Tônica
Dominante,
de Lina Chamie
Tônica
Dominante, Brasil, 2000
1. Adorei Tônica
Dominante, da Lina Chamie. A Mônica Rennó detestou. Disse
ao Inácio Araujo que eu tinha gostado e ele respondeu: "Preciso
rever".
2. Rever é
mais importante que ver. Eu não revi por falta de tempo, mas foi
à primeira vista. O filme bateu nos tímpanos como música
da luz. Um filme para quem ama a música: você gostará
mais ainda se for músico. Eu, por exemplo, estudei violino no Conservatório
Maestro Roja, na Vila Carrão. Foram 3 anos, eu tinha 12 anos, aliás,
11. Aos 14 comprei também um violão e comecei a imitar Elvis
Presley.
3. Linda lua cheia
nas madrugadas geladas de São Paulo. Escrevo à luz de vela.
Vela me lembra Kubrick, Barry Lyndon e principalmente Laranja
Mecânica.
4. A prodigiosa Lina
toca flauta e/ou clarinete. Seu filmensaio é pra mim mais atraente
que A Flauta Mágica, do Bergman, que é gênio,
mas standard, nada experimental. Lina é superexperimental. Assumiu
o risco e o resultado já é cult. Obra-prima.
5. O pai de Lina é
o grande poeta da PRAXIS, Mário Chamie, tão bom quanto os
Irmãos Campos, seja dito. Lina é tão inventiva ou
mais que o pai.
6. Esses detalhes
são relevantes para situar bem o contexto cultural em que o filme
dela me parece jóia. Não é qualquer coisa.
7. Trata-se de uma
película autoral, ultrapessoal. A jovem cinepoeta estudou música
14 anos em Manhattan. Tem a idéia do filme há 8 anos na
cabeça. Tinha – realizou o sonho. A vida só é sonho
e a música é seu profeta.
8. A origem da tragédia
proveniente do espírito da música. Henri Agel perguntava:
"O cinema tem alma?". Claro que o cinema também é
espírito, além de corpo (película) e alma (talento).
9. São poucas
as palavras na Tônica. Entram como epígrafes e/ou
haicais. Um lance bem godardiano. "O pintor pinta na tela. O compositor
pinta no silêncio". É da Lina. O primeiro som é
a palavra OM que pode soar como AUM. SWÁSTHYA YÔGA, de preferência
com mestre de Rose, não é Caio Plesman? Aliás, você
me falou em botar Villa-Lobos na trilha sonora de nosso megavídeo
CINEMA DE INVENÇÃO 2001 ou AS AVENTURAS DE JAIRO FERREIRA
NA PAULICÉIA EXAGERADA (fica pronto até fins de agosto).
10. Não dá
pra querer começo, meio e fim num filmensaio para sopro e piano.
Pois o clímax é justamente a Sinfonia Inacabada, se Schubert.
É de arrepiar. Aliás, o filme respira música a 24
compassos por segundo. Eu gostaria de saber se a Lina fez um CD com a
trilha, pois é daquelas que curto do início ao fim. Todas
as músicas. E o curioso é que ela em entrevista falou das
linhas melódicas de Mahler, embora não se ouça Mahler
no filme. Eu usei Mahler n’O Vampiro da Cinemateca – em cima de
uma cena do Passagerio: Profissão Repórter, do Antonioni.
Sinfonia nos adágios.
11. A tônica
experimental é dominante no som que molda a imagem. Nesse sentido
é que citei Laranja Mecânica. Lina faz esse sincronismo
na parte final em que filma a pauta musical no foco e desfoco. Paulo Sacramento,
o grande montador, disse que deu um trabalhão. Mas valeu: Kubrick
fazia isso com Beethoven. Aliás, Kubrick só usa música
já existente. Com razão: música composta para cinema
não chega nem aos pés dos clássicos. Há exceções:
Bernard Herrmann, por exemplo, você pode ouvir como música
clássico tipo Musorgsky...
12. É um filme
apaixonado pela paixão pela música. O romance é ideogrâmico:
o "virador de páginas" da pianista louca toca clarinete
e quer namorar a violinista gostosona. O caso se resume a uma dialógo
que é exemplar em matéria de síntese: "Oi, eu....".
Puro Godard, puro Tonacci do Bang-Bang.
13. é uma porrada
atrás da outra. São planos magistrais com fotografia soberba
de Kátia Coelho, que funciona para Lina como Raoul Coutard para
Godard. Vou citar um dos melhores: um plano-seqüência de 4
minutos ao som de Satie. Alvorecer: rua Xavier de Toledo, vazia, ao fundo
o Teatro Municipal. O clarinetista (o ator está bem) caminha solitário.
O espectador sensível entra em êxtase. Você é
sensível, Mônica, talvez não seja compositora, então
não entendo como tenha detestado tal biscoito fino. Vamos discutir?
Não, vamos ouvir música. A melhor crítica a um filme
sobre música é outra música. Pensei em colocar a
escrita em pauta. Pauta de música com metrônomo e tudo. Aliás,
me lembrei de Cidadão Kane – a cena em que o maestro tenta
transformar a mulher de Kane em cantora de ópera.
14. Disseram que o
filme não tem história, não conta historinha. Eu
vi várias: por exemplo a relação mestre/discípulo,
no caso, duas loiras. Isso no lado feminino. No lado masculino há
o maestro ultraexigente que desbunda ao som da flauta do garotão.
Leve toque gay. Mas a música está acima de tudo e o maestro
explicita que "não interessa a perfeição".
Eis a configuração da experiência assumida a qualquer
preço. E trata-se de produção barata, lei Mendonça.
15. Buñuel
(que era surdo) disse que André Bazin viu coisas nos filmes dele
que sequer suspeitava. Nem falo na relação Hitchcock/Truffaut.
Mas a tal função do verdadeiro crítico – é
claro que sou considerado um deles, no Brasil – é mostrar ao espectador
o que ele ouviu mas não escutou, viu mas não enxergou. Volte,
Mônica, e reveja com outros olhos. Fica aí ouvindo Pink Floyd?
Taca um Mozart no seu carro e verás como é bom nas curvas
da estrada de Santos! Aliás, precisamos visitar a Cinemateca de
Santos com mais tempo, vamos combinar?
16. A fábula
de Anfion. Veja só a erudição da moça. Essa
fábula resulta em outro ponto culminante do filme. Reza que a música
tem um poder encantatório – faz com que os grãos de areia
se aglutinem e virem pedra. Lindo isso.
17. Lindo é
apelido. Outro auge: Lina filma nas dunas e aí até Mário
Peixoto ressuscita. O Merten, Luiz Carlos, observou bem que tais cenas
lembram Lawrence da Arábia. Concordo em número, gênero
e grau. O Zanin também sacou que trata-se de um filme muito especial.
Zanin é ótimo.
18. Eu disse ao Sacra
Killer que ele mesmo não havia sacado o produto que montou e editou
com categoria: eu teria visto o que outros não viram e minha opinião
se coaduna com a de Lina, para quem o cinema é música. Isto
é, luz astral.
19. Todo mundo fala
que, quando não gosto de um filme, caio fora nos primeiros 15 ou
20 minutos. Pois não é que no filme da Lina sequer pestanejei,
ao contrário, fiquei igual ao bonequinho do Globo (jornal), de
orelhas em pé. E aplaudi sozinho ao final. Vi numa sala pequena,
metade cheia. Ninguém deu um pio. Eu é que esbocei um "Bravo!
Bravíssimo!!!". Há uma economia na duração
dos planos, lance bem orquestrado pelo maestro Sacra. Um único
da platéia delirando no Teatro Municipal. Quer dizer, são
uns 80 minutos enxutos. Sacra tem esse poder de síntese.
20. Carlão
Reichenbach ainda não viu, ele que ama música e é
compositor. A verdade é que começou em literatura, pois
seu pai era editor.
21. Palma de Ouro
na categoria Ensaio. Ouça com ouvidos livres.
22. Eu vou rever.
É um deleite. Néctar.
Jairo Ferreira
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