Um
Anjo Trapalhão,
de Alexandre Bhoury
e Marcelo Travesso
Um Anjo Trapalhão,
Brasil, 1998-2000
Este filme talvez represente
um dos maiores desafios para um crítico, porque apresenta uma possibilidade
tão grande de aproximações. Seja a partir do tema,
da estética, do modo de produção. Ele é singular,
e acima de tudo, importante, pois pode estar se colocando como exemplo
primeiro de alguns processos que podem vir a ter presença numérica
grande no cinema brasileiro futuro, e por isso mesmo devem ser muito bem
entendidos.
Já é um projeto estranho por
ser um "filme" do Didi, mas que só existe porque este
ano Renato Aragão decidiu não fazer filmes. Um filme que
começa pela ausência. Quando começaram a sair matérias
no jornal dizendo que este ano teríamos poucos lançamentos
infantis, a Globo parece ter resolvido aproveitar o espaço (que
logo se revelaria ilusório, com Xuxa decidindo filmar a toque de
caixa, e uma série de lançamentos americanos), e decidida
a não gastar muito, podendo lucrar bastante, requentou um produto
antigo: um especial de Natal de Renato Aragão, feito sem qualquer
pretensão a ser exibido nos cinemas. Simplesmente, kinescopou-se
(passar de vídeo para película) uma cópia deste especial,
sem tirar nem pôr, e colocou-se nos cinemas como uma "homenagem
a Renato Aragão". Renato dispensaria a homenagem, é
certo.
O que acontece é que o sucesso avassalador
do Auto da Compadecida criou este vácuo de conhecimento,
onde o que antes parecia certo (algo já exibido na TV não
faz sucesso no cinema), já não é mais. A importância
de Um Anjo Trapalhão é histórica justamente
por ser a primeira resposta da Globo a este fenômeno. Um primeiro
teste, digamos assim. Será que todo produto requentado vale? Aparentemente,
pela resposta de público, a resposta foi não, pois ele pouco
compareceu. Um fracasso que não dói muito, como se disse,
pois afinal o filme estava pago desde que foi exibido com anunciantes
na TV. O parco investimento no lançamento deve ter zerado, ou dado
um prejuízo aceitável como experiência. Cabe aos cineastas
brasileiros perceberem que é o momento, portanto, de fazer a contraproposta.
É claro que a idéia de filmes lançados na TV e cinema
é ótima, pois aumenta os meios de lucro. Agora o momento
é de mostrar o que se deve produzir, e quais os diferenciais da
linguagem do cinema. Se Guel Arraes planejava desde o início o
Auto para os cinemas, este especial de Didi nunca ousou pensar
em sair da telinha. E o resultado, ampliado tantas vezes na telona do
cinema, é bem óbvio.
Tudo começa com a parte estética,
pura e simples. Gravado em vídeo, e kinescopado sem qualquer preocupação
(ou possibilidade técnica, a checar) com a qualidade, o filme parece
o que na verdade é: uma péssima projeção em
vídeo. As cores não têm qualquer definição,
há inúmeros takes com "fantasmas" magnéticos,
e os ambientes ficam todos "lavados". Primeira lição:
para lançar em película, favor filmar em película,
ou no mínimo com processo de finalização condizentes.
O público não quer pagar R$5 ou R$10 para ver uma má
televisão. Para isso, fica em casa, e vê de graça.
Em segundo lugar, o desenvolvimento narrativo.
É lugar comum falar da relação de atenção
e identificação completamente diferentes que um espectador
de TV ou um de cinema tem com os dois meios. Na TV, especialmente no Natal,
você tem os comerciais, a ceia, os parentes. Portanto é conveniente
o mínimo possível de trama ou sentido, o máximo de
imagens fortes, e um andamento que pode ser menos centrado, pois a dispersão
do espectador é natural. Ao transpor exatamente isso para o cinema,
o resultado é um filme sem ritmo, sem empatia, sem trama, sem relação
nenhuma com o espectador. Isso se sente claramente na platéia,
seja a de crianças, seja a de acompanhantes. Quando Didi, em uma
ou duas cenas, solta seu potencial cômico e de "gags",
há um momento de euforia, mas logo isso é sufocado pelo
excesso de boas intenções e morais do filme.
Por último, a linguagem em si. É
bem verdade que este especial foi filmado buscando um "verniz" cinematográfico,
tão na moda hoje, como se isso fosse um atestado de qualidade.
O trabalho dos cenários, da fotografia, os movimentos de câmera
(há momentos em que a grua parece estar sendo descoberta agora,
de tanto que é usada), até mesmo o tema e seu desenvolvimento
inicial, deixa clara uma certa busca da tal "linguagem cinematográfica".
No entanto, esta é muito maior do que apenas trazer alguns cacoetes
imagéticos. Guel Arraes é um exemplo de como usar o cinema
(película) e impôr uma estética televisiva, o que
fazia muito mais sentido, no caso do seu filme. Neste aqui, há
uma dicotomia entre uma tentativa frustrada e rasa de "fazer cinema"
para a TV. Acaba sem conseguir ser um nem outro.
Isso tudo dito e criticado, o que me parece
importantíssimo num momento de indefinição das relações
entre TV e cinema, a verdade é que o Anjo Trapalhão
tem muito mais méritos que um Xuxa Requebra, por exemplo.
Que este seja mais bem sucedido é até óbvio, pois
seus realizadores são especialistas nisso mesmo: marketing e vendas,
enquanto os realizadores do "filme" de Didi cometem todos os
erros já citados. Mas, pelo menos, no quesito que me parece o principal
de julgar o sucesso de um filme infantil, ou seja, sua adequação
ao público, o que se propõe a passar e discutir, mil vezes
o Didi. Que, com sua ingenuidade quase antiquada, é menos nefasto
que a modernidade malandra da rainha dos jabazinhos, dos comerciaizinhos,
das vendinhas. Em Um Anjo Trapalhão não se vende
nenhum produto, não há bandas cantando para marketear seus
CDs, nem há adolescentes abobalhados. Há uma tentativa tropeçante
de contar um edificante conto natalino, onde se enxergam todas as boas
intenções (critica-se o consumismo, a corrupção
política, o "americanismo", o falso assistencialismo;
prega-se a ajuda ao desfavorecido, o sonho infantil), ainda que encenadas
de uma forma débil e excessivamente moralizante, que pouco atrai
as crianças de hoje. Há até mesmo alguns elementos
perturbadores inesperados (como o alcoolismo, a presença de uma
personagem louca bastante estranha, o trabalho com a idéia de uma
cidade "esquecida por Deus"), mas que são mal usados,
como de resto é até mesmo o talento maior de Didi, o de
ser engraçado. Aqui aparece mais o embaixador da UNICEF que o comediante,
e isso só deve ser lamentado.
Mas, atenção: com todos os
seus defeitos e fracassos, não tenham dúvidas, o Anjo
Trapalhão está sendo friamente analisado na Globo. Eles
vão aprender com os erros, e mudar os produtos. Cabe a todos tentar
influenciar de alguma forma que seja em busca de algo que não o
sucesso de Xuxa, mas uma nova fórmula com uma ligação
mais humana entre cinema e TV.
Eduardo Valente
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