Houve
uma Vez Dois Verões,
de Jorge Furtado
Brasil,
2002
Hitchcock sempre contava a anedota do roteirista que no meio da noite,
durante o sono, formava as melhores idéias para uma história,
as mais inovadoras e sofisticadas, mas que logo pela manhã se esquecia
de tudo. Pois um dia o tal indivíduo resolveu levar um bloco de
notas para cama, tentando registrar uma eventual inspiração.
Na manhã seguinte, ao acordar, se deparou com que tinha escrito
: "Rapaz se apaixona por moça."
Talvez Jorge Furtado
não tenha tido a idéia de Houve Uma Vez Dois Verões
na calada da noite, mas é certo que o tema desse seu primeiro longa
se resume a isso: uma história de amor. Um tema tão velho
quanto o próprio tempo. Um tema atemporal e universal. Um tema
simples. E uma puta quebra de vocação. Eis o velho Jorge
dos curtas complexos e políticos, o cineasta engajado de Ilha
das Flores e de Dorival, das metáforas de Ângelo,
do meta-cinema do Sanduíche se lançando, sem medo
e sem pudor, numa comédia romântica adolescente. Um bom indício
para que os alarmistas de plantão preparassem de antemão
seu pré-julgamento. Mas é claro que qualquer alma inteligente
sabe que uma proposta arquiconhecida pode, sim, produzir alguma sensação
nova, algum acréscimo válido, que seja.
Que se diga, então,
que Houve Uma vez Dois Verões não é um filme
comum. É um pouco mais do que isso, embora também nem tanto.
Not Another Teen Movie, dizendo melhor, se for pra pegar a palavra teen
no seu sentido mais baixo. Certo, há uma evidente tentativa do
cineasta de buscar um público, uma cumplicidade; tudo bem, a trilha
sonora (muito da moda, indo de –argh- Papas da Língua à
–argh- Patu Fú)) pode ser mesmo meio chatinha, com hits da Atlântida
poluindo cada cena; OK, os fetiches adolescentes se acumulam em todos
os diálogos - mas nada aqui, porém, é excessivamente
enfático ou apelativo. Há uma clara tentativa de comunicação,
de integração até, o que é muito diferente
do arrivismo comercial. Jorge quer mesmo é fazer um espelho -senão
crítico, ao menos caloroso - desse espírito teen. E consegue,
graças a ajuda inestimável dos atores.
Mais do que tudo,
e talvez essa seja sua maior qualidade, Dois Verões é
um filme sincero, muito espontâneo, que resgata um pouco a efervescência
dos primeiros filmes da geração Casa de Cinema, lembrando
um Deu pra Ti ou um Verdes Anos, para citar outros filmes
adolescentes cheios de defeitos compensados por uma energia imponente.
Sem dúvida, as circunstâncias da filmagem ajudaram muito
a desenvolver essa concepção de cinema. Concepção
que remete à velha e boa sensação de arte coletiva,
ao divertimento partilhado, como alguém que diz: "vamos fazer
um filme" enquanto uma turma pilhada se reúne. E é
nesse embalo que Jorge pega o que a adolescência tem de melhor:
a necessidade de expressão à qualquer custo.
A opção
pelo digital aparece providencial nessa proposta; os atores estão
soltos, os diálogos fluem, nada daquela teatralidade sórdida
tão conhecida do viciado cinema gaúcho de diálogos.
O próprio diretor, aliás, parece embarcar nesse clima juvenil,
com uma vontade de criar destemida, mandando ver numa narrativa original,
um off inspiradíssimo (o melhor do filme) e alguns artifícios
corajosos que dão ao filme sua dimensão poética (a
falsa lua na praia, os closes nas cartas, efeitos graciosos que com outros
cineastas poderiam soar pesados ou indigestos). E talvez seja essa poesia
que faça de Dois Verões um pouco mais do que um filme
comum. A cena em que Chico encontra Roza (com "z") pela primeira
vez, por exemplo, e que seu reflexo aparece no vidro do flipper, é
maravilhosa e digna do melhor Furtado.
O flipper, por sinal,
é um elemento fundamental no filme, sendo usado quase como um símbolo
épico de uma busca existencial, ou de um mágico divisor
de águas do destino (Chico diz : "quando bati o recorde nos
patos, entrei em êxtase"; ou "é loucura pensar
que se não fosse o jogo dos patos, não teria encontrado
Roza e não teria tido um filho"). Essa tentativa de Furtado
de dar a elementos da sub-cultura teen um valor poético é
realmente emocionante. Assim como a sensibilidade dos olhares (tanto André
quanto Ana Maria, a dupla principal, são ótimos no "olhar"
e sabem interpretar sem falar), a honestidade dos sentimentos e algumas
outras "cositas" mais.
Pena, no entanto,
que a partir do seu último terço comece uma pequena crise
inspiradora no filme, aparecendo um real problema de roteiro. Nesse momento
a impressão é de que Furtado não sabe mais para que
direção levar sua história. O humor parte para o
leve besteirol e o riso gratuito como, por exemplo a cena clichê
do apartamento, com direito a esconde-esconde debaixo da cama e um dialogo
entre Chico e Roza no telefone que deveria ter muito mais intensidade
dramática do que o diretor e os atores conseguem dar. Além,
é claro, da idéia das três menininhas gritando na
escada – aí, essa cena remetendo ao que Furtado tem de pior. Tentando
injetar um sopro de vida pela via do burlesco, o cineasta acaba infelizmente
mais próximo de American Pie do que de Lubitsch. Mas a questão
é que nem o HappyEnd meio forçado (parece cair de pára-quedas)
tira o interesse desse filme imperfeito e cheio de vontade de provar que
a simplicidade pode ser a coisa mais complexa que existe. Assim como quando
um rapaz se apaixona por uma moça.
Bolívar Torres
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