A Vida em Cana,
de Jorge Wolney Attala

Brasil, 2001


A relação de prêmios internacionais endereçados ao documentário A Vida em Cana é exibida antes do início do filme com propósito claro: serve para nos induzir a engolir a obra sem mastigar as imagens. É como se a aprovação pelo controle de qualidade dos festivais servisse para nos inibir a possibilidade de uma congestão ao digerir o resultado. Pois coloquemos as pedras no lugar. As premiações concedidas a esse trabalho diz menos sobre seus méritos e mais sobre como os estrangeiros querem ver o Brasil. Suponhamos que reconheceram, por meio dos depoimentos de bóia-frias projetados na tela, a revelação de uma verdade. A relevância estaria, então, na função social. Parecem não terem levado em consideração qual a importância estética e o valor ético da manipulação do material filmado e do objetivo político ao qual serve. Onde há verdade nesse jogo de interesses? Ela está escondida de forma tão canhestra que, por incompetência da realização, acaba se revelando desastradamente. A Vida em Cana não revela uma realidade, portanto, mas apenas sua própria razão de existir.

Avancemos pelo final. No desfecho de A Vida em Cana, um letreiro explica a meta do filme. O diretor Jorge Wolney Attala lamenta a aprovação, para colocação em prática a partir de 2015, de uma lei ambiental que proíbe o corte manual da cana. A mecanização da atividade mataria uma tradição cultural, a do bóia-fria, e criaria efeitos sociais nocivos em pequenas cidades rurais. É como se o progresso inventasse um problema inexistente e a situação atual do bóia-fria fosse próxima da ideal. Pois será para nos transmitir essa impressão, por meio de uma suspeita seleção de depoimentos, que o filme optará por caminhos pouco confiáveis. A maioria das entrevistas nos ensinam que os entrevistados preferem cortar a cana a fazer outra coisa da vida. Isso seria reflexo da falência de organização política do proletariado rural ou fruto de uma manipulação do diretor para valorizar posturas adequadas à suas metas? Qual a metodologia adotada para se veicular esta e não aquela entrevista? Qual o valor de sua amostragem para a questão do bóia-fria? Há como levar a sério esse painel?

É inegável que, como o filme assume em algumas passagens, olha-se para fora. Perguntas a anônimos americanos sobre a origem do açúcar explicitam o didatismo direcionado à atenuar a ignorância dos estrangeiros em relação às coisas da periferia. Há até uma lição sobre técnicas de queimada, de modo a expor a beleza do arcaico e, assim, satisfazer a sede por exotismos do Primeiro Mundo. Há poesia no atraso, nos diz as imagens. Para júris de festivais, compostos de seres urbanos e bem alimentados, a conclusão é reconfortante. O corte de cana passa a ser visto como a saída para quem não tem aptidão para mais nada. Essa máxima do conformismo – "poderia ser pior" – ditará o tom do filme. Ele chega mesmo a embrenhar-se pelo espírito de celebração evidenciado pela música "alegrinha". "Pelo menos distrai a cabeça e não tem gente mandando", diz uma adolescente. "Coisa melhor não vou conseguir", diz outro entrevistado. Falta apenas alguém dizer, à moda dos programas evangélicos exibidos na TV, que "a cana salvou minha vida".

Chega-se perto disso, de qualquer maneira. Os depoimentos giram em torno de trajetórias movidas pela condição de miséria social. Não há individualidade. Apenas tipos cuja existência está reduzida ao trabalho no canavial e às suas biografias infestadas de derrotas e desgraças. O tempo dado aos depoimentos impede a elaboração de uma narrativa. Interessa apenas mostrar como aquela gente sofre e compensa o sofrimento com o trabalho digno na terra. Ganham uns trocados, têm mãos calejadas, exibem a pele tostada de sol, mal sabem escrever, mas isso é detalhe. Colher cana é um alívio para aquelas almas soltas no mundo. Elas têm direito até para dançar forró e tomar pinga nas folgas. Vida mansa, falta um letreiro concluir.

É indisfarçável o odor do populismo e demagogia quando o filme se mostra orgulhoso de "descer até o nível inferior de seus personagens". Porque o tratamento é de cima para baixo, da classe dominante olhando para a dominada, mas tendo peninha dela e, como está na moda, dando-lhe direito à imagem. Pouco importa se essa imagem e se a edição do discurso de cada um seja manipulado pelo olhar de cima. A grandeza humanista está em tratar os de baixo com simpatia. Para nos levar a ter arrepios de emoção, e nos convencer de como a condição do bóia-fria é legítima, explora-se uma musiquinha sentimental. No lugar da denúncia, ou da reflexão, temos o apelo sentimental. Politicamente, apesar de toda a despolitização, impera a miopia. O bóia fria deixa de ser sintoma de subdesenvolvimento, um efeito da enfermidade social, para se tornar a cura para esse subdesenvolvimento. Quando alguém diz que passou a vida nos canaviais, é possível ver o filme sorrir de felicidade, como a nos dizer que uma vida dessas só pode ser exemplar. A Vida em Cana despolitiza tudo. Sua noção de inserção e cidadania está na possibilidade de comer no McDonalds. Cidadão é quem pode consumir. Consciência política é se saber incapaz de ter dinheiro para comer o Big Mac. Ahan!

Cléber Eduardo