Dia de Treinamento,
de Antoine Fuqua

Training day, EUA, 2001


Para pensarmos em como lidar criticamente com este filme precisamos responder uma velha pergunta que atormenta os fãs conscienciosos de cinema há muito tempo: a opção ideológica em uma cena pode jogar fora o trabalho de um filme todo? Na minha modesta opinião pode, especialmente se esta cena é o final do filme.

Há tempos eu vejo filmes com a seguinte tese: os primeiros cinco minutos são essenciais (ao ponto de eu NUNCA entrar atrasado num filme) porque ali o diretor propõe as regras do seu jogo ao espectador (mesmo que seja para quebrá-las depois, ele precisa impô-las primeiro). Ele apresenta suas cartas que o espectador vai ou não comprar. Igualmente importante são os últimos momentos de um filme, porque queiramos ou não, é ali que abandonamos nossos personagens. Mesmo num tipo de cinema que não se centre em personagens, ou que o faça mas com o desejo de um final aberto ou não-finalizante, ainda assim a opção deve ser feita: com que imagens e sons deixamos o espectador voltar ao mundo fora da tela?

Por isso para mim é muito grave quando um filme renega tudo o que fez ao longo da sua duração no final, uma vez que o final recontextualiza automaticamente tudo que foi exibido antes. São inúmeros os filmes que cometem este pecado, ainda mais no cinemão americano onde muitas vezes é retirado dos diretores o direito de escolher o seu final. Mas, honestamente, isso não me é importante porque o que podemos julgar, comentar, repercutir, é o filme que nos apresentam. Se a opção final é do diretor ou do estúdio pode ser motivo para discutirmos as políticas pessoais e institucionais, mas o filme continua lá e só pode ser julgado pelo que está na tela.

Isso tudo para dizer o que a estas alturas já é óbvio: o final de Dia de Treinamento praticamente anula tudo que seu diretor havia conseguido fazer até ali, e que não era pouca coisa. E, pior, não é uma ceninha rápida ou um diálogo equivocado: são algumas longas sequências muito bem pensadas para fechara a narrativa. Mas, não coloquemos o carro na frente dos bois. Primeira coisa: o que havia sido conseguido até ali?

Para começar, Antoine Fuqua filma excepcionalmente bem. Seu filme exala energia, charme, e hipnotiza o espectador. Para fazer isso ele mistura três ingredientes essenciais: primeiro, direção de atores e elenco excepcional (e neste ponto, vamos adiantar logo: Denzel Washington mais do que um excelente ator é uma presença magnética impressionante); depois, conhecimento de causa, ou seja, ele filma os ambientes nos quais penetra com muito cuidado, muita propriedade, e entendendo os códigos específicos de comportamento; e, por último a capacidade de pegar um tema absolutamente atual (a corrupção policial, a dificuldade de manter uma postura "coerente" ou "limpa" perante as complexidades do mundo das ruas e do crime), e usar a urgência dele com inteligência e sem subestimar as nuances.

A partir daí, ele vai construindo sua narrativa com algumas cenas excepcionais (em especial pensamos nas conversas entre Washington e Hawke no carro, na investida dos dois na casa de uma mulher seguida de tiroteio na rua, e no encontro de Washington com seu filho "bastardo"), até um clímax onde sua questão é exposta no máximo de suas contradições. Há ali um diálogo realmente antológico entre os personagens que parece colocar uma pá de cal em qualquer possível moralismo, que contextualiza todas as "virtudes" de Hawke tanto quanto todos os "vícios" de Washington. Imagina-se que o filme termine ali.

Ele dá um passo a mais, porém, que num primeiro momento até parece positivo, pois trata-se de uma outra cena ótima, no contato de Hawke com três criminosos latinos. Ao final desta, porém, é que o filme deslancha seu final aterrador. Jogando por terra tudo que ele parecia estar construindo até então, sabe-se lá se por medo de que o espectador saísse temeroso e cheio de dúvidas quanto a sua própria segurança nas ruas ou se por puro cabotinismo mesmo, ele constrói uma verdadeira "caça às bruxas", na qual o personagem de Washington é julgado e condenado como o próprio demônio, indigno tanto da pureza de Hawke quanto da dignidade dos criminosos. Numa cena tão inverossímil quanto capciosa, ele é espancado e humilhado, nos parece que para sublimação e tranquilização do espectador.

Mas, vai-se mais adiante ainda, e chegamos a um catártico grand finale com direito a uma cena de metralhamento que faz a clássica de Poderoso Chefão parecer modesta. Uma insanidade, um completo desacordo que obedece ao moralismo mais barato que o filme parecia se posicionar frontalmente contrário.

Aí, pode ficar a pergunta: mas se são tão contrários, será que não representam de fato dois olhares, um o do diretor e o outro o do estúdio. Francamente, não faz a menor diferença. Quando for acusado numa corte de arte, Fuqua pode se defender. Mas, aqui, importa o filme, que joga fora tudo no que parecia acreditar com sua "catarse para as massas". O filme soa como se um Secretário de Segurança discursasse por duas horas sobre a complexidade da construção do crime e da corrupção e na necessidade de compreender seus mecanismos e soluções possíveis, e no final para coroar, fuzilasse em praça pública alguns bandidos e policiais, para deleite do público que podia estar assustado com o que ouviu. Pensando bem, esta não é uma cena das mais incomuns, especialmente no Rio de Janeiro. Não fica nem um pouco menos odiosa num filme hollywoodiano. Belo discurso, mister Fuqua, mas seus atos o contradizem. Pena.

Eduardo Valente