Traffic,
de Steven Soderbergh


Traffic, EUA, 2000

A primeira coisa a saber sobre Traffic é que o diretor Steven Soderbergh assistiu a O Informante, de Michael Mann, e ficou maravilhado. Talvez ele também tenha assistido a Amores Perros e também tenha achado interessante colocar um México com luz estourando todas as cores, ressaltando apenas a forte cor de tijolo que predomina no filme. O negócio é que Traffic (que a distribuidora teve a covardia de não converter para Tráfico, por não considerar de bom tom) se movimenta sempre pela lei do clichê, do estereótipo, do modelo fácil de caracterização.

A segunda coisa a saber sobre Traffic é que o cinema americano de hoje está sabendo cada vez mais esconder com esperteza o profundo reacionarismo que há em suas bases, trazendo temas-tabu e, assim, dando a impressão de afrontar o senso comum quando na verdade está apenas se submetendo a sua lógica. Assim com Beleza Americana, vencedor do Oscar passado, em que não poucas pessoas acreditaram estar vendo um filme de alto poder subversivo. Ou com Magnólia, em que muitos viram um filme livre, mesmo que para isso tenham que ter passado os olhos muito rapidamente na fraquíssima construção psicológica dos personagens, ela própria uma camisa de força profundamente moralista. Traffic repete o esquema: temática sobre drogas e tráfico, mostrando as violentas brigas de quadrilhas pelo domínio do mercado americano (no quintal, tudo pode acontecer, desde que não passe a porta da casa); o homem indicado a receber e comandar a distribuição nos estêites (um indefectível Ayala, jamais um yankee); e, acima de tudo, um respeito fulgurante (associado esteticamente a um azul frio mas redentor) pela família de wasps representada por Michael Douglas, o homem forte da luta contra as drogas no país, Amy Irving, sua esposa, e Erika Christensen, a filha que logo no começo do filme vicia-se em heroína por intermédio de seu namorado, brilhante aluno, nata da sociedade americana.

Mesmo que haja o esforço louvável de tentar mostrar que o problema das drogas é muito maior do que um simples combate ao tráfico, e mesmo que haja o igualmente louvável interesse em nuançar o policial mexicano interpretado por Benicio del Toro como verdadeiro herói positivo do filme, Traffic só consegue fugir do moralismo americano e do bordão "tudo em seu devido lugar" quando o chefe do combate à droga hesita em seu discurso todo pronto e abandona uma conferência de imprensa deixando os jornalistas embasbacados. Tirando isso, as pinceladas de Soderbergh são sempre fortes demais e, tipificando os personagens como tipifica os lugares – uma cor e um modo de filmar para cada localidade –, o filme soa falso, forçado, sem apresentar nada de verdadeiramente real. Uma triste nota final: Marc Ferro já nos alertava para como o preconceito cativado pela forma vai muito mais além do preconceito cativado pelo conteúdo. Em Traffic, todos os personagens são dignos de piada, piada em cima deles ou piada que eles contam. Apenas à família de wasps não é dada nenhuma linha engraçada, nenhum comportamento patético. Até as patéticas trips da filha drogada são tristes. Traffic incorpora-se assim à longa tradição americana do cinema mudo, onde os negros só eram incorporados ao filme para fazer alguma coisa engraçada e divertir os espectadores enquanto os outros personagens viviam seus dramas existenciais, pesados demais para uma piada. Triste, triste nota.

Ruy Gardnier