Uma
Vida em Segredo,
de Suzana Amaral
Brasil, 2001
Sabrina Greve contra Suzana Amaral
Quer um certo raciocínio que um cinema
pessoal deve repetir as mesmas temáticas e os mesmos traços
estilísticos afim de compor uma obra consistente e de valor. Quer
este mesmo raciocínio estar associado ao que se chama de "cinema
de autor". Mas não está. Não necessariamente.
Volta e meia os circuitos de coerência da obra não passam
pelos simples critérios de temática ou estilo, ou então
passam cruzada e complexamente, com variáveis mais difíceis
de serem observadas, e não sem grandes polêmicas (como integrar
História Real e Mulholland Drive, por exemplo...).
Suzana Amaral, no entanto, deve se ater ao raciocínio acima: as
linhas gerais de Uma Vida em Segredo apresentam inúmeras
semelhanças com as de seu longa de estréia, o belo A
Hora da Estrela. Não podemos fazer exercício de adivinhação
muito menos psicanálise estética, mas provavelmente a diretora-revelação
dos anos 80 acreditou que trilhar os mesmos caminhos do primeiro filme
faria certamente um êxito artístico semelhante: adaptação
de um autor forte de nossa literatura, um retrato intimista de uma mulher,
evocação da vida de roça, ingenuidade e pureza...
A escolha, dessa vez, recaiu em Autran Dourado, escritor mineiro que está
longe de ter o renome de Clarice Lispector, apesar de também ser
bastante prestigiado.
Se a adaptação literária
é comumente utilizada no cinema brasileiro para desculpar qualquer
falta de arte dentro do filme, ao menos Suzana Amaral está livre
desse filão em Uma Vida em Segredo assim como esteve em
A Hora da Estrela: seu filme não vampiriza o livro, e há
pouco ou nada de "literário" no andamento do filme. Se
hemos de buscar a razão pela qual o segundo filme de Suzana Amaral
não emociona nem agrada, deveríamos procurar antes nas tramas
do próprio filme: em nenhum momento fica clara a motivação
(ou sua ausência) da doce Biela, assim como jamais saberemos para
onde o filme nos quer levar porque provavelmente o filme se esqueceu que
nos deveria conduzir. Do estado mental de Biela, só vemos a recorrente
figura de um monjolo, cujo bater e escoar da água lha trazem toda
a memória de sua primeira casa (e seu único lar), a Fazenda
do Fundão. De sua fisionomia, porém, vemos muito: sempre
frágil, impassível, quase autista, Biela é uma figura
quase beckettiana, que se movimenta pouco, e quando se movimenta é
sem sentido, a esmo. Sabrina Greve, mesmo estreante, sabe compor perfeitamente
seu papel com uma força e uma cinegenia poucas vezes vistas no
cinema brasileiro recente, ainda mais quando os exemplos que encontramos
são os de possíveis sex-symbols (Mariana Ximenes, Simone
Spoladore), quando Sabrina Greve responde a tudo menos a esse perfil.
A história da literatura moderna já
nos deu muitos heróis (ou anti-heróis) sem ação,
ou de ação falha. Em Kafka, Musil, Döblin, Beckett
e muitos outros a ação é inexistente ou inútil.
Personagem semelhante, a Biela de Uma Vida em Segredo não
consegue assumir nenhuma condição dentro do filme, e muito
menos se alçar à dimensão filosófica que atingem
alguns personagens da literatura do século XX. Longe da mestria
narrativa dos mestres e de seu cuidado com as palavras, Suzana Amaral
ainda demonstra um débil manejo da expressão cinematográfica
(teria desaprendido?). Poucas vezes terá havido no cinema brasileiro
decupagem tão esdrúxula quanto a de Uma Vida em Segredo,
perdendo o raccord e cortando no mesmo eixo de plano médio
para primeiro plano, quebrando o ritmo de cada cena importante de diálogo
e tirando a atenção do espectador. Na decupagem ou na montagem,
a palavra final é a da diretora. Esta, autoral segundo quer um
certo raciocínio, ao repetir seus temas e preferências, acabou
resultando num mar de erros primários e uma narrativa sem hierarquia
dramática (ou afirmação veemente da ausência
dela, como nos filmes mais radicais). Muito contrário ao mar de
Sabrina Greve, um mar de rosas. Contida no filme, dona de seus movimentos,
ela merece mais que o triste destino de Biela, aculturada pela nova família
e colocada sem rumo ou significado pela mão pouco hábil
de Suzana Amaral. Que o futuro a reserve melhores papéis, que ela
há de aproveitar!
Ruy Gardnier
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