Trem da Vida,
de Radu Mihaileanu


Train de Vie, Romênia/França, 1998

Train de Vie é uma comédia no sentido dramatúrgico do termo: em vez de seguir uma estrutura dramática, em que protagonista é desafiado por antagonista, na busca de um objetivo, ele subverte este sistema. Essa afirmação pode parecer a frase de um louco para qualquer um que assistiu ao filme, porque nos lembramos facilmente dos protagonistas (os judeus da aldeia) que tem um objetivo (chegar à Palestina), e que são atrapalhados pelo antagonista (os nazistas mesmo, ou o sistema de erros do filme). Mas não é exatamente essa a questão do filme? O de uma afirmação de louco que se constitui como narração possível (e real, em vários sentidos)?

Cabe explicar esse primeiro parágrafo. Para quem já assistiu ao filme, ele é um duplo, tem sentido e carece dele. Quem já o viu pode se lembrar do final e entender o que quero chamar de "afirmação de louco" e "real em vários sentidos". Ao mesmo tempo, também, quem assistiu também se lembrará que realmente o filme não subverte tanto a estrutura dramática assim. Quem não viu o filme pode começar a entendê-lo agora.

É que trem da vida é sobre o papel do narrador. Inteligentemente bem urdido como roteiro, o filme é uma comédia (no começo um tanto sem graça, é verdade, mas que depois, sobretudo quando o comunismo entra em sua pauta, muito engraçado) que mostra uma comunidade que se orienta pelas idéias (geniais!) de um louco. Vemos o estranho Schlomo (interpretado com certos excessos benignianos e teatrais pelo dublê de Renato Aragão Lionel Abelanski), personagem mais que qualquer outra coisa, confessamente um ponto fora da curva (por isso se fica com certa sensação de "como é que eu não notei?" no final da história) do certo realismo (absurdo é verdade) do filme.

Schlomo é o lugar da própria geração da história. Personagem ao mesmo tempo que narrador (em duplo sentido, descobriremos), vai compondo a inverossímil saga de personagens que se esvaziam o tempo todo, trocam-se como máscaras vazias: rabinos vestidos de nazistas que, ao fazer o papel, um pouco "germânicos" se tornam (o melhor personagem do filme, aliás, é o de Mordehai, o "major nazista" do trem), alunos da Torah que se convertem ao materialismo histórico, ciganos que prestam culto à suástica. Tudo em um espetáculo de perda de lógica que vai além do fantasioso, além do disfarce, que só se justifica por ser um discurso de louco, afinal, a idéia de produzir um falso trem de deportação foi do insano Schlomo, aquele que é louco porque "alguém tinha que ser o louco".

A inevitável crítica que o filme faz à humanidade, ao mostrar a fragilidade das máscaras que a história e a demarcação política impõem se fecha perfeitamente em uma questão existencial. É na cena de sua colocação, aliás, que o filme mais fortemente dá uma pista a respeito de si mesmo: o rapaz sem juízo, no meio de uma briga entre os materialistas e os religiosos, a respeito da existência de Deus, lança a crucial questão sobre quem inventou quem, Deus e o homem. A grande pergunta, para ele, não é se Deus existe, mas se o próprio homem (no fundo, para ele, criador de Deus, uma vez que o escreveu na Torah) existe. Mais que uma questão metafísica, é uma questão narrativa: ele, Scholomo, Deus daquilo tudo, autor da idéia do trem, criador de toda aquela saga (e dono de cada uma das idéias que vão resolvendo os embates com o "antagonista"), pergunta a suas criaturas (aqueles que seguem sua história, sua idéia de louco) se elas existem de fato. Deu-lhes (deu-nos?) uma dica. Em breve saberíamos.

Um filme sobre o humano, sem dúvida. Mas não o que se possa dizer de mais tolo, não sobre o que possa ser um debate em torno do direito à liberdade de culto ou mesmo de vida (como geralmente são filmes sobre holocausto. Aliás, Radu Mihaileanu é um pouco tolo ao processar Roberto Benigni por plágio. O filme do italiano nada tem a ver com o seu. Não tem, aliás, metade da inteligência, ou da graça, do seu Train de Vie). O filme é sobre o humano no sentido de que ele mesmo, humano, é uma invenção, ao limite, de si mesmo, assim como o filme.

Alexandre Werneck.