Os
Três Zuretas,
de A. S. Cecílio Neto
Os Três Zuretas,
Brasil, 1997
Existe algo de muito errado,
eu já escrevi uma vez nesta revista, quando um filme como Os
3 Zuretas leva três anos para ser lançado no Brasil.
E pior, quando lançado recebe o tratamento indiferente de distribuidora,
crítica e público que acabou acontecendo. É sempre
chato um mundo maniqueísta onde há heróis e vilões,
e isso Cecílio Neto sabe bem. Mas, há momentos em que precisamos
escolher os nossos e certamente no meu mundo, Os 3 Zuretas é
o mocinho e Xuxa Popstar o bandido. Em tudo projetos absolutamente
distintos, começando pela gênese (o filme de Cecílio
é um projeto pessoal de um artista, enquanto o de Xuxa é
uma encomenda comercial de um produtor), passando pelos filmes e o que
afirmam, e chegando ao resultado final (os 2 milhões de espectadores
de Xuxa contra os poucos mil de Os 3 Zuretas). Não se vai
aqui tratar mais do filme de Xuxa, porque para isso já temos o
texto de Juliano Tosi na revista. Mas também criticar o filme de
Cecílio sem mencionar esta oposição inicial é
impossível.
O parente mais próximo
do filme de Cecílio no cinema nacional infantil seria O Menino
Maluquinho de Helvécio Ratton, mas mesmo neste caso é
preciso fazer uma distinção: Maluquinho é
um autêntico filme infantil, voltado principalmente para este público,
enquanto Zuretas segue o caminho contrário. É muito
mais um filme sobre a infância, que também pode ser assistido
(prazerosamente pelas sessões que pudemos presenciar) pelas crianças.
O olhar de Cecílio é o olhar de um curioso com dois objetivos:
relembrar uma infância que quase não existe mais e, ao mesmo
tempo, tentar ver qual os componentes específicos deste ser estranho
que é a criança. O que difere ele de saída dos outros
filmes todos é que ele não pode deixar de ver na infância
uma certa maldade, uma certa crueldade tipicamente infantil. Não
há como negar este componente, embora possa vê-lo como uma
ingenuidade, muito mais que um mal. Mas, como não cabe a Cecílio
julgar valores desta forma, a noção de mal sequer importa
tanto. Neste sentido, o título original do filme (e que nos créditos
percebe-se que continua valendo), A Reunião dos Demônios,
se adequava muito melhor ao filme. A troca de títulos foi uma concessão
ao lançamento do filme, mas para ser mal lançado assim fica
a pergunta se não era melhor deixar o outro título.
Ao contar a história
de 3 amigos numa cidade do interior paulista, Cecílio toca em inúmeros
temas sérios como a separação dos pais e seu efeito
na criança, as relações raciais e sociais na família
brasileira, a morte, o princípio da descoberta da sexualidade e,
acima de tudo, a fantasia de poder típica da mente de todas as
crianças. O principal é que não faz isso didaticamente,
mas sim através da inserção de elementos ao longo
da trama. Uma trama que se diferencia também da comum aos filmes
infantis, pois não há um vilão, nem uma tarefa a
ser cumprida, uma vitória a alcançar. Trata-se tão
somente da descrição de um período de férias
no interior, aonde os acontecimentos vêm da rotina, e é nesta
que se encontra a poesia. Não há a necessidade da trama
por si só, do enredo, há sim a delicada construção
de situações que se encadeiam.
Com ênfase, sempre,
na maldade infantil como apenas mais um componente deste quadro. Para
isso há um plano específico belíssimo no qual vemos
com uma lente macro o lento andar de uma lagarta, e parece que o filme
estaria ali advogando uma certa "beleza natural", a fascinação
da natureza, quando um dos meninos vem e pisa na lagarta, esmagando-a.
O que, aliás, qualquer menino já fez, mas que nos tempos
ecológicos de hoje pode soar como um absurdo. Na mesma linha há
meninos rezando para um hipotético "demônio", xingando
um deficiente mental, desejando a morte do professor. Há, resumindo,
toda a naturalidade de desejos de quem ainda forma seu código ético
e moral, e que lutam para entender o porquê da maldade em certos
atos tão naturais. A partir da vitalidade dos meninos há
um momento ainda mais "perturbador", no qual o avô volta
a fumar, inspirado pela alegria de viver dos moleques. Sente a necessidade
de menos regras. Imagine isso nos filmes "antitabagistas" de
Xuxa... É bem verdade que este avô morre no final, mas não
é estabelecida uma relação de culpabilidade. Tanto
pode-se admitir que ele morreu por ter se privado por tantos anos do prazer
quanto pode-se ver a morte dele como um símbolo da necessidade
do mundo adulto de viver dentro das regras, e que só as crianças
têm a permissão divina de não as viverem, então
por favor, não atrapalhem.
Entre tantos outros aspectos
do filme-poema de Cecílio há de se perceber mais um importante:
a sensação nostálgica que perpassa o filme todo,
através da trilha sonora principalmente, mas também desta
infância de rua, de interior. Mas há uma nostalgia maior,
pelos tempos onde se podia ser criança de fato, sem as regras e
imposições da modernidade, sem a "adultização"
estúpida do consumo. Onde, ao invés da Xuxa, o herói
era o vovô, e ao invés de desfilar com a Xuxa o momento de
alegria suprema era dormir no colo dele. Tempos de bola de gude e de banho
de rio, mas também de escorpião e estilingue, porque não.
Esta sensação de "tempo melhor" Cecílio
recria muito bem, com um pé admitido no cinema de Humberto Mauro,
citado algumas vezes em cenas onde o monumental da paisagem parece se
sobrepor aos personagens, onde a câmera se afasta destes para enquadrar
uma grande e frondosa árvore. Os 3 Zuretas estabelece a
diferença entre o cinema infantil e o cinema infantilizado. E dá
saudade do tempo em que ser criança podia ser mais do que ser consumidor.
Eduardo Valente
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