapacidade de Gilberto Gil em ouvir seus entrevistados muitas vezes chega a um certo ridículo, como no momento em que tenta definir os motivos pelos quais Gonzagão teria saído de sua cidade. Chiquinha Gonzaga, encurralada pelo falatório, concorda lacônica.

Se dependesse dessa estrutura (Gil-entrevista-personagem), o filme com certeza seria um fracasso. Mas Andrucha dribla essa ameaça com uma solução bem simples: Criticado por focar o filme nas músicas e nos shows de Gilberto Gil, Andrucha faz justamente desse recorte, a maneira de transformar seu "mestre de cerimônias", num personagem genuinamente participativo.

São os shows de Gil (sozinho e com seus parceiros de estrada) que funcionam como o verdadeiro convite ao espectador a um universo que vai muito além do falatório e da bela fotografia. É no palco, ali, que Gil se transforma em expressividade. É no modo de se relacionar com aqueles sons, com aquelas palavras, que Gil se torna cinema. Gil no palco torna-se Gil vivo, deixa de lado a voz da filosofice e do antropologuês.

Intercalando passagens energéticas de músicas e sons, com uma costura um tanto maçante de depoimentos explicativos e imagens maquiadas (como a daquele falso show, sob a luz do pôr-do-sol, com Gil, Marinês e Dominguinhos), Andrucha consegue aos poucos encaminhar seu filme para aquilo que tem de melhor.

Com uma montagem de ritmo eficiente e não estereotipado, Andrucha aos poucos desiste da incompetência de Gil como entrevistador e faz dele o participante observador que de fato é. Com um dos mais belos 20 minutos do recente documentário brasileiro, Andrucha Waddingtron presenteia o espectador com ao menos dois tesouros de cinema:

O balé de espadas-de-luz protagonizado pelos moradores de uma pequena cidade nordestina. A ausência de Gil e a presença dos moradores: luzes dançando no escuro da cidade, a câmera que tenta acompanhar o acaso dos movimentos, os sons crispantes dos fogos. Não há nenhum comentário, nenhuma grande interpretação. Vemos um homem fazer as espadas, vemos os homens brincando feito meninos. Um deles tem seu braço queimado por uma espada. Vendo o braço enegrecido pela fuligem, ele explica: "Não tem problema, não. É mais uma lembrança para o ano que vem..."

Em seguida, vemos um circular completo de 360o de caatinga, silenciosa, quieta. Sobre ela, ouvimos a voz rouca de Gil, quase engasgada, falar aos poucos sobre o tal do "sertão". Diga-se o que se disser sobre seu discurso, mas é impossível não se paralisar diante do modo como sua voz (e em seguida sua imagem) torna-se intima daquele espaço. Sua dificuldade de falar, ele, tão verborrágico, exprime sua queda do papel de MC para de verdadeiro personagem. "Saudade", diz Gil, dedilha um pouco o violão. O que antes era pose armada e fria, provavelmente pensada para um depoimento definitivo, torna-se vida e imagem no titubear alegórico da voz cantor. "Não tenho mais palavras..." termina Gil. Como um ator de improviso, Gilberto Gil supera todas as outras passagens do filme; e o espectador agradece a sutileza (e o talento) de Andrucha Waddington em nos mostrar esse momento.

Se em Eu, Tu, Eles, o dirigismo ficcional de Andrucha tornava o filme um tanto asséptico e distanciado, em Viva São João, o diretor faz de Gil seu alter ego expressivo, sua ponte eficiente para o universo sertanejo: o artista da alta classe carioca que traz na saudade sua infância nordestina. O filme termina sendo ("aos 45 do segundo tempo", é verdade) um belo retrato do caminhar de Gilberto Gil sobre aquele espaço nordestino, e não um tratado totalizante sobre o "São João".

Uma grata harmonia entre a vivência e a observação. O melhor filme de Andrucha Waddington.

Felipe Bragança