Paralelas e Transversais
Carga Explosiva, de Corey Yuen
Mata-me de Prazer, de Chen Kaige


The Transporter, França/EUA, 2000
Killing Me Softly, EUA, 2000

Da dificuldade de se fazer um filme "B"

O leitor curioso se pergunta o porquê de esses dois filmes estarem como que linkados pela escolha de um "paralelas e transversais". De saída, ele já pensa: naturalmente, trata-se do primeiro trabalho de dois diretores chineses em terras roliudianas. Corey Yuen, diretor de filmes de ação e comédia em Hong Kong desde os anos 80 (na verdade, os dois gêneros nunca estão muito separados), é contratado inicialmente pelos grandes estúdios americanos para fazer coreografia de lutas, e com Carga Explosiva tem sua primeira chance como diretor fora da ilha chinesa. Chen Kaige, por sua vez, é um diretor mais conhecido internacionalmente, figura fácil de festivais, autor do premiado Adeus Minha Concubina. Mas os percursos param por aí. Enquanto o cinema de Corey Yuen é industrial e de gênero, os filmes de Chen Kaige fazem parte da reestruturação da cinematografia de um país comunista se abrindo ao mercado e à sociedade de consumo. Mas o que une os dois filmes não é a procedência de seus diretores. É um assunto completamente diferente. É como realizar filmes de gênero com orçamentos médios, atores subalternos e lançá-los como opção aos grandes lançamentos da semana. Ou seja, o filme "B", geralmente seguindo um formato bastante preciso e atrelado a um gênero conhecido de todos, com seus códigos, suas leis, enfim.

Como funciona um "B"? Uma situação básica se instaura. O espectador de primeira a associa com uma infinidade de vezes em que já viu coisa semelhante. Sua experiência prévia de cinema colabora com a trama, de forma que com quinze minutos de filme ele já sabe exatamente o que vai acontecer. Resta ao roteirista não ser absolutamente previsível e ao cineasta achar soluções criativas para que o espectador tenha vontade de assistir novamente àquilo que ele já sabe de cor. E, acima de tudo, vale uma regra que permeia toda a tradição do "B": jamais levar a trama tanto a sério de forma que pareça algo como um tratado filosófico ou algo que nunca foi dito antes. Soa falso. O "B", por essas características, se transformou na casa por excelência de uma série de cineastas experimentadores e criativos que, tentando fugir do mimetismo e do psicologismos reinantes nas grandes produções hollywoodianas, encontraram refúgio num tipo de cinema que está até inconscientemente impregnado de história do cinema (por ser sempre auto-referente, mesmo sem querer) e que permite, apesar de estar ligado sempre a uma fôrma (um gênero) e uma forma (um roteiro), uma liberdade com encenação e efeitos expressivos (de direção, de montagem, de trabalho com atores) que nenhuma outra forma de cinema industrial dá. Assim se comportaram, nos anos áureos, cineastas como Roger Corman, Jack Arnold, o grande Jacques Tourneur. Um possivelmente único herdeiro sistemático de hoje: Joe Dante.

A enxurrada de diretores e técnicos que veio de Hong Kong para trabalhar nos EUA depois de John Woo facilitou o caminho: o maneirismo aos poucos volta a dar as cartas na produção americana (a ver Baz Luhrmann, Tim Burton...), o estúdio volta a ser usado contra o naturalismo e em prol da criatividade e o realismo volta mais uma vez a ser colocado em cheque. Tsui Hark (fazendo dois Van Damme), Jackie Chan, Jet Li, Chow Yun-fat, todos mudando sensivelmente a forma de fazer cinema de ação "à americana". Na vez de Corey Yuen, nada fenomenal, mas também nada medíocre.

Carga Explosiva é um curioso híbrido de produção francesa (roteiro e produção de Luc Besson) com know-how iânque e maestria chinesa. Um falso filme bobo (afinal, existe o tema sério de trabalhadores escravos chineses sendo transportados ilegalmente em contêineres por um grande empresário) que primeiro nos é vendido como um exercício de estilo e um elogio do trabalho bem realizado – na fascinação que evoca o trabalho do tal "transportador" do título original e a maneira com que conduz sua vida estoicamente, isolado do mundo numa bela casa de litoral. Ele faz justamente seu trabalho. Ex-militar altamente treinado, ele é exímio em transportes mas faz questão de ter todo seu trabalho explicado a ele de antemão. Faz sempre trabalho sujo, mas sem ter que em nenhum momento sujar as mãos. Como não associar essa persona vivida por Jason Statham como o elogio do artesão perfeccionista que é o próprio Corey Yuen?

Mas enfim, esse "transportador" exemplar num belo dia faz o que não devia: abre um pacote que devia ficar fechado em seu capô. Encontra uma belezinha chinesa, ou melhor, Shu Qi, notada anteriormente em Millenium Mambo de Hou Hsiao-hsien. Salvando-a da morte, ele relembrará de seu passado louvável lutando por nobres causas e, atendendo aos apelos da moça, salvará à la Stallone os pobres imigrantes chineses ecravizados em contêineres. Mas Corey Yuen não liga tanto para a intriga. A história, para ele, é apenas um modo de prender a atenção do espectador para que ele não se desinteresse pelas cenas interessantes do filme, as partes de ação coreografada nas quais o diretor se especializou (é um contratado de Hollywood para fazer às vezes somente esse trabalho). E, quando o negócio é movimentação e filmar corpos em choque, Corey Yuen entende do riscado. As peripécias de Jason Statham, de besuntar o chão e o próprio corpo de óleo para escapar do toque de mais de dez capangas até a intriga final em cima de um caminhão é uma das mais excitantes seqüências do cinema nos últimos meses. Tanto mais quanto completamente desvencilhada do resto da trama. O tempo pára com a única finalidade de fazer-nos ver a habilidosa montagem que esquadrinha cuidadosamente o espaço cênico para depois fazê-lo interagir com milhões de bonequinhos se mexendo e tentando acabar uns com os outros. A boa regra de Corey Yuen: sei o que quero, sei que é modesto mas sei como consegui-lo.

Pensamento semelhante foi tudo o que Chen Kaige não teve. Aos poucos, o diretor de Adeus Minha Concubina foi perdendo o destaque que tinha no começo da década e transformou-se no cineasta oficial da China continental. Acadêmico em um lugar, acadêmico em todos. Deve ter sido esse o raciocínio dos produtores americanos ao chamarem-no para dirigir essa mistura insossa de conto sexual e suspense indoors, esse estranho híbrido de Henry e June com Dormindo Com o Inimigo travestido de Segundas Intenções. Obviamente, não era para ser levado a sério. Vejamos: mulher com uma vida sexual e amorosa desgastada (Heather Graham, belo corpo mas pouquíssima presença na tela) encontra estranho na rua. Depois de vacilar por instantes, reencontra-se com ele e a partir daí os dois passam a viver intensos momentos de sexo. Mais tarde, ela abandona o homem com que vive para casar-se com o novo amante, que é um grande alpinista e envolveu-se recentemente num acidente que custou a vida de uma namorada e de mais cinco pessoas. Só que começam a chegar cartas: "Ele não é confiável". Uma jornalista recebe uma acusação de estupro. Por sua vez, ele (Joseph Fiennes, o mesmo canastrão de sempre) se mostra cada vez mais dominador nos jogos de sexo e sedução. A crônica amorosa-sexual se transforma em jogo de gato e rato.

Obviamente, era o caso para um drama rasgado ou para um suspense picareta. Chen Kaige, por inexperiência com o formato americano ou sabe-se lá por quê, preferiu os dois, e criou um dos filmes mais não-intencionalmente engraçados do ano. Engraçado à medida em que tenta criar climas de suspense à maneira dos filmes de terror (trilha sonora para dar sustos, sombras, perseguições) quando o espectador já está por demais atrelado à trama do casal para aceitar que de uma hora para outra o filme dê um giro para uma fórmula tão previsível. A partir daí, a trama passa a assumir feições tão rocambolescas (perseguições no metrô, entrada em cena de uma irmã, seqüência final num cemitério [!!!]) que qualquer explicitação psicológica maior cai na mais pura e simples gargalhada. Chen Kaige tinha nas mãos um perfeito "B" – ainda que desajeitado, dava para fazer um filme simpático –, mas achou que estava fazendo um grande "A". De uma história idiota, achou por bem tentar criar grande arte e se esqueceu da "pequena" arte, aquela de criar climas, ritmos e cenas envolventes nas quais o espectador queira se perder, mesmo a intriga sendo a mais banal. Não fez. E ainda entregou um filmeco que termina com uma bela moral: "Se você tem um casamentinho morno, não vá tentar esquentar sua vida sexual se seu fogão não tolera certas temperaturas". Lamentável.

Ruy Gardnier