Tortura Selvagem,
de Afonso Brazza

Brasil, 2002


O espectador "educado", ou seja, aquele que freqüenta o chamado "circuito de arte", certamente não vai considerar Tortura Selvagem um filme passível de discussão crítica. Afinal, é mais fácil lidar com fenômenos como o de Afonso Brazza, ao realizar o seu cinema quase "caseiro", como objeto de um "freak show", como uma figura emblemática da nossa incapacidade crônica e quase cômica, mambembe. Jô Soares, por exemplo, exercita com frequência o ato de tornar ridículas figuras como a dele, para deleite de sua platéia inteligentíssima.

É fácil rir de Brazza pelo que ele possui de índice da nossa própria precariedade. Em tempos de afirmação de "excelência técnica" do cinema nacional, ele filma com negativo vencido, sem controle de luz atento, sem atores, sem domínio da chamada "decupagem". Mas, principalmente, ele representa um atentado a toda noção do que seja um "cinema aceitável" para nossos olhos cheios de "cultura".

Muito mais difícil seria gastar um minuto para perceber no cinema de Afonso Brazza indícios fascinantes de uma linguagem audiovisual pura, intocada mesmo. Efetivamente "mal-educado" (pois não aprendeu a se "portar"), seu filme nos remete aos primórdios do cinema, quando ainda não havia gramática a ser seguida. Uma época quando a simples superposição de imagens e sons, ou a ordenação aleatória de imagens, construía relações inesperadas de continuidade e lógica, ou uma pura fascinação. Seus filmes são a explosão de um imaginário incontido, de uma paixão irracional, de um desejo de "fazer cinema" a qualquer custo. Aqueles fizerem o esforço de liberar suas mentes, porém, poderão se divertir imensamente. Rindo com o filme, e não do filme.

Como descrever os planos perdidos de um singelo céu com nuvens, no meio de um tiroteio? Ou um personagem que grita ao longo do filme todo "Apareça, Maicon!!", quando não conseguimos nem localizá-lo geograficamente? O espectador pode até pensar em Woo, Seijun Suzuki, Peckinpah ou nos filmes baratos de kung fu, como parâmetros de olhar. Melhor seria pensar no cinema nacional, na liberdade narrativa dos filmes de Roberto Farias que têm Roberto Carlos como protagonista, por exemplo. Mas estes são exemplos de uso consciente do arsenal imaginativo e livre do cinema. Brazza é puro instinto. Se há algum cineasta sequer próximo a ele no impulso criador (embora com implicações e modelos diferentes), este seria José Mojica Marins que, aliás e não por acaso, aparece neste filme.

Ver um filme de Brazza é, ainda hoje, lidar com o inqualificável, com aquilo que não se consegue mensurar ao comparar com mais nada. Quantas chances o cinema ainda nos dá destas aventuras inesperadas?

Eduardo Valente