Tratamento de Choque,
de Peter Segal

Anger Management, EUA, 2002

Psicopatologia da vida cotidiana

Não é preciso ter o dom da observação muito afiado para compreender que o cinema americano mainstream ainda está milhas à frente do cinema dito independente, em quase todos os aspectos que se queira. Mas em um, ao menos, a ficha não poderia ter caído ainda: a da observação sociológica/psicológica sobre personagens e/ou comunidades desajustados(as). Enquanto as produções assinadas Miramax gramavam para construir uma dramaturgia dos pequenos conflitos com um certo verniz cult e intelectual (destinado sem dúvida às crescentes populações universitárias adeptas dos "estudos sociais"), o cinema americano de estúdios continua fazendo o que sabe e sempre fez muito bem: tomava as mesmas preocupações sociais e/ou existenciais e as inseria em gêneros cinematográficos em que seus temas pudessem ser trabalhados palatavalmente para o grande público. Não é apenas uma questão de business e de quanto dinheiro entra em caixa: é antes o respeito a uma tradição e a convicção de que a catarse coletiva ainda é melhor do que as piscadelas do happy few, de que os gêneros, os clichês e os códigos do cinema americano ainda são capazes de produzir sentidos que, se não propriamente novos, ainda são instigantes e possivelmente perturbadores.

Tomemos Tratamento de Choque, dirigido genericamente (no sentido dos remédios, mas também no dos gêneros cinematográficos) por Peter Segal. A primeira tendência seria, por tratar-se de um filme em que Adam Sandler vive uma crise de nervos, compará-lo a Embriagados de Amor e deplorar como o filme não tem assinatura comparado aos derivativos efeitos de assinatura de PT Anderson, ou então demitir-se da crítica ao atentar para a falta de especificidade de algo a ser comentado ("é um filme igual a todos os outros"). Ou, pior ainda, chocar-se com os momentos de mau gosto de uma comédia grosseira. Entretanto, há algo acima de tudo isso que os comentários apressados não tocam, e que faz toda a graça dos gêneros muito codificados do cinema americano, e de seus melhores representantes em particular – e Tratamento de Choque, sem dúvida, é um deles. Essa graça é a adesão causada pelos efeitos de crença nascidos dessa relação de respeito/desrespeito aos códigos narrativos dos gêneros cinematográficos. Há filmes que se apropriam dessa expectativa dos espectadores para jogar tudo para o alto (Estrada Perdida, Mulholland Drive), mas há aqueles que fazem dessa crença um outro uso insidioso, subterrâneo: jogar com a crença do espectador para fazê-lo entrar e participar de um estranho circo comunitário de questionamento dos valores sociais. Tratamento de Choque tem esse aspecto grego de coletividade: para conseguir a resolução de uma questão individual, toda a cidade é investida, do especialista ao magistrado, da esposa ao coro grego (aqui representado por uma platéia de baseball). Peter Segal, esperto, aproveita a deixa para colocar toda a filosofia do sucesso à americana no divã. Ou, ao menos, num círculo de cadeirinhas em uma sala de terapia de grupo.

Ao começo do filme, Adam Sandler é um profissional que encontrou sua posição. Um pouco do lado de baixo, é certo, mas assume uma função executiva numa grande empresa, tem uma noiva linda e a previsão de um futuro sem grandes atribulações. Um porém, no entanto: nosso pobre herói toma a defensiva ao entrar em toda e qualquer possibilidade de controvérsia, evitando todo possível conflito que possa surgir. Uma situação banal fará com que ele seja sentenciado a um período de um mês (mais tarde dilatado a três) em terapias de controle de raiva. O problema com a personagem de Sandler não é tanto o de saber controlar suas explosões, mas antes saber como fazê-las nascer num homem acostumado a ser subserviente. O elogio do conflito interpessoal vindo de um país ultimamente tornado tão consensual em tempos de "guerra" já é sem dúvida uma razão forte para considerar Tratamento de Choque.

Mas há razões mais interessantes pelas quais Tratamento de Choque merece ser visto. A primeira, e mais decisiva, é o modo como o filme desenvolve a relação entre paciente (Sandler/David Buznik) e médico (Nicholson/Buddy Rydell). Longe do ineditismo mas igualmente longe do clichê sem força, uma verdadeira terapia – e a conseqüente "cura" de Sandler – só será possível se Jack Nicholson se instalar literalmente em sua casa, dormir em sua cama, provocá-lo de todas as formas, instigando situações e evocando sensações da mesma forma que um diretor de cinema se dirige a seu público. O processo terapêutico não se dá in vitro, isolado numa sala que tenta reconstruir um processo simbólico nascido da palavra, mas antes nas ruas, câmera na mão, personal psychological trainer. Análise selvagem que visa não a adequar seu paciente dentro do seio da sociedade em que vive (mal ou bem, mais instalado e adequado do que Sandler no começo do filme, impossível) mas antes a "desadequá-lo" de todas as situações a que está acostumado a submeter-se, Tratamento de Choque assinala um testemunho importante e uma voz dissonante no discurso da terapia global contemporânea: no mundo de hoje, a tarefa de medicina mental é mais reinstaurar o ânimo do que fazer o paciente conformar-se com sua sina. A terapia como processo acelerador de partículas, uma boa imagem.

Ruy Gardnier