A Última Ceia,
de Marc Forster

Monster's ball, EUA, 2001


Em A Última Ceia surpreende antes de tudo a lógica serial: três gerações de homens na mesma família que tentam se moldar um pelo exemplo do outro: ser oficial de polícia, odiar os negros, manter para consigo mesmo um rigor de homem-de-pedra, misoginia... a lista é grande. A cena que abre o filme já torna tudo um pouco explícito: uma mulher se despe – trata-se de uma prostituta, descobrimos logo –, fala friamente com seu cliente e, inclinando-se numa janela, posiciona-se de costas para um ato sexual meramente ritual, sem desejo ou ao menos a purgação de demônios. O filho é à imagem do pai, que é por sua vez à imagem de seu pai. É o prolongamento da herança macho, do homem branco forte e empreendedor. O projeto de A Última Ceia é, então, de desfazer a série, de quebrar os códigos masculinos de honra que povoam o imaginário dos personagens do filme.

E como provar do próprio veneno senão no seio de sua própria família? Quando Hank e seu filho devem encaminhar um prisioneiro para a cadeira elétrica – a pena de morte não é um dos temas do filme, e isso parece problemático –, o aprendiz de homem-de-ferro tem uma recaída e passa mal em frente ao pai e a todos os colegas de corporação. Erro fatal: o filho cai em desgraça, é surrado na mesma hora, segundo uma lógica implacável ("Você acaba de estragar a última caminhada de um homem. Você gostaria que sua última caminhada fosse estragada também?) que não dá espaço para erros ou sensibilidade fora de hora. Na volta da execução, filmada entre o documental e o exploit, a família desaba. Hank expulsa o filho de casa, e admite que jamais o havia amado. O filho toma as rédeas da discussão apontando uma arma para o pai, mas é em si mesmo que ele desfere um tiro certeiro, fatal.

A partir daí, Hank vê a lógica de seu mundo destruída: o elogio do rigor que ele supunha redentor fôra no fim a ruína de sua família. Então ele abandona a farda, compra um posto de gasolina e se apaixona por uma mulher negra, coincidentemente a esposa do homem que ele havia encaminhado à cadeira elétrica. Sob esse aspecto, A Última Ceia segue estritamente a lógica kantiana de seu personagem: não há um forte problema moral nisso, como policial ele estava apenas cumprindo seu papel, just doing my job. Mais complicado é o processo de tomada de consciência de Hank (porque A Última Ceia é acima de tudo um filme sobre a tomada de consciência), que só é desperta a partir da morte de um filho – ou seja, tem derivação emocional e personalista, como o polêmico Pra Frente Brasil de Roberto Farias. A abjeção de uma moral ortodoxa demais só pode ser compreendida a partir do momento que ela invade a própria casa.

A falta de problematização da posição dupla de Hank entre o algoz e amante – na cena final, Halle Berry descobre o antigo trabalho de seu novo amado e o aceita sem qualquer necessidade de discussão, just doing his job – circula um pouco em torno do obsceno, do moralmente inaceitável. Mas o que surpreende mesmo é a narrativa esquemática de um melodrama edificante que já dá de antemão todos os lances do filme, nos deixando como único interesse o trabalho de atuação notável do par de protagonistas que são Billy Bob Thornton e Halle Berry. Na primeira cena de enlace amoroso, os dois sabem mostrar todos uma força incrível, com o relógio pendendo para Thornton, que com poucos gestos domina os olhos do espectador mais do que todas as caras e bocas de sua parceira. Mas essa é só a exceção: a regra é de um filme que funciona em primeira marcha, impassível e sem sangue como aliás Hank, que sustenta no filme inteiro o olhar de um cabrito resignado indo para o abatedouro. Inclusive, o ideal de felicidade do filme não é outro: um casal que repovoa emocionalmente suas vidas e pode olhar as estrelas, longe de todo o resto do mundo.

Ruy Gardnier